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O submergente
A incrível história do sofisticado trader de derivativos exóticos que quebrou, foi morar no subúrbio – e está adorando
Marcos Caetano | Edição 32, Maio 2009
Não faz muito tempo, quando o povão ainda não tinha ouvido falar de derivativos – nem mesmo dos despretensiosos plain vanilla –, meu carro era um Porsche Cayenne Turbo S, zerado, com um adesivo do Clube de Campo de São Paulo no pára-brisa dianteiro. Hoje dirijo um Ford Versailles 91, cujo único plástico, além do escudo do Corinthians, é um adesivão que colei no vidro de trás: “Quer emagrecer? Pergunte-me como.” Em outros tempos, classificaria minha condição como a de um nouveau pauvre. Hoje, no entanto, prefiro definir-me com a simplicidade brejeira do termo submergente.
Sou um homem que foi abatido pela crise financeira internacional em pleno vôo de jatinho particular, a 30 mil pés de altura. Quando o mercado veio abaixo, eu caí mais do que ação do Citi. Mas aí é que está: ao contrário dos CEOs da AIG e da GM, a minha jornada não foi de desonra, mas de redenção. Foi uma jornada “vencedora”, para usar o termo que aprendi no Ibmec. No distante e tórrido subúrbio no qual eu vivo hoje, descobri a simplicidade e a alegria de ser simplesmente eu. Antigamente, se alguém dissesse uma coisa dessas na minha frente eu ligava logo para a Joyce. O sujeito ia para a lista negra do Glamurama e nunca mais conseguia uma reserva no Fasano. Hoje eu não ligo. Primeiro, porque não tenho mais dinheiro para comer no Fasano. Segundo, porque a Joyce não me atende mais. E terceiro, porque aqui no meu novo torrão dizer essas coisas poéticas funciona que é uma beleza.
Minha viagem rumo à Zona Norte e ao crédito consignado começou quando, no comezinho ritual de tomar uísque doze anos no tee do buraco 18, eu vi na televisão do bar que o Lehman Brothers tinha quebrado. Meus companheiros de golfe e de lida (hoje falo trampo, que soa mais coloquial) se assustaram um pouco, mas não deram muita bola. Eu não. Eu era um trader bom demais para não prever os próximos lances do mercado. Era evidente que uma hecatombe estava prestes a esmagar o patrimônio destinado a ser usufruído pelos meus tataranetos. Percebi isso no instante mesmo em que tomava aquele que seria o último copo de uísque importado da minha vida. Fim de linha. Dou graças a Deus por não ter ido em cana – e mais ainda pelo fato de meus clientes jamais terem ouvido falar no Mandaqui, bairro no qual, graças à caridade da minha diarista Suzyanne, consegui me esconder.
“A dor não pode mais do que a surpresa”, disse Guimarães Rosa. E a minha grande surpresa foi constatar que, desde que me estabeleci nesse lugar intocado pelas bolsas Vuitton e pelos advogados criminalistas, tenho vivido num insuportável estado de felicidade. Para quem emergiu do suburbão e foi em direção ao bem-bom da Zona Sul, talvez seja fácil retornar às origens depois de um fracasso. Não é o meu caso. Não tenho um único antepassado que sequer encostou as solas dos mocassins Ferragamo num bairro cujo primeiro nome não fosse Jardim. Jardim qualquer coisa, mas Jardim. Vila qualquer coisa, nem em pesadelo. É por isso que digo que sou uma pessoa que descobriu os prazeres da classe D. Ou, para cunhar mais uma frase que me jubilaria de vez do Gero, sou uma pessoa que se redescobriu nos prazeres da classe D. Os motivos são muitos, ainda que pouco compreensíveis para quem não experimentou viver aqui. E eu disse viver. Essa frivolidade de menino rico que trabalha em ONG ou que vem ver baile funk por curiosidade sociológica não conta.
A lista das maravilhas suburbanas bem que poderia começar pela paz de espírito, algo que eu considerava conversa de empregadas domésticas, mas que pude experimentar na prática. A paz de espírito, esclareça-se, e não as empregadas domésticas, ainda que já tenha investido em algumas. Ao contrário dos tempos em que tinha piriris com a cotação das commodities, hoje eu vivo confortavelmente com o dinheiro que ganho com os produtos de emagrecimento dos quais sou representante comercial, categoria Platinum. Não administro recursos de mais ninguém. Não devo um tostão – ou um puto, como prefiro dizer hoje – a alma nenhuma. Durmo sem qualquer preocupação, além da defesa do Corinthians e do paredão do BBB, programa que, ao lado de um tal de Tela Quente, que passa filmes dublados, e das novelas (especialmente aquela dos mutantes), faz a alegria das minhas noites. Eu não imaginava como a tevê aberta era divertida. Cacilda! Como desperdicei madrugadas zapeando entre dezenas de canais a cabo, cada um mais chato e legendado do que o outro! Tendo que assistir a Manhattan Connection, domingo sim e outro também!
Confesso que as questões gastronômicas eram as que mais me preocupavam quando cheguei aqui. Como fui criado com colher de prata nas mãos, baixa gastronomia sempre foi para mim um conceito tão abstrato quanto o corte de cabelo da Ana Maria Braga. Todos os meus temores caíram por terra no momento em que provei o escandaloso X-Picanha do Biroska’s Lanches. Isso é que é value added. Nunca pensei que pudesse caber tanta coisa entre duas fatias de pão careca. (Salvo engano, tem até pedaço de pão entre o pão. É o que o pessoal do curso de filosofia clássica que fiz lá na Casa do Saber chamaria de Das metasanduichen.) Descobri também a coxinha da tia Januária do ponto de ônibus, o torresminho do Bar do Micuim e o pão com mortadela da Confeitaria Firmeza. E imaginar que eu cheguei a subornar o prefeito de uma cidadezinha espanhola pra conseguir um lugar no restaurante daquele catalão que inventou a culinária molecular! Aposto minha capanga de curvinho artificial contra qualquer bolsa Hermès que se você for um sujeito sincero vai admitir que a rabada aqui da esquina é muito melhor do que a posta de rabanete com sorvete de cordeiro que me serviram lá. (Sem falar que a porção aqui é bem maior.) E pode até ser que a picanha que eu queimo todo domingo na churrasqueirinha da laje lá de casa não seja tão boa quanto a que é servida nas steak houses do mundo civilizado, mas eu posso comê-la civilizadamente, sem ser interrompido a cada oito segundos pelo gorduroso espeto de cupim ou por alguém no iPhone, me avisando que o mercado desabou porque dizem que o Henrique Meirelles vai ser substituído pela Marta Suplicy.
De quebra, ouço um belo samba. Ao vivo e de graça, tocado por outros representantes lá da firma. E como toda casa que tem roda de samba tem mulher, é impressionante o que tem chovido na minha horta. Ao contrário daquelas peruas botocadas, o mulherio da ZN é absolutamente bem resolvido. Mulher, aqui na minha área, malha no ônibus e no tanque – e faz sexo porque gosta, não pra dar inveja na amiga. Depois que me tornei diretor de harmonia da X-9 Paulistana, cargo com prestígio e poder comparáveis apenas ao de um CFO de multinacional, tenho tido dificuldade em dar conta de todas. Sorte que por aqui mesmo o viagrinha tem o seu substituto barato e natural. Gosto tanto desse negócio de Caracu com ovo que tomo até quando vou passar o fim de semana pescando tilápia com os amigos.
A saúde também melhorou muito. Jogar golfe é bacana, mas não dá preparo físico. Quando estou com saudade, vou num minigolfe nos fundos do Motel Moi et Toi, que todo mundo aqui chama de Mói-tói. Bom mesmo para o condicionamento é um futebolzinho na rua de terra batida, especialmente no segundo tempo, quando meu time ataca ladeira acima. Não tenho plano de saúde, é verdade. Mas um camarada meu dá plantão no hospital público e, quando preciso, consegue uma prioridadezinha no ambulatório. Ainda assim, se a minha hora chegar, morrerei em paz. Isso porque, aqui, religião também é uma coisa bem menos complicada. Por 10% dos meus vencimentos garanto o perdão de todos os meus crimes, inclusive o insider trading (eu perguntei). Enquanto os ricos ficam estudando teologia, lutando para entender os desígnios de Deus, o pessoal daqui botou preço no negócio. Dez purça, como diria um assessor parlamentar tarimbado – e o céu nos pertencerá.
Olha, eu não largo essa maravilha de lugar por dinheiro nenhum do mundo. Caso um dia eu realize o sonho de me tornar representante comercial categoria Triple Diamond, com minha própria rede de associados, nem assim eu deixo isso aqui. É verdade que, apesar de viver da venda de shakes emagrecedores, eu engordei mais de 20 quilos desde a quebra do Lehman Brothers. Mas isso é bobagem. Outra coisa que aprendi aqui na minha Shangri-lá sem calçamento é que magreza só é sinal de saúde pra lá de Santana.
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