Para prospectar petróleo em rochas de 120 milhões de anos, será preciso construir 59 plataformas, 8 refi narias, 52 navios e um sem-número de equipamentos periféricos. A 62 dólares o barril, o investimento no setor de petróleo até 2025 será de 418 bilhões de dólares IMAGEM: CIDA CALU
O desafio do pré-sal
Achar petróleo a 5 mil metros de profundidade exigiu centenas de milhões de dólares e uma operação de guerra. Será preciso muito mais para tirá-lo de lá
Consuelo Dieguez | Edição 28, Janeiro 2009
“Carminatti, aqui não tem óleo, só tem água.”
Era um domingo, no final de agosto de 2006. Mario Carminatti, o geólogo-chefe da Petrobras, acabara de tomar o café da manhã em sua casa, em Niterói, e ouvia, atônito e paralisado, a notícia que Gilberto Lima, o gerente-geral de operações exploratórias da companhia, lhe passava pelo telefone. Ao recobrar a fala, Carminatti, um gaúcho de 53 anos, cabelos tendendo ao grisalho, olhos azuis e sotaque carregado, respondeu: “Não é possível, tchê, não faz sentido. Vamos mais fundo nesse poço, tem que ter petróleo aí embaixo.”
As horas que se seguiram foram de angústia. Se a perfuração continuasse indicando que o poço RJS-628A, na Bacia de Santos, não tinha óleo, significaria o fracasso de um projeto que começara seis anos antes, demandara milhares de horas de pesquisa e queimara milhões de dólares em complexas operações de engenharia.
Na segunda rodada da licitação da Agência Nacional do Petróleo, em 2000, a Petrobras arrematara quatro áreas – chamadas de “blocos” nos meios petrolíferos – na Bacia de Santos, que era quase desconhecida pelos geólogos. Para obtê-los, a empresa se associara à British Gas, à portuguesa Petrogal, à espanhola Repsol-YPF e à americana Chevron. Juntas, elas desembolsaram 285 milhões de dólares. Com uma participação de mais de 60% no negócio, a companhia brasileira entrara com a maior parte dos recursos.
Com as descobertas dos campos gigantes de Marlim e Roncador, na Bacia de Campos, na década de 90, Santos ficara abandonada. O desinteresse se justificava, ademais, pela incerteza de ali haver óleo: os estudos preliminares não haviam sido animadores. Com o fim do ciclo de descobertas na Bacia de Campos, a Petrobras tinha que recompor suas reservas de 14 bilhões de barris. Só então a Bacia de Santos surgiu como alternativa de prospecção.
Dirigida na época pelo economista Henri Philippe Reichstul, a estatal encomendou um programa de dados sísmicos em três dimensões – o maior desenvolvido até então no mundo – para mapear a área de 20 mil quilômetros quadrados dos quatro blocos. Por meio de explosões que emitiram ondas sísmicas, os aparelhos de 3D instalados em navios-plataforma produziram imagens do fundo do mar. O programa levou dois anos até gerar dados que pudessem ser interpretados pelos geólogos da companhia.
As imagens captadas revelaram a existência de grandes elevações sob uma extensa camada de sal – em teoria, elas poderiam ser reservatórios de petróleo. “As evidências eram muito boas”, contou Carminatti durante uma conversa em sua sala, na sede da Petrobras, no centro do Rio. “As imagens indicaram a existência de alguns dados vitais: uma rocha geradora de petróleo, com uma rota física por onde ele pudesse passar; uma rocha-reservatório, onde o óleo pudesse se acumular; uma rocha que pudesse aprisioná-lo e, por fim, um selo fechando toda essa estrutura. E não poderia haver selo melhor do que uma camada de 2 quilômetros de sal.”
Em fevereiro de 2003, a elite dos técnicos da empresa – um grupo de vinte geólogos, geocientistas e engenheiros – reuniu-se a portas fechadas para ouvir as conclusões do estudo. Carminatti informou-lhes que havia a possibilidade de existir grande quantidade de petróleo na região. Mas isso só poderia ser comprovado com a perfuração dos poços, o que gerava dois problemas descomunais. Primeiro, as áreas com potencial ficavam entre 5 e 7 mil metros de profundidade. E o máximo que a Petrobras havia atingido era uma profundidade de 1 886 metros – o que já era um recorde mundial. Em segundo lugar, tratava-se de buscar petróleo em rochas desconhecidas, que estavam ali há 120 milhões de anos, antes mesmo de serem cobertas pelo mar e de o sal ter se acumulado sobre elas.
Cabia àquele punhado de técnicos analisar, de início, se valia a pena dar continuidade ao projeto. A companhia estaria disposta a investir milhões de dólares num projeto novo e sem garantia de haver petróleo? Decidido o prosseguimento, seria necessário definir a prioridade na exploração – ou seja, dos quatro blocos adquiridos, qual seria prospectado primeiro, com base nos estudos sísmicos.
Havia, por fim, uma questão legal. Pelas regras da Agência Nacional do Petróleo, a ANP, as empresas que adquiriram blocos em leilão tinham um prazo para estudar os dados obtidos com os levantamentos sísmicos. Feito isso, deveriam optar ou não pela sua exploração, mas podiam permanecer com no máximo 50% das áreas, devolvendo o restante para a Agência. E era aquele grupo que teria que indicar as áreas a serem devolvidas. “Tudo isso gerou uma ansiedade muito grande”, lembrou Carminatti. “Todo o nosso conhecimento geológico estava sendo posto em xeque. Um erro de avaliação poderia causar pesados prejuízos à Petrobras e a seus parceiros.”
Àquela reunião seguiram-se inúmeras outras, cada vez mais tensas. Parte do grupo achava um delírio perfurar a mais de 5 mil metros de profundidade, numa área desconhecida. “Não era só a questão de se haveria ou não o óleo, mas se teríamos equipamentos para descer a tal profundidade e como se comportaria a camada de 2 quilômetros de sal, que nenhuma empresa no mundo jamais ousara atravessar”, disse Carminatti. O grupo não chegou a um consenso. A posição majoritária, de continuar com o projeto, foi levada a Guilherme Estrella, diretor de Exploração e Produção da Petrobras.
Guilherme Estrella é um geólogo de 66 anos, cujo rosto rechonchudo e a calva lhe conferem um aspecto bonachão. A imagem de sujeito pacato, avesso a celeumas, se desmancha logo que começa a falar sobre o pré-sal. No final de outubro, ele me recebeu em sua ampla sala, no 18º andar do prédio da Petrobras, de onde se tem uma bela vista para as montanhas de Santa Teresa. “Muita gente fala que tivemos sorte. Sorte uma ova”, disse. “O pré-sal é resultado do estabelecimento de metas exploratórias, da exploração de petróleo na ponta da broca, sem saber o que vai acontecer. Temos ferramentas que diminuem o risco, mas elas não garantem 100% o que vamos encontrar. Se não, qualquer um furava e encontrava o óleo.”
Estrella entrou na Petrobras em 1965 e trabalhou por 29 anos. Decidiu se aposentar em 1994, quando ocupava um dos cargos de maior prestígio: o de superintendente-geral do Centro de Pesquisas. Ele discordara da decisão da empresa de não promover dois geólogos por serem ligados a Associação dos Engenheiros da Petrobras, na época crítica ferrenha da direção da estatal. Viúvo, ele se mudou para Nova Friburgo, cidade na região serrana do estado do Rio, onde costumava passar as férias na infância. Lá, entregou-se pacatamente à leitura de livros de história natural e filosofia e à observação da natureza: “Sempre fui uma pessoa de múltiplos desejos e interesses. Fiz até curso de catador de semente, subindo em árvores.”
Em 2001, Estrella abandonou o idílio e envolveu-se com política partidária, tornando-se presidente do diretório do Partido dos Trabalhadores de Nova Friburgo. “Formamos uma chapa de oposição aos candidatos da direção nacional do PT e vencemos”, contou. “Nós éramos o que havia mais à esquerda do partido.” Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002, José Eduardo Dutra, ex-senador do PT de Sergipe, foi alçado à presidência da companhia, e chamou Estrella de volta para a empresa, dessa vez para o cargo de diretor de Exploração e Produção. “Eu já estava aposentado há oito anos, mas nunca havia perdido o contato com a empresa”, explicou. E brincou: “Ao contrário do que acontece com a maior parte dos relacionamentos, a Petrobras é uma relação para a vida inteira.”
Seu retorno deu-se em meio a críticas, boa parte vinda dos setores tucanos que haviam dirigido a empresa por oito anos. Dizia-se que era um risco colocar um técnico defasado na diretoria, que é o coração de qualquer companhia de petróleo. E se associou sua nomeação ao “aparelhamento” da empresa. “Para me desmerecer, diziam que a Petrobras tinha ficado tão ideologizada que estavam colocando na diretoria de Exploração e Produção o presidente do microdiretório de Nova Friburgo”, contou, rindo.
“Quando cheguei aqui de volta, não encontrei uma empresa de petróleo”, ele lembrou. “A Petrobras tinha se transformado em uma instituição financeira. Uma empresa de petróleo tem que correr riscos, tem que ser agressiva na exploração, tem que investir muito e desenvolver tecnologia e conhecimento geológico. Banqueiro não quer correr risco.” Seu discurso foi ficando mais inflamado: “Quiseram mudar a cultura da companhia e transformá-la numa empresa exclusivamente comercial. Quiseram trocar seu nome para Petrobrax, mas o povo brasileiro não aceitou. Do Oiapoque ao Chuí se levantaram as mais diferentes vozes, da esquerda à direita, e destruíram aquela iniciativa imbecil de apagar o nome Brasil da maior empresa brasileira, nascida de nossas entranhas.”
Estrella apontou para um mapa em que estão demarcadas as áreas hoje em exploração e, mais calmo, continuou: “Veja como as orientações para a exploração de petróleo nos governos Fernando Henrique e Lula são completamente diferentes. Nós vínhamos reduzindo drasticamente a aquisição de blocos. Se não tivéssemos revertido essa tendência, chegaríamos ao final de 2009 praticamente sem áreas para explorar.”
Para comprovar sua tese, apresentou números que sabia de cor: “Em 1999, a Petrobras adquiriu 24,3 mil quilômetros quadrados de área para explorar. Em 2002, o número caiu para 14 mil. Em 2003, no governo Lula, subiu para 21 mil e, em 2005, foram 40 mil quilômetros quadrados de novas áreas.” Os investimentos em exploração, segundo ele, também aumentaram. Entre 1994 e 2002, a companhia investiu uma média anual de 536 milhões de dólares. De 2003 a 2006, a média saltou para 1,1 bilhão de dólares.
O geólogo José Coutinho, antecessor de Estrella no cargo, justificou a estratégia da Petrobras no governo Fernando Henrique em Infra-estrutura de Energia e Transporte, livro organizado por José Luiz Alquéres. Nele, Coutinho, funcionário de carreira, sustenta que a estatal teve que se adaptar ao fim do monopólio do petróleo. Segundo ele, a Petrobras estava fragmentada em várias ilhas, num imenso arquipélago: “Cada ilha não compartilhava uma visão comum sobre o seu futuro no novo ambiente competitivo. Fez-se, então, um plano estratégico que reestruturou o sistema de governança corporativa e de gestão empresarial.”
A visão de que a Petrobras deveria ser uma empresa como qualquer outra – cujo objetivo é dar lucros a custos menores – é questionada por Estrella. No seu entendimento, hoje as empresas de petróleo estão separadas em dois grandes grupos: as NOCs, a sigla em inglês para as companhias nacionais, e as INOCs, as internacionais. As NOCs são, entre outras, a mexicana Pemex, a venezuelana PDVSA e a saudita Saudi Aramco. Entre as INOCs estão a Shell, a Esso e a Chevron. “Ainda que joguemos o mesmo jogo, somos bichos diferentes”, disse Estrella. “As NOCs não podem estar preocupadas apenas em dar ganhos aos acionistas, devem também estar comprometidas com o desenvolvimento do país.”
Gilberto Lima é o responsável pelo controle de todos os poços em processo de perfuração pela Petrobras. Em sua sala, no 14º andar do edifício-sede, ele passa a maior parte do tempo colado na tela do computador, acompanhando on-line o que acontece em cada um deles. Quando foi dado o sinal verde para o projeto do pré-sal, em meados de 2003, Lima diz que a equipe se preparou para uma operação de guerra. “Passamos meses estudando que equipamentos usar, treinando equipes, contratando sondas e embarcações de apoio”, contou. “Pela primeira vez buscaríamos petróleo a tal profundidade e a 300 quilômetros da costa do Rio.”
No dia 30 de dezembro de 2004, um navio-sonda foi enviado à Bacia de Santos para a área – hoje chamada de Parati – apontada pelos geólogos como a primeira a ser perfurada. Começava, oficialmente, a exploração no pré-sal. A geóloga Sylvia Anjos é uma morena alta e sorridente. Ela recordou a expectativa dos seus pares com o início da perfuração. “Vínhamos de um período desanimador”, disse ela. “Tínhamos passado cinco anos sem encontrar petróleo em todas as áreas novas da Bacia de Campos.” O mal-estar era tamanho que os geólogos ficaram malvistos pelos engenheiros.
A área de Parati foi escolhida porque haviam sido identificadas rochas turbidíticas, que ficam acima da camada do sal. Os turbiditos são formados de areia igual à da praia. É nesse tipo de rocha que a Petrobras explora petróleo na Bacia de Campos e onde estão assentadas 80% das reservas nacionais. A idéia era começar a exploração nessas rochas já conhecidas e, se encontrassem petróleo ali, mais tarde desviariam o poço e chegariam ao pré-sal.
O gaúcho Breno Wolff, gerente de Interpretação e Avaliação das Bacias da Costa Sul, é o responsável por toda a Bacia de Santos. “Achávamos que começar a exploração pelos turbiditos era uma forma de economizar”, disse ele. “Aproveitaríamos a mesma operação para procurar óleo acima e abaixo do sal.” Deu tudo errado. “As rochas foram atravessadas e não se encontrou uma gota de óleo”, contou. E a operação acabou ficando muito mais cara do que o orçado.
Partiu-se, sem entusiasmo, para a perfuração nas rochas do pré-sal. Wolff lembra a angústia daqueles dias. Antes de alcançar o pré-sal, a sonda, uma espécie de broca gigante, encontrou uma camada de 500 metros de basalto – uma rocha dura, difícil de perfurar e sem acumulação de petróleo. O basalto geralmente é encontrado no final da perfuração, no que seria o fundo do poço.
A equipe decidiu, no entanto, atravessar a camada basáltica. Foram meses de perfuração. As brocas quebravam e o trabalho tinha que ser suspenso para que os equipamentos fossem reparados. E isso a um custo diário de aluguel de sonda de 500 mil dólares. “Enfrentamos todos os obstáculos nesse poço”, lembrou Wolf. “Operações que costumávamos fazer em uma semana em Campos, ali levávamos mais de um mês. Outras companhias talvez não tivessem tido a ousadia de ir até o final.”
Em meados de 2005, os parceiros no projeto – a Petrobras, a Chevron e a British Gas – haviam desembolsado mais de 100 milhões de dólares. E estavam longe de alcançar o pré-sal. Era um gasto inédito, quase absurdo. O poço mais caro do mundo tinha sido furado pela Pemex e custara 100 milhões de dólares, o que já havia sido considerado um exagero. A média de custo de perfuração de poços na Bacia de Campos, por exemplo, era de 18 milhões de dólares. Assustada com os custos e as dificuldades, a Chevron abandonou o projeto. Parte de sua participação foi comprada pela Petrobras e pela portuguesa Partex.
“O que nos fazia continuar era o fato de, durante a perfuração, terem surgido sinais de gás”, contou Wolff. No dia 30 de março de 2006, um ano e três meses após o início da exploração e a um gasto de 240 milhões de dólares, a perfuração de Parati finalmente chegou ao fim. Numa profundidade de 7 600 metros, foi encontrado um campo gigante de gás e reservatórios de condensado, um óleo leve, indicado para querosene de aviação.
O resultado de Parati, apesar de a maior parte do reservatório ser de gás, e não de óleo, animou a Petrobras a continuar a perfuração em outros blocos. No dia 24 de março de 2006, uma sonda começou o trabalho de perfuração do poço RJS-628A. “Aquela seria a nossa prova de fogo”, contou Wolff. “Se não achássemos petróleo ali, o projeto do pré-sal teria que ser abandonado. Nem a companhia, nem os parceiros estariam dispostos a investir tanto dinheiro em outras áreas cujo resultado poderia ser o mesmo.” Os custos de exploração do novo poço estavam estimados em quase 100 milhões de dólares. Durante a perfuração, os técnicos envolvidos no projeto viravam noites acompanhando o trabalho da sonda.
Quando a broca finalmente atravessou a camada de sal e atingiu o reservatório, a primeira interpretação foi desanimadora: não havia óleo. Gilberto Lima lembrou que naquele domingo, no final de agosto de 2006, recebeu um telefonema com a má notícia logo cedo. Em seguida ele ligou para Carminatti. A sonda já havia atravessado 5 mil metros desde a superfície do mar. Com a ordem desesperada de Carminatti para continuar a exploração, a broca desceu um pouco mais. Só no final daquele dia eles puderam relaxar. O RJS-628A, hoje batizado de Campo de Tupi, tinha óleo. Já na manhã de segunda-feira houve uma grande comemoração na empresa. “Foi uma descoberta tão espetacular que às vezes eu acho que estou sonhando”, contou Carminatti.
Em 2 de setembro, a perfuração foi encerrada. As análises indicaram que só no Campo de Tupi existiam reservas de 5 a 8 bilhões de barris. O sucesso levou à perfuração de mais sete poços. Em todos foi encontrado petróleo. No poço de Iara, próximo a Tupi, foram comprovadas reservas de 3 bilhões de barris. Em novembro de 2007, o presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, e o diretor Guilherme Estrella contaram a boa-nova ao presidente Lula, numa reunião no Centro de Pesquisas da Petrobras. Disseram-lhe que toda a área do pré-sal – que se estende do Espírito Santo a Santa Catarina – poderia ser um gigantesco reservatório de petróleo. Como o risco exploratório era praticamente nulo, qualquer empresa que perfurasse ali encontraria óleo.
No encontro com o presidente, Estrella argumentou que seria um crime entregar essa riqueza a empresas que não correram o menor risco para encontrá-la. Diante dessa possibilidade, o governo retirou os blocos do pré-sal da nona rodada de licitação de zonas petrolíferas, que se realizaria dias depois. Ao rememorar esse episódio Estrella se entusiasmou: “O presidente Lula tomou a decisão nacionalista de submeter as áreas do pré-sal a uma nova legislação. O petróleo faz parte do nosso patrimônio estratégico, não pode ser de alguém. Tem que pertencer ao povo brasileiro”, disse.
O governo estimou, inicialmente, que as reservas brasileiras poderiam chegar a 70 bilhões de barris. As análises dos outros poços perfurados alteraram essas projeções. As reservas, segundo as últimas estimativas, podem chegar a 150 bilhões de barris. Além de Tupi, os campos de Júpiter e Carioca, descobertos depois, foram listados entre os 50 campos gigantes do mundo. Estudos do Departamento de Energia americano apontam que, em 2030, o Brasil será o quarto maior produtor mundial de petróleo. Na sua página na internet, o Brasil aparece atrás apenas da Arábia Saudita, da Rússia e dos Estados Unidos, com estimativas de produção de 5,7 milhões de barris ao dia.
Em 17 de julho passado, o presidente Lula instituiu uma comissão encarregada de propor a legislação de exploração do pré-sal. Seus integrantes – os ministros da Casa Civil, das Minas e Energia, da Fazenda, do Planejamento, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e o diretor-geral da ANP, Haroldo Lima – sentaram-se à sua volta na sala de reuniões no Palácio do Planalto. Lula olhou para o grupo e perguntou por que o presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, não estava presente. Informado de que ele não tinha sido chamado por ser representante de uma empresa, Lula cofiou a barba e ordenou: “Mas essa é a única empresa que eu nomeio o presidente: coloca ele aí.”
No final de novembro, Haroldo Lima recebeu-me na sede da ANP, no centro do Rio. Disse que a comissão vinha se reunindo de duas a três vezes por semana e explicou que todas as propostas seguiriam para a apreciação do presidente. Lima adiantou que há consenso na comissão quanto ao modelo para produção nas áreas de pré-sal – será o de “contratos de partilha”. Ou seja: a União contrata empresas para explorar o petróleo e as remunera com parte da produção, o que faz com que o governo tenha um controle estrito das reservas. Pelas regras atuais, o modelo é de concessão: as empresas adquirem blocos em leilões da ANP e, caso encontrem petróleo, ficam com tudo o que é produzido, pagando royalties e participações especiais à União, aos estados e municípios.
Se aprovado, o modelo exigirá a criação de uma nova estatal para negociar os contratos. A Petrobras, por ser uma empresa com ações na Bolsa, não poderia administrar contratos e, simultaneamente, disputá-los com outras companhias. “Hoje, como mais de 60% das ações da Petrobras estão no mercado, ela não pode assumir interesses em nome do Estado, pois isso significaria dar privilégios aos seus acionistas”, disse Haroldo Lima.
Mesmo assim, a Petrobras será alvo de mudança. O governo quer recomprar parte das ações da companhia no mercado e aumentar a participação do Estado na empresa. Lima contou que há uma grande insatisfação no Planalto com o fato de boa parte das ações da estatal estar nas mãos de investidores estrangeiros. “Isso é o que mais incomoda os membros da comissão”, disse.
Um outro ponto defendido pela comissão deverá provocar resistência dos políticos, tanto da situação como da oposição: os recursos obtidos com a produção nas áreas do pré-sal irão para os cofres da União. Não existe qualquer disposição do governo de dividir receitas com estados e municípios, como ocorre com o pagamento de royalties e participações especiais. A defesa desse ponto não é só da comissão, é de Lula. “O presidente foi taxativo: as rendas advindas do pré-sal devem ser controladas pelo governo federal”, disse Haroldo Lima. “Ele quer que esse dinheiro seja colocado a serviço do povo para acabar com a pobreza no Brasil.”
“Não é só o setor de petróleo que será alterado: será alterada a própria história do Brasil”, entusiasmou-se Lima. Antes de celebrar essa perspectiva, será preciso enfrentar desafios maiores do que descer a 5 mil metros de profundidade. José Formigli é o engenheiro responsável pelo planejamento do pré-sal. Cabe a sua equipe criar as condições para colocar os campos em atividade. Todo o esforço que vem sendo feito é para diminuir os custos de produção e tornar o projeto economicamente viável. “Nosso primeiro poço no pré-sal custou 240 milhões de dólares. A esse custo, a produção seria inviável. Os últimos poços que furamos já estão na casa dos 80 milhões. Mas esses valores têm que cair muito mais”, disse.
Isso só será possível com o desenvolvimento de novas tecnologias. É preciso, por exemplo, uma metalurgia especial para revestimento de poços e dutos, a fim de evitar que sejam corroídos pela camada de sal. Algumas dessas tecnologias terão que estar disponíveis já em 2009, quando o projeto-piloto de Tupi será colocado em operação. A previsão é de que até 2010 o poço esteja produzindo 100 mil barris ao dia. As rochas-reservatório do pré-sal são diferentes daquelas de onde a companhia se acostumou a tirar óleo. São rochas carbonáticas, porosas, e o óleo fica entranhado em sua cavidade. Tirá-lo dali exige a criação de tecnologia. “Não é só colocar um canudinho e puxá-lo”, disse Formigli. Depois disso, outros poços terão que estar prontos para entrar em produção antes de 2017.
A crise econômica mundial colocou o projeto do pré-sal na sombra da incerteza. Uma das dúvidas é se a produção de petróleo em condições tão adversas continua factível, já que o preço do barril despencou de 150 para 40 dólares em meados de dezembro. Adilson de Oliveira, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é especialista em energia. Do prédio do século XIX do instituto, na Praia Vermelha, ele comandou uma equipe de professores e pesquisadores encarregada pelo governo de fazer um diagnóstico sobre a indústria brasileira de bens e serviços do setor de petróleo.
O resultado foi um relatório de mais de 100 páginas. Quando o estudo foi encomendado, o barril havia superado os 100 dólares. Mas a equipe de Oliveira nunca levou esse preço em consideração. “Era lógico que aquilo não ia se sustentar”, disse o economista. O estudo trabalha com dois cenários diferentes. Um, com o petróleo na casa de 62 dólares o barril, e outro a 46 dólares o barril. Em ambos, o projeto do pré-sal continua rentável. “Estamos falando de preços que são, no mínimo, o dobro do que eram no começo da década”, lembrou Oliveira. No caso do petróleo a 62 dólares, estima-se que os investimentos no setor serão de 418 bilhões de dólares, de 2009 a 2025. A 46 dólares o barril, os investimentos necessários no mesmo período seriam de 337 bilhões de dólares.
O entrave maior no momento não é o preço do petróleo. Para a maior parte do mercado, a alta era irreal. O Departamento de Energia dos Estados Unidos, por exemplo, trabalha com estimativas de preços oscilando entre 55 a 90 dólares o barril, no período de 2007 a 2025, o que representaria um preço médio de 85 dólares. A Petrobras também não se assusta com a queda da cotação. Técnicos que trabalham no planejamento da produção no pré-sal asseguram que o projeto é viável com o preço do barril a 35 dólares.
Na avaliação de Oliveira, uma queda de preços abaixo desses patamares não é interessante para os países europeus, os Estados Unidos e a China. Eles sabem que, nesse caso, a produção de petróleo no Brasil, Canadá e África seria desestimulada, deixando-os dependentes dos países árabes e da Venezuela. Ele ilustra sua tese com uma entrevista concedida pelo então secretário de Estado americano, Henry Kissinger, nos anos 70, durante a primeira crise do petróleo, quando os preços subiram de 3 para 12 dólares o barril. Ao ser indagado sobre a questão, Kissinger disse que aquela era a melhor coisa que poderia ter acontecido, pois estimularia a produção de petróleo no Mar do Norte. Foi exatamente o que aconteceu, garantindo estabilidade de preços nas décadas seguintes. “Tudo o que os Estados Unidos e a Europa não querem é ficar dependentes do Oriente Médio”, disse Oliveira.
O que mais assusta é a falta de financiamento. Com a crise internacional, as fontes de crédito secaram. A falta de recursos não compromete os investimentos das empresas de petróleo. No caso da Petrobras e suas parceiras, os recursos necessários para a produção no pré-sal entre 2009 e 2015, estimados em 128 bilhões de dólares (sendo 98 bilhões bancados pela estatal), já estão garantidos. “As companhias de petróleo historicamente se autofinanciam”, explicou Oliveira. O problema é como garantir recursos para os fornecedores de equipamentos.
O aumento da produção de petróleo exigirá a ampliação significativa da infra-estrutura até 2025. Segundo estimativas do governo, será necessária a construção de 59 plataformas, 8 refinarias e 52 navios. Isso, fora os barcos de apoio, dutos e mais um sem-número de equipamentos periféricos. Como o Brasil não quer ser apenas um exportador de petróleo – como os países do Oriente Médio, da África e a Venezuela –, a idéia é produzir a maior parte aqui mesmo. A grande dúvida é se haverá crédito para financiar esses investimentos. Uma das alternativas, diz Oliveira, é atrair empresas de fora para se instalarem aqui, a fim de que elas banquem seu financiamento. Outra parte terá que ser garantida pelo governo brasileiro.
Existem três pólos fornecedores de bens e serviços de petróleo. Um em Houston, nos Estados Unidos, com cerca de 500 empresas que fornecem para o golfo do México e Venezuela, responsável por adicionar 2,8 bilhões de dólares à economia americana por ano; outro na Ásia, focado na indústria naval; e o último na Inglaterra e Noruega. O que se quer é que o Brasil surja como um novo pólo, fornecendo não só para a indústria nacional, mas para a América do Sul e África. Para isso há urgência em capacitar industrial e tecnologicamente os fornecedores locais de bens e serviços.
Ernani Torres, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, diz que o modelo de política industrial que a Noruega adotou para capacitar sua indústria, na década de 70, após as descobertas de petróleo no Mar do Norte, é o que o Brasil acredita ser o melhor a ser seguido. A Noruega estabeleceu como condição para as companhias explorarem petróleo a contrapartida de transferirem tecnologia e de adquirirem bens e serviços no mercado local. Também adotou uma política de incentivo direto aos fornecedores locais.
No BNDES, três grupos desenvolvem estudos com vistas a preparar a indústria nacional para as novas demandas por bens e serviços. Um dos gargalos é a pouca integração das empresas brasileiras com o sistema científico e tecnológico das universidades. A capacitação da mão-de-obra é outra grande dificuldade. O Programa de Mobilização da Indústria de Petróleo, coordenado pela Petrobras, já treinou 180 mil pessoas, e o objetivo é treinar mais 120 mil nos próximos dois anos. Mas ainda é um número reduzido frente às necessidades.
Em 2025, com a produção brasileira saltando para 5,7 milhões de barris diários, espera-se que as receitas com exportação do combustível cheguem a 60 bilhões de dólares (caso os preços estejam estabilizados em torno de 60 dólares o barril). A arrecadação fiscal com o petróleo seria de 120 bilhões de dólares.
“O risco de uma entrada tão fácil de recursos é de acomodação”, alerta Ernani Torres. “Isso aconteceu em vários países que deixaram sua indústria desaparecer para viver apenas das receitas geradas pela exportação do óleo.”
O governo terá que dar respostas rápidas a todas essas questões. As descobertas no pré-sal, ainda que espetaculares, podem ter acontecido no que talvez seja o último sopro da civilização do petróleo. É provável que, já no próximo meio século, novas fontes de energia estejam a ponto de substituí-lo. “Daqui a 50 anos, o petróleo ficará cada vez menos importante, como ocorreu com o carvão no final do século XIX”, disse Adilson Oliveira. “O pré-sal é uma grande janela de oportunidade para o Brasil dar um salto tecnológico. Temos 20, 30 anos para isso. É uma oportunidade fantástica, mas não virá naturalmente.”
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