Como meu pai, que nadou até os 94 anos, quero nadar até morrer FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Por que adoro nadar
Podemos ficar suspensos num ambiente espesso e transparente, que nos ampara e nos envolve. Podemos mover as mãos como hélices e direcioná-las como pequenos lemes. Podemos ser hidroplanos ou submarinos
Oliver Sacks | Edição 4, Janeiro 2007
Éramos todos bebês, nós quatro. Nosso pai, que era campeão de natação (por três anos seguidos, ganhou a prova de quinze milhas disputada ao largo da ilha de White) e que, mais do que qualquer outra coisa, adorava nadar, nos familiarizou com a água, um de cada vez, quando mal tínhamos completado uma semana de vida. Nadar é instintivo nessa idade, e assim, para o bem ou para o mal, nunca “aprendemos” a nadar.
Lembrei-me disso há pouco, numa visita às ilhas Caroline, na Micronésia, onde vi até crianças que mal haviam aprendido a ficar de pé mergulharem destemidamente nas lagoas e nadarem no estilo cachorrinho. Lá, todos nadam, ninguém é “inapto” para a natação e a capacidade de nadar dos ilhéus é fantástica. Magalhães e outros navegadores, ao chegar à Micronésia, no século XVI, ficaram assombrados com essa capacidade. Quando viam os ilhéus nadar e mergulhar, saltitando de uma onda para outra, não podiam deixar de compará-los a golfinhos. As crianças, em especial, ficavam tão à vontade na água que pareciam, nas palavras de um explorador, “mais peixes do que seres humanos”. Foi com os ilhéus do Pacífico que, no início do século XX, nós ocidentais aprendemos o nado crawl, a linda e vigorosa braçada de comprido e fechada – muito melhor, muito mais adaptada à forma humana do que a braçada de peito, semelhante à de um sapo, usada até então.
Não me recordo de alguém ter me ensinado a nadar. Aprendi minhas braçadas, creio eu, nadando com meu pai – se bem que a sua braçada lenta, cadenciada, devoradora de quilômetros (era um homem vigoroso, que pesava perto de 115 quilos), não era nada apropriada para um garoto pequeno. Mas eu podia ver como o meu velho, enorme e desajeitado em terra, se transformava – gracioso como um boto – dentro da água. E eu, tímido, nervoso e também meio desengonçado, descobria em mim a mesma transformação deliciosa, descobria uma criatura nova, um novo modo de ser, na água. Tenho a nítida memória de umas férias de verão à beira-mar, na Inglaterra, um mês depois do meu quinto aniversário, quando corri para o quarto de meus velhos e mexi no corpo do meu pai, grande como uma baleia. “Vamos lá, pai!”, falei. “Vamos nadar.” Ele se virou devagar e abriu um olho: “O que você está fazendo, acordando desse jeito um velho de 43 anos, às seis horas da manhã?” Agora que meu pai está morto, e eu tenho mais de 60 anos anos, essa recordação tão antiga mexe comigo. Me dá vontade tanto de rir como de chorar.
A adolescência foi uma época ruim. Peguei uma doença de pele esquisita: Erythema annulare centrifugum, disse um especialista. Erythema gyratum perstans, disse um outro. Palavras bonitas, embrulhadas, pomposas. Mas nenhum dos especialistas pôde fazer nada, e fiquei coberto de feridas purulentas. Com o aspecto, ou pelo menos me sentindo com o aspecto de um leproso, não me atrevia a tirar a roupa numa praia ou numa piscina. E só eventualmente, se tivesse sorte, achava um lago ou um poço afastado.
Em Oxford, minha pele de repente ficou limpa, e a sensação de alívio foi tão forte que eu quis nadar nu, sentir a água correr por todas as partes do corpo, sem obstáculos. Às vezes, ia nadar ao raiar do dia, em Parsons Pleasure, uma reserva florestal que existe desde 1680, ou antes, para tomar banho nu e – temos a sensação – habitada pelos fantasmas de Swinburne e Clough. Nas tardes de verão, pegava um bote de fundo chato em Cherwell, achava um canto afastado para atracá-lo e depois ficava nadando preguiçosamente pelo resto do dia. Às vezes, de noite, eu dava longas corridas à margem do rio Isis, ia além de Iffley Lock, deixava muito para trás os limites da cidade. E depois dava um mergulho no rio e nadava, até que eu e ele parecíamos fluir juntos, virávamos uma coisa só.
Nadar tornou-se uma paixão dominante em Oxford e depois disso não houve mais recuos. Quando vim para Nova York, em meados dos anos 60, comecei a nadar em Orchard Beach, no Bronx, e às vezes fazia o circuito de City Island, que me tomava muitas horas. Na verdade, foi assim que achei a casa onde moro hoje: parei mais ou menos no meio do percurso, para olhar um gracioso coreto à beira da água; saí e passeei rua acima; vi uma casinha vermelha à venda e os donos espantados me levaram, ainda gotejante, para conhecer a casa toda; saí dali no encalço da corretora de imóveis e a convenci do meu interesse (ela não estava acostumada a atender clientes em sunga de banho); voltei para a água no outro lado da ilha e nadei de volta para Orchard Beach, depois de comprar uma casa no meio da natação.
Eu também adorava nadar em lagos e, muitas vezes, alugava um quarto num hotel velho e decadente no lago Jefferson, ao norte do estado de Nova York. Era um lago pequeno (cinqüenta acres), meio raso, onde ninguém andava de barco a motor nem esquiava, e onde eu podia nadar ou boiar de costas o dia inteiro, sem nenhum perigo, num mundo além das fronteiras e do tempo. Passei muitos de meus finais de semana mais felizes nadando nesse pequeno lago – e também muitos de meus finais de semana mais produtivos, pois existe alguma coisa em nadar e ficar na água que altera o meu estado de espírito, dá impulso aos meus pensamentos, como nada mais é capaz de fazer. Teorias e histórias construíam-se sozinhas em minha mente, enquanto eu nadava para um lado e para o outro, ou dava voltas pelo lago Jeff. Frases e parágrafos escreviam-se sozinhos em minha mente e, nessas horas, eu tinha de vir muitas vezes para a margem a fim de descarregá-los. A maior parte do livro Com uma perna só foi escrita desse jeito, os parágrafos se formavam durante longos percursos no lago Jeff, e eram descarregados, mais ou menos de meia em meia hora, gotejantes, no papel. (Meu editor ficou perplexo com as manchas de água e a tinta borrada no manuscrito, e fez questão de que eu o datilografasse.)
Eu preferia nadar ao ar livre – eu era mais resistente, na época – nos meses de abril até novembro, mas nadava na Associação Cristã de Moços no inverno. Em 1976-77, fui o primeiro lugar de nado em distância na ACM de Mount Vernon, em Westchester: nadei quinhentas voltas – quase dez quilômetros – na competição e teria continuado, mas os juízes disseram: “Chega! Por favor, vá para casa”. Alguém poderia pensar que dar quinhentas voltas fosse monótono, entediante, mas nunca achei monótono ou entediante nadar. A natação me dava uma espécie de alegria, uma sensação de bem-estar tão grande que às vezes se tornava uma espécie de êxtase. Havia uma entrega total no ato de nadar, em cada braçada, e ao mesmo tempo a mente podia flutuar livremente, cair num encantamento, num estado semelhante a um transe. Jamais conheci algo tão forte, tão sadiamente euforizante – e fiquei viciado nisso, ainda sou viciado, e me torno impaciente quando não posso nadar.
Duns Scotus, no século XIII, falou de condelectari sibi, quando a vontade encontra prazer no seu próprio exercício; e Mihaly Csikszentmihalyi, em nossa época, fala de “fluxo”. Existe uma comunhão essencial na natação, como em todas as atividades flutuantes e, por assim dizer, musicais. Além disso, há a maravilha da flutuação, de ficar suspenso naquele ambiente espesso, transparente, que nos ampara e nos envolve. Podemos nos mover na água, brincar com ela, de um jeito que não tem nada de análogo ao que se passa no ar. Podemos explorar a sua dinâmica, o seu fluxo, numa direção ou em outra. Podemos mover as mãos como hélices e direcioná-las como pequenos lemes. Podemos nos transformar num pequeno hidroplano ou submarino, investigando a física do fluxo com o próprio corpo.
E há todo o simbolismo da natação – suas conotações imaginativas, seu potencial mítico.
Meu pai chamava a natação de “o elixir da vida” e sem dúvida parecia ser isso mesmo para ele: meu pai nadava todo dia, apenas diminuía a velocidade com o tempo, até a formidável idade de 94 anos. Espero que eu possa seguir seus passos e nadar até morrer.
Leia Mais