Uma família aguarda para fazer o teste do coronavírus, em Assunção: o golpe mais duro na credibilidade do governo chegou num avião de carga com insumos médicos provenientes da China FOTO: JORGE SAENZ_AP PHOTO_GLOW IMAGES
Quarentena radical
A estratégia bem-sucedida para conter a Covid-19 – até a corrupção bater à porta
Jazmín Acuña | Edição 167, Agosto 2020
Quando o novo coronavírus tomou o rumo da América do Sul, havia duas apostas: o Paraguai, com um sistema de saúde precário, corria o risco de sucumbir. O Brasil, com seu histórico respeitável de combate a epidemias, poderia ser uma boa surpresa. Deu-se o contrário.
O Paraguai reagiu rápido ao avanço da pandemia. Medidas drásticas, tomadas ainda em março, como a suspensão de eventos públicos, o fechamento das fronteiras e a quarentena total, asseguraram ao país a proteção que precisava para evitar uma catástrofe. Com isso, até o dia 28 de julho, o Paraguai tinha apenas 4,6 mil casos positivos e 45 mortes – quando se previa, no início de tudo, um saldo apavorante de milhares de óbitos.
Enquanto isso, no Brasil, as coisas só pioravam. Em particular na Região Norte, onde a Covid-19 se infiltrou com voracidade. Em maio, uma pesquisa chamou a atenção para o flagelo: onze cidades do Norte se encontravam entre os quinze municípios brasileiros com a maior incidência de pessoas contaminadas. Liderando todos eles, estava Breves, a principal cidade da Ilha de Marajó. Ali, um quarto da população já havia sido contaminado pelo vírus.
Na edição de agosto, a piauí reconstitui as batalhas de um país e de uma cidade contra a contaminação. No Paraguai, a corrupção agora ameaça colocar por terra o sucesso exemplar de uma das nações mais pobres do continente. Breves enfrentou como pôde o fiasco da gestão brasileira da pandemia e hoje tenta retomar a vida cotidiana.
Abaixo, a reportagem de Jazmín Acuña, de Assunção.
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Tradução de Sérgio Molina e Rubia Goldoni
Nos primeiros dias de março, Guillermo Sequera, um epidemiologista de 41 anos, escreveu para Maria Belén Ramírez, sua colega na Faculdade de Ciências Médicas que havia deixado o Paraguai havia dez anos. Em sua casa na Califórnia, ela recebeu a mensagem que dizia: “Vem com a gente.”
“Onde ninguém quer ir, lá estou eu”, conta Belén, de 41 anos, num corredor de um edifício de cinco andares do Ministério da Saúde, no Centro de Assunção. Na fachada do prédio, uma placa escurecida pela fumaça dos carros identifica o local: Diretoria-Geral de Vigilância Sanitária. Dentro, nas salas com poucas janelas e iluminadas por lâmpadas fluorescentes, um grupo de funcionários públicos continua a trabalhar, mesmo depois de ter anoitecido. São eles os responsáveis por uma das estratégias de combate à pandemia mais bem-sucedidas da América Latina.
Diretor da Vigilância Sanitária, Sequera começou a monitorar o avanço do novo coronavírus ainda em janeiro, quando o país vivia a maior epidemia de dengue da sua história. Antes mesmo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarasse o estado de emergência internacional, no dia 30 daquele mês, a sua equipe rastreou todas as pessoas que haviam entrado no Paraguai vindas da China continental, epicentro da Covid-19.
Em 10 de março, três dias depois de confirmados os dois primeiros casos no país, o grupo quebrou outro protocolo da OMS e conseguiu o impensável: um decreto do governo determinando a suspensão de todas as atividades que implicassem a aglomeração de pessoas (na época, a organização só recomendava a quarentena em casos de transmissão comunitária, o que não estava ocorrendo no Paraguai). Foi nesse momento que Sequera escreveu à colega na Califórnia.
Aos 14 anos, Maria Belén Ramírez viu uma foto dos Médicos sem Fronteiras e decidiu que era aquilo que gostaria de fazer quando crescesse. No último ano da faculdade de medicina, ligou para o escritório da organização e propôs se unir às suas fileiras. Dois anos mais tarde, passou a atuar com os Médicos sem Fronteiras e, desde então, vem deixando um rastro de Marias e Mários pelo mundo afora: crianças cujos pais as chamaram assim por causa do primeiro nome da médica que as ajudou a vir ao mundo.
Como médica humanitária, Belén sentiu na própria pele a violência de conflitos armados e as consequências de Estados falidos, em países como Iêmen, Sudão do Sul, Nigéria, Guatemala e Colômbia. Ela chama suas viagens de “missões”. Neste ano, planejava retornar ao Congo, onde esteve em 2019 combatendo o ebola. Entretanto, ao receber a mensagem de Sequera, mudou de planos – e embarcou para o Paraguai num dos últimos voos antes do fechamento total das fronteiras do país, a partir de 28 de março. Belén chegou sem contrato e sem saber muito claramente que desafios enfrentaria num país com um dos investimentos per capita em saúde mais baixos da América do Sul. Cumprida a quarentena obrigatória, ela imediatamente se uniu à equipe da Vigilância Sanitária.
Com o passar das semanas, ficou cada vez mais claro que as decisões tomadas pelo governo para evitar o avanço do novo coronavírus tinham origem no trabalho daquela equipe. E que, contrariando muitas previsões pessimistas – inclusive de autoridades do Ministério da Saúde –, as medidas vinham sendo eficazes na contenção do vírus no país. Enquanto as notícias que chegavam do Brasil falavam em dezenas de milhares de mortos e da angústia coletiva, no Paraguai, em 28 de julho, havia 4,6 mil casos confirmados do novo coronavírus e 45 mortos – o país era o quarto da América do Sul com menor índice de contágio e óbitos, depois de Guiana, Uruguai e Suriname.
Nos hospitais paraguaios também não se viram salas superlotadas nem correrias de emergência. As UTIs ficaram praticamente vazias por semanas, o que era o principal objetivo de uma das quarentenas mais rígidas adotadas no hemisfério Sul.
As providências que o Paraguai tomou para conter a Covid-19 surpreenderam as autoridades do Brasil, e mesmo da Argentina e do Uruguai, quando os ministros da Saúde do Mercosul se reuniram em Assunção para tratar dos problemas epidemiológicos na região, em final de fevereiro. Cancelar o visto de cidadãos de países de risco, como Coreia do Sul e Itália, e manter em quarentena domiciliar todos os que regressavam foi considerado um exagero beirando o ridículo.
Com a suspensão das aulas presenciais em escolas e universidades (que deverá durar até o final do ano), militares nas ruas, proibição terminante de circulação à noite e paralisação de todas as atividades econômicas, exceto alguns serviços essenciais, como o comércio de alimentos, o Paraguai se recolheu por três meses.
No início de abril, o ministro da Saúde publicou em suas redes sociais instruções para confeccionar máscaras caseiras e insistiu no seu uso em espaços públicos. Apenas dois meses mais tarde, em 5 junho, a OMS atualizou seus critérios sobre a utilização de máscaras, fazendo recomendações que, àquela altura, já eram parte do cotidiano dos paraguaios e de cidadãos de outros países. Antes disso, a organização só aconselhava as máscaras para profissionais de saúde e pessoas que apresentassem sintomas ou cuidassem de pacientes com o vírus.
Todo esse esforço do Paraguai foi para “achatar a curva” e evitar que entrasse em colapso o seu sistema de saúde, que não consegue oferecer uma cobertura eficiente aos mais de 7 milhões de habitantes e então dispunha de menos da metade das vagas de UTIs necessárias ao atendimento de pacientes em circunstâncias normais. Já em 2019, o ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, havia declarado que seria preciso, no mínimo, dobrar o orçamento da sua pasta para resolver algumas carências crônicas. Pesquisadores calculam que 40% do gasto em saúde no país saem diretamente do bolso das pessoas: medicamentos, cirurgias, traslados. Uma doença crônica pode jogar uma família inteira na pobreza.
Um médico de 69 anos foi a primeira pessoa a morrer por causa da Covid-19 no Paraguai, depois de ter atendido um homem vindo da Argentina de ônibus que não se sabia estar contaminado pelo vírus. O médico trabalhava na mesma clínica particular onde Belén havia feito sua residência, nos tempos de estudante. Ela, então, se mobilizou para auxiliar na implementação de sistemas de proteção nos hospitais, pois sabia como ajudá-los. “Muito do que eu fazia no Congo era capacitar o pessoal de saúde. Para lidar com o ebola, uma das coisas mais importantes é saber como pôr e tirar a roupa com segurança”, disse. “Estamos lidando com o ebola há 44 anos. É uma doença muito letal. Apesar disso, eu não tive tanto medo dela como tenho do novo coronavírus. O ebola eu conheço e sei como me cuidar. Já o novo coronavírus ninguém conhecia, ninguém sabia seu poder de contágio. Tínhamos medo do desconhecido.”
No início de abril, surgiu um novo desafio para a equipe da Vigilância Sanitária. Na fronteira fechada com o Brasil, desenhou-se uma imagem atípica: dezenas, às vezes centenas de paraguaios se apinhavam na Ponte da Amizade, entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, tentando voltar ao seu país – em vez de querer abandoná-lo, como era mais comum. A maioria vinha de São Paulo, que se tornara o epicentro dos contágios na América Latina. Eram jovens originários das zonas mais pobres do Paraguai, expulsos pela expansão do agronegócio, o setor mais rico do país, que ocupa muita terra, mas emprega pouca gente. Em São Paulo, essas pessoas trabalhavam em lojas e tecelagens do Brás e do Bom Retiro, que fecharam por causa da pandemia.
Assustados e sem esperanças de recuperar logo seus empregos, decidiram viajar de ônibus até Foz do Iguaçu. Não sabiam que, chegando à fronteira, teriam que esperar e dormir na ponte por vários dias, até que sua entrada no Paraguai fosse autorizada. Não sabiam também que, uma vez em seu país, precisariam aguardar mais tempo ainda, em quarentena.
Desde 24 de março, quando foi decretado o fechamento das fronteiras, o presidente Mario Abdo determinara que quem voltasse ao Paraguai precisaria cumprir quarentena em albergues oficiais. O governo assegurava que o maior risco de contágio já não se encontrava dentro do país. O perigo que colocaria em xeque a contenção efetiva do vírus viria de fora – do Brasil. Assim, por temer que as pessoas não cumprissem o isolamento em suas casas ao voltarem ao Paraguai, foi imposta a obrigatoriedade de permanecerem nesses estabelecimentos, a maioria deles sob a custódia de militares.
“Os hospitais estão vazios porque os albergues estão cheios.” Com essa frase, o assessor de assuntos internacionais da Presidência, Federico González, responsável por controlar o retorno dos emigrantes, resumiu a eficácia da medida para conter a propagação do vírus. Os dados publicados diariamente pelo ministro da Saúde em sua conta do Twitter confirmavam essa convicção: desde 1º de maio e durante vários dias, mais de 90% dos casos positivos de Covid-19 no país haviam sido diagnosticados nos 49 albergues.
Sequera nunca descartou a suspeita de que as pessoas também podiam se contagiar ali. “É o custo da estratégia. Estamos arriscando a saúde de poucos para evitar que muitos mais corram riscos”, disse. Para lidar com esse problema, ele voltou a recorrer a Belén, que assumiu o compromisso de elaborar um protocolo sanitário para os estabelecimentos que albergassem. Até 24 de julho, mais de 3,6 mil pessoas que voltaram ao Paraguai haviam passado por esses locais.
No início de julho, quando o prefeito de Ciudad del Este, Miguel Prieto, declarou à imprensa que não acreditava no novo coronavírus, Belén compartilhou no Twitter uma história. No ano passado, no Congo, uma aldeia recebeu com pedras uma equipe de médicos que havia ido até lá por causa de um surto de ebola. Os médicos, porém, conseguiram falar com os líderes locais e concluíram que todos os doentes tinham passado por um posto de saúde cujo enfermeiro-chefe não acreditava na doença. Pelo rádio, ele espalhava que o ebola era uma invenção dos brancos e garantia que estava apto a salvar as pessoas. Um dia, esse mesmo enfermeiro foi contaminado e acabou no hospital onde Belén atendia. Ela rezou para que o homem sobrevivesse e pudesse contar que o ebola existe. Mas ele morreu. “Já vivi muitas situações complicadas na minha vida por causa de teorias da conspiração”, acrescentou a médica no Twitter.
Ela fez uma longa pausa antes de falar do Brasil. “Raiva e medo. É isso que eu sinto quando penso no Brasil. Porque, aqui, fizemos a coisa certa, mas no nosso vizinho, um país tão grande e do qual dependemos tanto, as autoridades passaram mensagens erradas desde o início.” Ela reconhece que o tamanho do país dificulta a governabilidade nessa situação de emergência, ainda que o Brasil tivesse, até agora, um bom histórico de combate a epidemias. O fato de o Paraguai ser pequeno, em geral uma desvantagem, facilitou o enfrentamento da pandemia.
Sequera enumera três fatores que considera fundamentais para o sucesso da estratégia sanitária adotada por ele e sua equipe. “Primeiro, a rapidez com que agimos para deter a propagação do vírus. Fomos o primeiro país do continente a fazer isso. Segundo, fizemos direito. E, pelo menos nos dois primeiros meses, as medidas foram bem aceitas pela população.”
As penalidades para quem desrespeitasse as regras foram drásticas. Em abril, a senadora María Eugenia Bajac, do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), foi expulsa do Congresso. A parlamentar, que é ex-pastora evangélica, tinha viajado em março para participar de um seminário religioso no Peru. Ao voltar, fez o teste para a Covid-19 por apresentar sintomas leves. Contrariando as recomendações das autoridades, Bajac compareceu a uma sessão do Senado antes de saber o resultado, que saiu no dia seguinte – era positivo. Parlamentares, jornalistas e outros trabalhadores que haviam se aproximado dela foram obrigados a se isolar. Por videoconferência e por unanimidade, os senadores decidiram cassar o mandato de Bajac.
Um casal foi alvo de repúdio nas redes sociais em maio por ter publicado fotos de sua festa de casamento em plena quarentena, apesar de o Registro Civil só permitir a tramitação, em caso de urgência, de certidões de nascimento e óbito. Depois de muita indignação pública e pressão da mídia, o Ministério Público indiciou os recém-casados. Também foi indiciado, no mesmo mês, o prefeito José Carlos Acevedo, de Pedro Juan Caballero, cidade situada na fronteira norte do país, que foi filmado desafiando a barreira militar e atravessando a fronteira com o Brasil, rumo a Ponta Porã. As autoridades determinaram a prisão preventiva do prefeito quando ele voltou do país vizinho.
Em meados de junho, o Ministério Público já havia indiciado mais de 3 mil pessoas por violação da quarentena. Logo surgiram denúncias de abusos policiais, incentivados pela retórica autoritária do ministro do Interior, Euclides Acevedo. Grupos de WhatsApp e nas redes sociais compartilharam vídeos de guardas humilhando jovens pobres que andavam nas ruas fora do horário permitido. Até agora, está se estudando formas de aliviar a superlotação das cadeias.
Para Sequera, no entanto, o fator mais decisivo foi o terceiro: a confiança da população. “As pessoas acreditaram nas autoridades, por isso conseguimos deter o vírus de forma eficiente”, disse. “Mas depois acabamos perdendo essa vantagem.”
Não foram teorias conspiratórias sobre o vírus, grupos anticientíficos sabotando a quarentena nem propaganda da cloroquina que minaram a estratégia sanitária. Foi a corrupção. As denúncias de irregularidades do governo na compra de insumos para a contenção da pandemia não demoraram a surgir, quebrando a inédita boa imagem que as autoridades haviam conquistado de início.
No final de março, poucos dias depois do decreto de quarentena total, o presidente Mario Abdo apresentou um plano de contingência econômica que foi aprovado pelo Congresso em menos de 48 horas, liberando 1,6 bilhão de dólares, sendo 514 milhões destinados a gastos com a saúde. Autoridades que tentaram lançar mão dessa verba de emergência não sujeita aos controles habituais logo se viram envolvidas em escândalos.
O primeiro da lista foi o chefe da Direção Nacional da Aeronáutica Civil, Édgar Melgarejo, acusado de superfaturar uma licitação de máscaras. O preço de compra que constava no contrato era dez vezes maior que o estabelecido pelo próprio Ministério de Saúde. Melgarejo pediu demissão, e a Procuradoria instaurou um inquérito, que descobriu uma rede de empresas de fachada, criadas com o único intuito de desviar recursos públicos em conluio com as autoridades.
Depois foi a vez de Patricia Samudio, presidente da Petropar, a estatal que administra o setor de petróleo e gás. Indagada sobre o motivo para autorizar a compra de 5 mil garrafas de água tônica com recursos destinados ao enfrentamento da pandemia, Samudio tentou se justificar recorrendo a uma fake news: “A água tônica tem propriedades que reforçam a imunidade, por isso fizemos essa compra.” No dia seguinte, a Procuradoria fez uma busca na sede da empresa estatal. Algumas horas mais tarde, Samudio pediu demissão, em 22 de abril.
O golpe mais duro na credibilidade do governo chegaria num avião de carga proveniente da China, com os primeiros insumos médicos licitados pelo Ministério de Saúde para a emergência sanitária. As autoridades decidiram recusar as máscaras, capas e outros equipamentos de proteção pessoal porque não correspondiam aos parâmetros definidos no contrato. Refeita a licitação, as duas empresas locais vencedoras entraram na mira do escrutínio público. Descobriu-se, então, um esquema por meio do qual algumas famílias enriqueceram à custa de licitações arranjadas e apadrinhadas por políticos. O ministério rescindiu o contrato com as empresas, enquanto a Procuradoria denunciou os diretores responsáveis pelas compras canceladas.
Os indiciamentos e inquéritos não bastaram para aplacar o sentimento da população de que seu esforço para acatar as exigências da quarentena estava sendo inútil. Se o motivo que justificava o isolamento era ganhar tempo para equipar os hospitais, que não vinham sendo equipados, alguma coisa estava muito errada. Em resposta às críticas, o governo criou uma comissão para fiscalizar as compras durante o combate à Covid-19. No dia 7 de julho, o líder da comissão, Arnaldo Giuzzio, um ex-promotor que construiu sua carreira tendo como bandeira a luta anticorrupção, publicou a conclusão das investigações sobre as licitações suspeitas. “Não houve prejuízo patrimonial”, assegurou. Essa declaração só fez aumentar a suspeita de desvios e impunidade.
A desconfiança contra o governo se completou com a ameaça de perda de centenas de milhares de postos de trabalho em consequência das medidas de isolamento. Desde o início da quarentema, o Instituto de Previdência Social, responsável pela seguridade dos trabalhadores no país, recebeu mais de 170 mil pedidos de compensação por perda de emprego. Mas é impossível saber ao certo o número total de prejudicados, porque sete de cada dez trabalhadores no Paraguai são informais, sem nenhum contrato. A maioria deles atua nos setores de construção e comércio – são aproximadamente 1,5 milhão de pessoas cujas atividades foram totalmente paralisadas na quarentena.
As pequenas e médias empresas, justamente as mais atingidas pela crise, empregam mais de 50% da população. São pessoas como Ana Moray, mãe solteira de dois filhos, de 3 e 6 anos, responsável pela limpeza de uma fábrica de alimentos que, em abril, os donos decidiram fechar por tempo indeterminado. O contrato de Moray foi rescindido. “Com o que recebi de indenização, vou abastecer minha despensa e me virar com isso”, disse ela, que ganhava um salário mínimo (cerca de 1,6 mil reais). “A situação está difícil”, afirmou ela, em guarani, idioma falado por mais da metade dos paraguaios, uma marca linguística da população rural do país e também dos mais vulneráveis à crise econômica. Para enfrentar a fome que se espalha, centenas de mulheres têm organizado sopões na periferia da capital.
Na tentativa de amenizar a situação, o plano de contingência econômica permitiu que famílias em dificuldades adiem o pagamento das contas de luz e água. Também foi liberado um auxílio de 545 mil guaranis (cerca de 410 reais) para trabalhadores informais e de 230 mil guaranis (em torno de 173 reais) de ajuda alimentar para famílias com poucos recursos. Moray preencheu o formulário online para solicitar essa ajuda.
O Fundo Monetário Internacional estimou, em abril, que o Paraguai seria uma das nações da América do Sul menos atingidas pela queda da atividade econômica. Mas o ex-presidente do Banco Central, Carlos Fernández Valdovinos, afirmou numa recente entrevista que o país atravessaria uma das piores crises econômicas da sua história. “Sim, é isso mesmo, é verdade”, confirmou o ex-ministro da Fazenda Dionisio Borda, economista responsável pela estabilidade macroeconômica que o Paraguai experimentou nos últimos quinze anos. Ele ocupou a pasta no governo do presidente Nicanor Duarte Frutos em 2003 e voltou ao cargo em 2008, durante o governo de coalizão de esquerda presidido pelo ex-padre Fernando Lugo. Desde então, o país viveu um período de crescimento sustentado.
“Os custos da recessão serão maiores para os setores que geram mais emprego”, alertou Borda, que não poupou críticas a quem acumula riqueza explorando a terra para a exportação de grãos. Apesar da crise, o agronegócio reluta a colaborar para a reativação econômica resistindo a qualquer iniciativa que vise aumentar sua contribuição aos cofres públicos. Este setor, que tem ampla participação de brasileiros residentes no Paraguai, contribui com apenas 2,6% da arrecadação, cuja maior fatia corresponde aos impostos regressivos pagos por toda a população.
Em 2018, o Estado devolveu aos exportadores de soja, sob a forma de créditos públicos, sete vezes mais dinheiro do que eles pagaram em impostos. Além disso, foram beneficiados com o refinanciamento de dívidas e o investimento em pesquisa e infraestrutura. O economista Fernando Masi, ex-assessor de Borda e cofundador, com ele, de um centro de pesquisas econômicas, definiu esse tratamento especial como “o maior subsídio concedido pelo Estado paraguaio a um setor”. Ano após ano, são propostos e derrubados projetos de lei para que os sojicultores paguem mais impostos.
Este ano também foi reapresentada uma proposta de aumento do imposto sobre o cigarro, que atualmente é o mais baixo da América do Sul. O Senado barrou a iniciativa. O projeto de ajuste tributário sancionado manteve a taxação sobre os cigarros simples em 18% e aumentou a dos cigarros de luxo de 22% para 24% – apesar de o Ministério da Saúde ter insistido em que esse percentual ainda seria insuficiente. Hoje, esse imposto cobre menos de um quinto do gasto público com as doenças causadas pelo consumo de cigarros. Os impostos baixos também incentivam – como mostram várias pesquisas – a produção que inunda, por exemplo, o mercado brasileiro com cigarros contrabandeados. Nas repetidas denúncias das autoridades brasileiras sempre aparece a empresa de cigarros do ex-presidente Horacio Cartes.
Borda alertou ainda para o risco do endividamento excessivo do país. A última iniciativa do governo foi apresentar um plano de reativação econômica que implicaria assumir outra dívida de 350 milhões de dólares. “Chegaríamos assim ao limite da capacidade de endividamento do Estado paraguaio, 30% do PIB, e aí é preciso levar em conta a baixa carga tributária, de 10% do PIB”, explicou.
Desde 4 de maio, vigora no Paraguai o que o governo chama de “quarentena inteligente”. É um processo de relaxamento das medidas mais rígidas de isolamento social. Em maio, ocorreu uma média diária de 23 casos de contágio. A partir do início de junho, essa média subiu para quarenta casos. Mas, por enquanto, o país ainda está em uma situação de saúde administrável.
Em 15 de junho começou a ser implementada a fase 3 da “quarentena inteligente”, que permite a reabertura de restaurantes e afins. A imagem que poderia sintetizar a situação de grande parte deles são os cartazes anunciando “Passa-se o ponto”, enquanto pedestres com máscaras caminham apressados para os locais de trabalho que ainda se mantêm à tona depois da retração.
O epidemiologista Guillermo Sequera dá como certo que a essa altura o vírus está circulando ativamente entre as pessoas. Mas ele mantém seu otimismo. “A população está treinada, já se acostumou a certas normas, incorporou hábitos como lavar as mãos com mais frequência do que antes.”
Seu otimismo se justifica. Afinal, o Paraguai, apesar de ter um dos sistemas de saúde mais precários do continente, conseguiu até agora ser um bom exemplo no combate à Covid-19. É uma lição e tanto para um país como o Brasil, que, apesar de ter o maior sistema universal de saúde do mundo, está produzindo, lamentavelmente, um vexame mundial na luta contra a pandemia.
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