Pazuello, depois de ser desautorizado em público por Bolsonaro: agora, com marketing pessoal CREDITO: REPRODUÇÃO_FACEBOOK
“Quem é feliz não pega Covid”
Por dentro de uma reunião no Ministério da Saúde
Malu Gaspar | Edição 172, Janeiro 2021
Eduardo Pazuello entrou na sala de reuniões contígua ao seu gabinete no Ministério da Saúde e encontrou cerca de vinte pessoas, entre secretários e assessores. Estava animado e de bom humor, mas já foi avisando: “Eu não vou falar nada.” A equipe estava reunida naquele 1º de dezembro para discutir a estratégia que o ministro adotaria na reunião da comissão do Congresso que acompanha as ações de combate à pandemia da Covid-19. Seria a primeira aparição de Pazuello diante de uma comissão parlamentar, depois que ele mesmo contraiu a doença e saiu de cena por três semanas. Chegou a ser internado e, antes disso, amargou a humilhação de ser desautorizado publicamente por Bolsonaro quando anunciou a assinatura de um protocolo para comprar a CoronaVac, a vacina produzida pelo Instituto Butantan e a chinesa Sinovac.
Agora, o Congresso o convidara para explicar por que mais de 7 milhões de testes de detecção da doença se acumulavam num armazém do Ministério da Saúde, com data de validade prestes a expirar, sem terem sido enviados aos estados. O caso havia sido revelado uma semana antes pelo jornal O Estado de S. Paulo, e o governo ainda não havia dado uma explicação convincente. O secretário Nacional de Vigilância, Arnaldo Medeiros, chegara a declarar que o prazo de validade dos testes era “cartorial”, ou seja, uma formalidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que poderia ser revista sem grandes problemas. Foi desmentido pela própria diretora da Anvisa, Cristiane Gomes, que afirmou que o prazo era estabelecido pela fabricante do exame, a coreana Seegene. Pazuello preferia não ter que discutir o assunto. “Eu não vou falar nada. Vou fazer a abertura e vou sair, não quero ficar respondendo perguntas”, disse, logo que se instalou na cabeceira da mesa.
Começou então uma discussão típica das reuniões do ministério, que não costumam ter pauta detalhada e em que as vozes se sobrepõem em conversas paralelas. Enquanto um garçom vestido de branco circulava servindo água e café, eles especulavam sobre as perguntas que podiam surgir na comissão. De vez em quando, uma fala se destacava, até que o próprio secretário Medeiros sugeriu uma versão para o imbróglio dos testes. “Isso aí está resolvido, é o que eu já falei. A Anvisa vai revalidar a data. Onde se lê dezembro de 2020, é só colocar dezembro de 2021. Você já usou bronzeador? É como quando você usa um bronzeador que está para vencer, passa a data de validade e você usa igual, é a mesma coisa. Não vai fazer mal para você.” Os colegas não fizeram comentário, mas um assessor achou melhor avisar que a explicação não ia pegar muito bem. Medeiros não insistiu.
Uma das preocupações da equipe era a de que Pazuello fosse questionado sobre as negociações para a aquisição de uma vacina. O primeiro lote de CoronaVac, a vacina encomendada pelo governo João Doria, já tinha chegado ao Brasil, e um assessor alertou: “O pessoal de São Paulo vai querer defender o Doria e tirar de vocês um prazo.” Pazuello fez cara de desdém. O assessor especial Zoser Plata Bondim Hardman de Araújo, advogado conhecido por defender ex-banqueiros, políticos e acusados de formar milícias, disparou: “Doria é o maior pau pequeno, um boiola!” Ouviram-se risadas. Entre uma piada e outra, alguém lembrou de alertar que todos deviam estar de máscara na audiência pública, que seria virtual. Ali, naquela reunião, quase ninguém usava máscara.
No entorno de Pazuello, alguns notavam que ele parecia confiante demais para o tamanho da crise e da quantidade de perguntas sem resposta. Os mais próximos temiam que o ministro, com sua animação exagerada e ainda convalescente de Covid, se cansasse demais e acabasse piorando. Ao voltar ao trabalho, em meados de novembro, ele tinha declarado que ainda não estava plenamente recuperado. Ao contrário de Jair Bolsonaro, que já chamou a Covid de “gripezinha”, Pazuello admitiu: “É uma doença complicada.”
Apesar do exemplo do ministro, os assessores mais graduados, quando cobrados pelo uso de máscara, costumam dizer o seguinte: “Quem é feliz não pega Covid.” Na reunião com sala lotada, o ministro também estava sem máscara, mas com ele o cuidado era maior. Vez por outra, alguém vinha soprar em seu ouvido que ele precisava descansar, que já havia se esforçado demais, que podia ir embora. Pouco antes das 19 horas, ele se levantou. “Então vocês encaminhem tudo aí. Vocês são uma equipe altamente técnica, não há nada que não saibam responder.” Em seguida, começou a elogiar o pessoal. “Está todo mundo de parabéns, fazendo um excelente trabalho. Quantas coisas a gente fez desde que chegou aqui. Graças a esta gestão, a classe médica aprendeu que tem de haver o diagnóstico precoce e que não é necessário intubar [o paciente]. Tanta gente morreu por causa de recomendações erradas! Parece que está passando um filme na minha cabeça. Agora eu tenho uma equipe, está aqui comigo o Markinhos, que vai cuidar do meu marketing pessoal…”
Só então o ministro apresentou à equipe o assessor que o acompanhava. Era Markinhos Marques, ou Marcos Eraldo Arnoud Marques, publicitário que foi secretário de Comunicação de Roraima na gestão em que Pazuello ocupou a Secretaria da Fazenda, durante a intervenção federal no estado, decretada em dezembro de 2018. O ministro não explicou o que queria dizer com “marketing pessoal”, nem qual era o status funcional do marqueteiro, que ainda não estava na folha de pagamento do Ministério da Saúde. Segundo a assessoria de imprensa do ministério, Markinhos “será nomeado em breve” para um cargo de confiança. Mesmo assim, Markinhos já parecia em casa. Depois que o ministro foi embora, reuniu-se com um grupo menor, num canto da sala, e determinou a ordem em que os secretários falariam, depois que Pazuello se retirasse da audiência.
No dia seguinte, na comissão no Congresso, o ministro começou o discurso avisando que não ficaria até o final porque tinha uma reunião no Palácio do Planalto. Não negou que os testes de Covid estivessem encalhados em Guarulhos, mas desprezou a necessidade de datas de validade. Disse que o ministério tinha um sistema de armazenamento de Primeiro Mundo, que preservava a integridade dos materiais. Também afirmou que os exames não foram enviados aos estados porque não foram requisitados. “Os estados receberam todos os testes que demandaram.”
Repetiu que a vacinação não seria obrigatória, mas disse que trabalharia por uma “vacina campeã”. Afirmou que as primeiras doses fornecidas pelo consórcio da AstraZeneca com a Universidade de Oxford e a Fiocruz chegariam ao Brasil em janeiro, e reclamou que as propostas dos laboratórios eram pífias: “Como tudo na vida, na hora que você vai efetivar a compra, vai escolher, não tem bem aquilo que tu quer, o preço não é bem aquele e a qualidade não é bem aquela. E quando a gente aperta, as opções diminuem bastante.” Nem ele nem seus secretários mencionaram o protocolo com a CoronaVac durante a reunião.
Pazuello acabou ficando cinquenta minutos na audiência virtual. Nos dias seguintes, quase tudo o que foi dito em três horas de falação já não servia. A validade dos testes fora estendida por quatro meses e as propostas dos laboratórios deixaram de ser consideradas pífias – o ministro anunciou que a Pfizer estava prestes a vender 70 milhões de doses ao Brasil e que as primeiras poderiam chegar já em dezembro, um prazo que o presidente da fabricante apressou-se em negar. No sábado, dia 12, mesma data em que entregou um plano de vacinação ao Supremo Tribunal Federal, que o considerou incompleto, Pazuello foi a um almoço na casa do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB). Posou sorridente e despreocupado para fotos com os convidados, entre eles o cantor Zezé Di Camargo. Não se via ninguém de máscara.
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