O Rio reviveu, sem derramamento de sangue, as tumultuadas origens históricas do lugar. Na versão 1992, líderes espirituais, indígenas e carnavalescos prolongaram a festa no Aterro FOTO: CARLÃO LIMEIRA_AGE_AGÊNCIA ESTADO
Recordações alucinatórias
Se Woodstock, a Conferência de Yalta e o Festival de Cinema de Cannes tivessem acontecido ao mesmo tempo, o conjunto se assemelharia à Rio-92
Marcos de Azambuja | Edição 68, Maio 2012
“Se o Dalai Lama vier ao Rio de Janeiro, a China não participará da Conferência.” O recado de Pequim era claríssimo e o golpe abaixo da linha da cintura. De Nova York e de todos os quadrantes o recado das organizações não governamentais e de todos os ativistas era simetricamente oposto. Se ele não pudesse vir até aqui, então seriam elas e eles que provavelmente não viriam.
O então secretário-geral da ONU, Boutros-Ghali, não mostrava nenhuma disposição para nos ajudar. Sua estratégia para permanecer no cargo exigia que a China o apoiasse quando chegasse a hora de sua reeleição. Dele não nos chegaria socorro, pois não tinha simpatia pelos grupos que projetavam o Dalai Lama como um grande símbolo mundial da luta pela liberdade de culto e de expressão. Era homem de convívio difícil e quando o momento chegou, apesar de tudo, não foi reeleito.
O governo brasileiro foi colocado, mesmo antes de o jogo começar, em uma incômoda posição: não desejava de forma alguma impedir a participação de ninguém na Conferência e ainda menos a do líder religioso – e também grande símbolo político mais pessoalmente identificado com as teses de conservação da natureza e de respeito a todos os seres vivos. Da mesma forma – e naturalmente – não queríamos alienar a China, presença essencial na conferência e parceira indispensável no desenho da nova agenda mundial. Mesmo antes de acontecer, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como a Eco-92, ou ainda como a Cúpula da Terra ou simplesmente como a Rio-92, parecia ameaçada.
O Dalai Lama finalmente (e felizmente) veio ao Rio e depois andou pelo Brasil, mas sua presença e sua fala principal se deram aqui no vasto e multitudinário palco paralelo montado no Aterro do Flamengo. Ali reuniu-se a mais diversa convocação de causas, gurus e tribos que estas nossas praias jamais viram e foi o momento que reviveu, desta vez sem derramamento de sangue, as tumultuadas origens históricas do lugar, quando franceses e portugueses, cada um com seus aliados índios, se enfrentavam para saber a quem caberia o controle das terras cariocas.
Guardo de certos momentos no Aterro uma recordação que, sem ter consumido nenhuma droga, só posso chamar de alucinatória. Jane Fonda, Bianca Jagger e Shirley MacLaine estavam próximas a dom Hélder Câmara e a seguidores amazônicos do Santo-Daime. Um grupo de indígenas canadenses, trazidos por Hanne Strong, mulher do secretário-geral da Conferência, mantinha um ritmo constante com seus tambores e invocava os poderes e a proteção de Manitou. Cultores de Iemanjá e talvez duas dúzias de senadores e deputados americanos – entre os quais Al Gore – estavam lado a lado. Xamãs de várias seitas e líderes espirituais da Índia traziam sua mensagem. Por razões que então como agora não consigo alcançar, em certo momento ficaram perto do Grande Lama: Joãozinho Trinta e Pelé, que demonstrava, como sempre, seu inesgotável talento de estar presente e ser altamente visível em qualquer acontecimento de repercussão.
Ali estavam ainda, formando um inesperado dueto, Plácido Domingo e Roger Moore como se o então James Bond tivesse renunciado a sua licença para matar e finalmente sucumbir à irresistível mensagem de paz de Sua Santidade Tenzin Gyatso, que é o nome que trazia do berço o 14º dalai-lama.
Além dos acontecimentos na orla do Flamengo, o Jardim Botânico do Rio viveu grandes momentos. Ocorreu a muitos chefes de delegação, com um olho em seus eleitores que ficaram em casa e conscientes das virtuosas photo opportunities que o momento oferecia, a ideia de plantar árvores, o que levou a que se engajassem em um simbólico mas intenso e prestigioso programa de reflorestamento.
Alguém me disse que o conjunto de eventos no Rio, em 1992, fora como se Woodstock, o Festival de Cannes e a Conferência de Yalta tivessem acontecido ao mesmo tempo e em um só lugar. Não é pouca coisa.
Bem antes e depois da Rio-92 foram certamente realizadas imensas conferências com participação universal ou quase universal. Muitas outras virão. O que aconteceu de inédito naquele momento foi sobretudo a emergência, triunfante e ruidosa, de uma vigorosa sociedade civil e das organizações não governamentais que haviam sido criadas por ela. Bem mais do que o mundo oficial, ambas haviam impulsionado a consciência ecológica e proposto uma nova agenda para a sociedade internacional, fazendo com que os grandes e surrados temas das longas décadas da Guerra Fria fossem substituídos pelas preocupações ambientais e pela defesa dos direitos humanos.
A matriz do movimento ecológico e seu principal motor foi sempre o ativismo da sociedade civil que trouxe, a reboque, os governos e as organizações estatais, fossem elas nacionais ou internacionais. A adesão oficial ao temário ambientalista sempre se deu com algum atraso e com uma não pequena dose de relutância. A própria criação por vários governos de ministérios ou outros órgãos equivalentes dedicados ao meio ambiente foi decisão tardia. Com o risco de generalizar, é preciso dizer que os órgãos oficiais de proteção ambiental não costumam fazer parte do núcleo central do processo decisório das grandes potências.
Mesmo nas fotografias oficiais dos membros de um governo é fácil identificar o responsável pelo meio ambiente: costuma ser o de barbas ou cabelos mais longos, vestido de maneira informal e colorida para indicar que são outros os seus modelos e objetivos, e que não quer ser identificado com a matriz burocrática e convencional de seus colegas.
Até três meses antes da abertura da Conferência, o nosso ministro para o Meio Ambiente era um personagem fora do comum, o teuto-gaúcho José Lutzenberger, que ajudou muito para que o Brasil passasse a ser visto como um amigo da natureza e não como seu algoz. Lutzenberger instalou-se para trabalhar em Brasília, não na Esplanada dos Ministérios, mas em um prédio mais rústico em um dos parques da cidade onde era assessorado, acredito que de forma gratuita, por algumas assistentes que falavam e funcionavam em alemão e que me davam a impressão de ter com a nossa língua e com os nossos hábitos uma relação hesitante e superficial.
José Lutzenberger era uma das luzes da Fundação Gaia, por ele criada, e todos viam a sinceridade de sua paixão pela causa ambiental e seu repúdio às práticas mais grosseiras daquilo que então era aceito como exigências do desenvolvimento. Começou a vida trabalhando para empresas multinacionais no campo da química aplicada à agricultura e mais tarde, convencido de que aquele era um mau caminho, repudiou essas más companhias e converteu-se às práticas que garantiriam sustentabilidade no manejo do solo. Como em um passe de mágica tínhamos passado, em boa hora, de uma grande desconfiança com relação às novas causas ambientais a uma militância ocasionalmente apaixonada por algumas de suas manifestações mais radicais.
Mesmo naquele momento em que o mundo não oficial mostrava seu vigor era necessário reconhecer que os governos, então como agora, não iriam evidentemente desaparecer e seu poder de decidir em nome das nações que representavam permanecia intacto. Contudo não seriam mais os representantes exclusivos das sociedades nacionais e novas vozes encontravam um espaço para se fazer ouvir e reclamavam uma outra, mas não menor, legitimidade. O que aconteceu no Riocentro – onde se reuniu a conferência formal – foi um episódio importante na construção de uma nova agenda internacional. O que aconteceu no Aterro – onde transcorreu o chamado Fórum Global – foi um momento, talvez ainda mais significativo. Aquelas vozes que ali se fizeram ouvir seriam, como se viu, difíceis de silenciar no futuro.
Um enólogo poderia dizer que 1992 havia sido um bom ano. Vivíamos o fim de um ciclo de disputa de poder e de ideologia entre o Leste e o Oeste e mesmo as desigualdades entre o Sul e o Norte pareciam, senão passíveis de serem superadas, capazes de serem atenuadas e trabalhadas. O Muro de Berlim havia caído três anos antes. A União Soviética se desfizera no ano anterior. As ameaças de um enfrentamento nuclear entre as então chamadas superpotências pareciam, se não eliminadas, afastadas do alto de todas as preocupações. Tudo isso acontecia de forma surpreendentemente rápida e imprevisível em seus desdobramentos, e as vítimas mais evidentes dos novos rumos eram os cientistas e os analistas políticos de todos os matizes, já que nenhum fora capaz de prever o cenário final do colapso da União Soviética e do seu império. Os bruxos, as feiticeiras, os médiuns e os videntes não se saíram melhor.
O terrorismo, nosso fantasma hoje, não existia como uma categoria separada, e entrava-se então em aviões ou países sem sofrer um processo invasivo e embaraçoso de apalpação ou de sensoriamento eletrônico. A ideia de esvaziar bolsos, tirar cinto e sapatos antes de embarcar numa ponte aérea me teria parecido, naquela altura, o mais estapafúrdio procedimento.
Em poucos anos tive que ajustar o termostato de minhas preocupações: passei do medo de um inverno nuclear – que seria uma desastrosa consequência da guerra com armas atômicas entre Rússia e Estados Unidos – para os riscos do aquecimento global, resultado da queima crescente de combustíveis fósseis e das emissões não controladas de gases de efeito estufa na atmosfera. O que impressionava, em ambos os cenários, era a escala global e a dimensão também planetária dos problemas que antevíamos e a capacidade que tínhamos adquirido, como espécie, de alterar os dados da equação que determinava o equilíbrio das forças mais elementares do nosso planeta.
Vinte anos depois venho revisitar minhas lembranças desses dias e, talvez, delas tirar alguma coisa que possa ajudar na reedição dos eventos que o Rio se prepara para acolher no próximo mês de junho. Importa dizer, em primeiro lugar, que as circunstâncias do mundo pareciam ser – e de fato eram – mais fáceis e promissoras em 1992.
O que um dia acontece, depois que acontece, parece ficar investido de uma aura de inevitabilidade. Carrego comigo milhagem bastante para saber que não é bem assim. Por um triz a Conferência de 92 no Rio não aconteceu no Cairo e, mais improvavelmente, em Manaus ou Belém. É bom que me explique.
Fui a Belgrado como chefe da delegação do Brasil à Cúpula dos Países Não Alinhados, em 1989. Éramos um país observador e não tínhamos, portanto, nem o acesso nem a influência de um membro pleno. O Egito, por meio de sua capital, Cairo, se oferecia para sediar a conferência que daria sequência ao que havia acontecido em Estocolmo em 1972. O Brasil examinava a possibilidade de também se apresentar como candidato e queria dar provas eloquentes de que suas desconfianças com respeito ao movimento ambientalista se haviam, em boa medida, dissipado.
Minhas instruções eram conseguir que os Não Alinhados recomendassem o Brasil como país-sede. Na época, como agora, não foi difícil nos vender como sede de qualquer coisa. Ajudava, ainda, o fato de o Cairo já fazer parte, há tempos, do roteiro daquele movimento. Nós éramos destino não só mais sedutor como, para uma maioria, uma grande novidade. Saí de Belgrado trazendo comigo uma resolução formal dos Não Alinhados para que fôssemos o país-sede. Pela lógica inexorável dos números, obtido esse endosso, tínhamos assegurada uma grande maioria na Assembleia Geral das Nações Unidas, que era o foro onde a decisão final seria tomada.
Que a conferência acontecesse no Brasil, mas sua sede fosse em outra cidade que não o Rio, foi uma hipótese de trabalho explorada na fase inicial de montagem do projeto. O Brasil era então alvo de críticas e ataques dos ambientalistas – como acontece ainda hoje embora em muito menor escala e com muito menor veemência – principalmente por perseguirmos uma política predatória na Amazônia, e corriam então previsões de que daríamos cabo, em alguns poucos anos, da floresta e da extraordinária biodiversidade que ela abriga.
O Palácio do Planalto via com interesse a possibilidade de que Belém ou Manaus pudesse ser sede do evento e gostaria de levar essa proposta adiante. Foram as exigências e as limitações incontornáveis impostas pela logística que derrotaram a ideia. A necessidade de embarcar e desembarcar dezenas de milhares de pessoas a cada dia em portos em que as instalações eram insuficientes, e para onde precisaríamos fretar e depois deslocar muitos navios de cruzeiro (já que a hotelaria disponível ficava muito aquém, em quantidade e qualidade, do necessário), afundou um projeto sedutor e audacioso. Havia também, além de uma miríade de outros desafios, a necessidade de assegurar segurança e boas condições de trabalho aos mais de 100 chefes de Estado ou governo que foram, no fim das contas, os que vieram ao Rio de Janeiro.
De início, os ambientalistas e nós haviamos nos desencontrado e, muitas vezes, até enfrentado. A ideia central do primeiro grande manifesto ecológico da época – o livro Limites do Crescimento, obra coletiva do Clube de Roma – representava tudo aquilo que o Brasil de então não queria ouvir. A obra de Rachel L. Carson, Primavera Silenciosa, era o outro texto canônico dos ativistas daquela safra. Uma Europa cansada e desencantada com o que o futuro parecia anunciar se chocava diretamente com um Brasil esperançoso que começava a se dotar dos meios para, efetivamente, ocupar seu território e dele extrair as riquezas que seriam nosso passaporte para o sempre sonhado status de uma grande potência.
O Brasil – penso no Brasil mais ingênuo daqueles idos – via no movimento ecológico apenas uma reedição dos antigos determinismos malthusianos, só que desta vez não seria o próprio crescimento da população mundial, mas o consumo de bens não renováveis e, sobretudo, a queima de combustíveis fósseis, o que determinaria o desastre no fim da estrada.
Ao nosso otimismo de então, que carregava consigo uma boa medida de ingenuidade e de imprevidência, correspondia uma outra posição igualmente simplista; a dos fiéis do movimento que previam e chegavam mesmo a fixar datas arbitrárias e assustadoramente próximas para que fossem acabando, um a um, os recursos finitos de que dispúnhamos. O Clube de Roma foi, nos primeiros anos, o arauto dessas preocupações e profecias.
Algumas causas adquirem uma dimensão comumente associada ao fenômeno religioso. O meio ambiente é certamente uma delas pelo convite que faz a uma completa rejeição de um estilo de vida (e de consumo), a renúncia a práticas julgadas inaceitáveis de agressão à natureza e de apropriação de seus recursos e a convicção de que se persistir no erro (ou no pecado, se quiserem) a perdição virá rápida e inexorável.
Grandes movimentos sociais ao longo da história tiveram essas características e venceram ou se perderam através do recurso a processos revolucionários, quase sempre violentos, que buscavam criar uma nova sociedade ou desenhar um novo homem.
No caso do meio ambiente nos dias de hoje procura-se fazer uma profunda revolução no comportamento das pessoas, das sociedades e dos governos por meio de um processo de negociação diplomática multilateral baseada em decisões de caráter consensual. Não sei se isso se pode fazer dessa maneira com a velocidade que se deseja e a abrangência e profundidade que se espera.
A negociação multilateral (que se pode também chamar com propriedade de diplomacia parlamentar) tem compassos naturalmente lentos pela necessidade permanente da acomodação de interesses e busca de compromissos que quase por definição ficam aquém das expectativas maximalistas dos ativistas. É a busca do possível contra as expectativas, quase sempre frustradas, do muito que era sonhado.
Desde 1992 tem havido algum, mas relativamente pouco, progresso na continuação das negociações multilaterais. Não sugiro, de forma alguma, que tenhamos chegado a um muro ou a algum tipo de fronteira permanente ou intransponível. Sugiro apenas que é preciso dar tempo ao tempo e ir juntando as provas para que os fatos e as perspectivas falem por si mesmos até que se tornem simplesmente irrefutáveis.
Trocado em miúdos: o conjunto de compromissos subscritos no Rio, em 1992, era viável e em boa medida continua a ser, até onde foi possível chegar naquele momento especialmente favorável em que antigos problemas e antigos adversários eram absorvidos e os novos desafios não se faziam inteiramente visíveis.
Havia ambições que me pareciam excessivas. O desenho de uma agenda para o século XXI – a Agenda 21 é o título de um dos grandes documentos então negociados dividido em quarenta capítulos e que se estende por quase 800 páginas – continha um elemento de ingenuidade e de ambição excessiva ao presumir que o futuro aceitaria ser definido e programado pelo passado. Não é assim que costuma acontecer. Um dos recursos mais gastos da retórica das relações internacionais é indagar, diante de um fracasso ou de uma visão estreita e de curto prazo, o que dirão de nós os nossos filhos e netos ao verem que não fomos mais longe ou não tomamos o caminho certo. A resposta quase que invariavelmente aplicável é reconhecer que a posteridade simplesmente não dirá nada, ocupada como estará com os desafios de seu próprio tempo sem olhar muito – ou mesmo sem olhar nada – para trás. Tenho andado muito pelo mundo e poucas vezes, se alguma, encontrei alguém falando mal dos avós.
Uma lição de 92 foi a de se procurar chegar ao grande evento com os textos virtualmente negociados e não acreditar na miragem de que seria possível fazer o que meses ou mesmo anos de esforços anteriores não lograram. O importante é evitar a situação, no fim das contas entre ingênua e melancólica, da conferência sobre o clima, em Copenhague – que foi a COP 15, o que se traduz como 15ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas –, onde, no apagar das luzes, os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil, e os primeiros-ministros da China, Índia e África do Sul e os donos da casa se meteram em um impossível exercício de redação e de conciliação.
Se os tempos de 2012 são menos venturosos que os de 1992, o Brasil – e o Rio de Janeiro – vai muito melhor do que ia na época. As preocupações que tínhamos com a segurança dos que vinham nos visitar eram mais do que fundadas. O Rio estava longe de ter os índices de pacificação e segurança de hoje. Os deslocamentos da Zona Sul para a Barra – os dois polos dos acontecimentos – obrigavam a travessia de áreas de considerável risco e complicada topografia. O uso de helicópteros era desaconselhado e os líderes dos países mais significativos preferiam, por recomendação de suas equipes de segurança, o deslocamento por terra às incertezas ainda maiores da travessia aérea.
Fez-se então uma coisa que embora tivesse uma medida de teatralidade me pareceu certa e funcionou. Colocou-se nas ruas uma grande presença de pessoal militar e de equipamento bélico e de apoio, e essa sinalização deve ter contribuído para desestimular atos de agressão e outros tipos de ameaça. Mais do que tudo ajudou o fato de que, para os fins dos eventos de 1992, deu-se uma perfeita convergência entre os então responsáveis pelos governos federal, estadual e municipal de nossa administração. Fernando Collor, Leonel Brizola e Marcello Alencar agiram de forma exemplarmente cooperativa e harmoniosa e dividiram tarefas com propriedade e sensatez.
O que funcionou bem em 1992 deverá funcionar ainda melhor agora. O entendimento entre as várias esferas de poder deverá ser ainda mais fluido e eficaz. Como foi o caso do então chanceler Celso Lafer, o atual chefe do Itamaraty, Antonio Patriota, sabe hoje o que deve fazer. Melhor do que a situação com que nos defrontávamos antes é saber que dispomos hoje de mais recursos humanos e materiais disponíveis e que nossa influência no processo decisório deverá ser, pela natureza mesma das coisas, maior do que foi então.
Além de Celso Lafer contávamos ainda, no nosso meio de campo, com o talento e credibilidade de José Goldemberg, que sucedeu a Lutzenberger na pasta do Meio Ambiente. Ajudou muito a meteorologia, que, no caso do Rio, costuma ser a mais inconfiável das variáveis. Deve ser um engano da memória, mas ficou apenas o registro de duas semanas amenas e ensolaradas. Também ajudou muito a disposição da gente da terra orgulhosa de ver sua cidade, que ainda atravessava um ciclo de perda de riqueza e de poder, invadida de maneira tão prestigiosa.
Também a mídia desafogou-se na trégua que os acontecimentos permitiram e colocou momentaneamente de lado aquele inexorável encadeamento de fatos que prosseguiria, recém-acabada a Conferência, e que alguns meses mais tarde levaria ao impeachment do presidente da República.
Ao tratar primeiro de acontecimentos periféricos à Conferência e sobre as circunstâncias da vida internacional naquela época, deixei de lado o principal. A Conferênciade 1992 foi um dos momentos mais importantes da diplomacia depois da SegundaGuerra Mundial e, de fato, alterou os rumos e as prioridades das relações entre os povos.
É preciso voltar atrás e recuar até a década de 40 em San Francisco e logo depois chegar ao grande processo ordenador de Bretton Woods para encontrar processo negociador investido de tantas esperanças e de tanta criatividade. Virtualmente tudo o que então se produziu, se proclamou ou se abriu para assinatura ainda perdura. Faço uma chamada dos grandes textos: a Agenda 21 (de que já falei); a Convenção sobre Diversidade; a Declaração do Rio com seus 27 princípios; a Convenção-Quadro sobre as Alterações Climáticas; a Declaração de Princípios sobre Florestas e, enfim, o próprio relatório da Conferência.
A Convenção-Quadro sobre Alterações Climáticas abriu uma das mais intensas controvérsias de que se tenha lembrança na cena internacional, incidindo sobre um conjunto de temas interligados a respeito dos quais as divergências políticas, econômicas e mesmo científicas são extremas e apaixonadas.
O Rio em 1992 já prenunciava a extensão e a profundidade desse debate, mas foi, a rigor, em Kyoto em 1997, com a adoção do Protocolo que leva o nome daquela cidade e que estabelecia prazos e metas para a redução das emissões de carbono, que o consenso se rompeu e o debate adquiriu os contornos que até agora perduram e que só têm feito crescer em intensidade.
Não se vê ainda, com clareza, o rumo que as coisas possam tomar. O espectro hoje de atitudes vai desde o ecoceticismo – o que significa descrer da origem antropocêntrica das alterações climáticas que se observam e de seu alcance – até a apaixonada convicção de que o tempo que estamos perdendo é irrecuperável e de que nos encaminhamos para uma verdadeira catástrofe ambiental.
O que me parece ser o mais perdurável resultado da Rio-92 foi ter ajudado a colocar, no centro mesmo da agenda mundial, a questão da preservação da qualidade de vida aqui na Terra. Como já se disse, é possível desenhar para quase tudo um plano B. Infelizmente não dispomos de um planeta B e este que ocupamos, com bastante displicência, é tudo o que temos.
O problema das alterações climáticas e o controle dos fatores causados pelo homem absorveram em demasia as atenções e definiram a agenda dos últimos anos. Em contrapartida, muitos resultados importantes na preservação da qualidade de vida na Terra não tiveram a repercussão e o crédito que mereciam.
O buraco na camada de ozônio diminuiu muito de extensão; a chuva ácida – tão presente no alto das preocupações dos anos 80 – deixou de ser uma inquietação prioritária. Mas várias espécies animais ameaçadas foram resgatadas de índices próximos da extinção. Muitos ecossistemas foram, em boa medida, recuperados. O combate aos agrotóxicos mais daninhos e a melhora da qualidade do ar em muitas grandes cidades não podem passar quase despercebidos. O que quero dizer é que, confrontada com desafios mais facilmente definidos e identificáveis, a margem de sucesso dos esforços realizados tem sido encorajadora. Haveria inúmeros exemplos a dar.
Esse tipo de avanço das negociações ao longo das linhas de menor resistência é o que costuma acontecer. Vai-se resolvendo ou pelo menos equacionando o que era mais fácil. As grandes questões ambientais estão hoje no âmago da agenda mundial, já conquistaram o imaginário das pessoas, seduziram novas gerações, integram a plataforma dos políticos e atraem atenção da mídia.
O Rio de Janeiro agora volta a ser o campo de jogo desse apaixonado debate da humanidade sobre seu próprio destino. A próxima reunião aceitou o mandato de procurar nada mais e nada menos do que desenhar uma nova economia mundial que, na falta de melhor caracterização, é chamada de “economia verde”.
Não me sinto confortável com o rótulo pelo que ele parece conter de simplificação de uma realidade infinitamente mais complexa. Minha preferência é por fórmulas menos coloridas, e no seu tempo. Com alguma medida de coerência já não amava as promessas vermelhas do comunismo, nem temia as ameaças amarelas da Ásia. O que importa é desenhar uma economia capaz de inibir as emissões de carbono, de desestimular de maneira radical o emprego do carvão e de privilegiar novas formas de geração de energia limpa.
A Conferência só volta ao Rio em 2012 porque fizemos bem o que se esperava de nós em 1992. Do Brasil de hoje se espera uma posição de liderança que não podíamos exercer na época com o escasso poder que detínhamos. Isso torna a tarefa de nossos negociadores de hoje ainda maior. Fazer isso e ao mesmo tempo hospedar tanta gente e procurar conciliar diferenças que persistem há vinte anos é responsabilidade assustadora. Há que contabilizar sempre uma vantagem imensa de que dispomos: nosso leque de opções energéticas é o maior que conheço. Podemos ter comportamento exemplar sem sofrer grandes prejuízos e ainda obter ganhos substanciais para os nossos interesses. Temos hoje, no caso das questões centrais do meio ambiente, como tínhamos em 1992, as melhores cartas para jogar.
A Eco-92 encerrou seus trabalhos, no Riocentro, no dia l4 de junho, quando os grandes atores do mundo oficial voltaram para suas capitais.
No Aterro e, sobretudo, na aldeia indígena Kari-Oca o embalo precedeu a festança oficial com a assinatura da Declaração dos Povos Indígenas que seria reafirmada em Bali, dez anos depois. O documento tem dois méritos: o de ser curto e o de ser claro.
Em Manaus, faz poucos meses, dois de nossos líderes indígenas – Marcos Terena (do Comitê Intertribal) e Marcos Apurinã (da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) – se reuniram, com outros, e estarão de volta aqui na Rio+20 para continuar sua luta. Os nomes e acrônimos das sociedades que presidem sugerem que a modernidade já chegou às florestas. Espero que a aldeia mude de nome, já que o atual não me parece nem inspirado nem inspirador. Com eles voltarão muitos dos que estiveram aqui em 92, e para quem perdeu aquele momento teremos, vinte anos depois, uma esperada reprise.
Quem não deve voltar ao Rio é o Dalai Lama. Essa seria sua quarta visita ao Brasil e mesmo para aquele invencível otimista os anos já pesam e também os longos anos de exílio.
Disseram-me alguns amigos que ele pensa mesmo em se aposentar, o que é sempre coisa complicada para um líder religioso. Não há previsão para que isso aconteça e há o problema adicional de que o Grande Lama não tem sucessor espiritual.
Depois de sua morte teríamos que esperar a reencarnação da alma de quem o substituiria, processo que, segundo os entendidos, é aleatório e poderá levar algum tempo até se materializar. A China, previdente e temerosa, já adotou formalmente regras para regular a reencarnação de um novo dalai-lama na tentativa de poder controlá-lo e estender seu império sobre o próprio mundo dos espíritos.
Assim, tudo pesado, é melhor cuidarmos do dalai-lama que temos, esperar que dure e que do alto de suas montanhas ele olhe de novo para o Rio e abençoe estas praias amigas.
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