Regina, no mundo do bolsonarismo: afinal, como a atriz conseguiu se aproximar de um presidente que enaltece o torturador de uma de suas amigas? – eis a pergunta do ator Paulo Betti ILUSTRAÇÃO: KLEBER SALES_2020
Regina no país dos olavistas
Os 77 dias em que a atriz foi triturada pela polícia ideológica do governo Bolsonaro
João Gabriel de Lima | Edição 165, Junho 2020
Selfies. Sorrisos. Mais selfies, mais sorrisos. Ainda mais selfies, ainda mais sorrisos. A atriz Regina Duarte, dona de uma carreira de quase seis décadas na televisão e no teatro, tinha certa dificuldade para caminhar entre os convidados no lançamento do novo canal de tevê a cabo, a CNN Brasil. Cinco dias antes, ela tomara posse como secretária especial da Cultura, o quarto nome a ocupar o cargo no governo de Jair Bolsonaro. Convidada para a função no dia 17 de janeiro, ela tomara todas as precauções possíveis antes de aceitar o convite. Esteve em Brasília duas vezes, fez um tour de reconhecimento pela secretaria, conversou demoradamente com o presidente e, depois de doze dias de avaliação, em 29 de janeiro, finalmente aceitou o convite. No dia 4 de março, numa cerimônia agitada pela presença do rosto famoso, mas com uma diminuta presença de artistas, Regina Duarte tomou posse e fez um discurso de quinze minutos. Anunciou que seu propósito era “a pacificação e o diálogo permanente”, lembrou que o presidente lhe prometera autonomia plena, com “porteira fechada, carta branca”, e disse a frase de efeito que virou meme: “Cultura é aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço.” Os críticos apelidaram sua posse de “pum do palhaço”.
Agora, cinco dias depois de assumir o cargo, Regina Duarte estava no Parque Ibirapuera, em São Paulo, prestigiando o lançamento da CNN Brasil. Na lanchonete ao lado da Oca, prédio que abrigava os 1 300 convidados do evento, ela chegou animada, sorridente e bem-disposta. Estava feliz com a nomeação de sua amiga de longa data, Maria do Carmo Brant de Carvalho, a Carminha, especialista em políticas públicas, para ser sua secretária da Diversidade Cultural. “Meu primeiro cargo em um governo foi no conselho do programa Comunidade Solidária, no governo Fernando Henrique Cardoso, e a Carminha estava lá comigo”, disse Regina, enquanto pedia licença para posar para mais uma selfie sorridente com uma fã angolana. Estava alegre porque havia vencido as dificuldades burocráticas com a nomeação da amiga. “Numa peça de teatro, você escolhe o elenco e marca os ensaios. Num ministério, há toda uma burocracia, você escolhe alguém e tem que passar por vários filtros.”
Acomodada no auditório da Oca, Regina Duarte começou a acompanhar os discursos de autoridades, depois de ter confraternizado com o governador de São Paulo, o tucano João Doria. Era dia 9 de março, a pandemia do novo coronavírus estava apenas no início, e um membro do governo Bolsonaro talvez ainda pudesse confraternizar com Doria sem ser demitido. De repente, piscou uma notícia no celular de um assessor que estava sentado ao lado da atriz: “Governo cancela nomeação de secretária da Diversidade Cultural indicada por Regina Duarte.” Eram os “filtros” entrando em ação, dessa vez, contra Carminha. A atriz e assessores ficaram até o fim da cerimônia, mas deixaram o local apressados. Mesmo em marcha acelerada, ela atendeu aos pedidos de selfies, sempre distribuindo seu sorriso fácil. À saída do Parque Ibirapuera, a comitiva tomou um táxi e partiu para uma reunião, em que iria “discutir a conjuntura”. Àquela altura, Regina já sabia que os tais “filtros” seriam a negação da promessa da “carta branca”, mas preferiu acreditar que as coisas poderiam melhorar. Nunca errou tanto.
Regina Blois Duarte nasceu em Franca, no interior de São Paulo, filha de um militar cearense e uma professora de piano gaúcha. Diz que queria ser artista desde os 6 anos de idade, quando se maravilhou com um espetáculo de circo. Uma de suas melhores lembranças do começo da vida artística é uma viagem para o IV Festival Nacional de Teatro de Estudantes, que ocorreu em Porto Alegre, em 1962, na efervescência cultural sob o governo de João Goulart. Regina tinha 14 anos. “Eu fazia um palhaço no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Fui com a minha mãe num ônibus onde estavam o Plínio Marcos, a Dina Sfat, a Yara Amaral, o Fauzi Arap. No caminho, paramos em Curitiba. Andei de pedalinho pela primeira vez na vida. Em Curitiba, os homens ficaram hospedados em quartéis, as mulheres, num convento. Depois, rumamos para Porto Alegre. Era muito palavrão, muita cachaça, a minha mãe ficou horrorizada. Em Porto Alegre, foi uma semana maravilhosa, vendo teatro de manhã, de tarde, de noite, grupos de todo o Brasil. Foi muito incrível. Tenho recordações maravilhosas desse período.”
No começo dos anos 1970, Regina explodiu como protagonista nas novelas da TV Globo, em sucessos como Minha Doce Namorada, Selva de Pedra, Irmãos Coragem e Carinhoso. Continuava cultivando as amizades das atrizes Dina Sfat e Yara Amaral, do diretor Fauzi Arap, e seguia fascinada pelo dramaturgo Plínio Marcos. Em 1976, aborrecida com o rótulo de “namoradinha do Brasil”, que ganhou nas novelas, interessou-se em fazer a peça Concerto Nº 1 para Piano e Orquestra, do dramaturgo João Ribeiro Chaves Neto. Queria continuar mostrando que era capaz de interpretar papéis mais arrojados do que uma simples “namoradinha”, dando seguimento a uma virada que começara no ano anterior, quando fez sucesso como uma garota de programa no espetáculo Réveillon, de Flávio Marcio. O ator Sérgio Mamberti, seu amigo, levou-a então para fazer uma leitura dramática de Concerto Nº 1, mas, ressabiado com o ambiente instalado pela ditadura militar, tomou o cuidado de perguntar: “Regina, você quer mesmo montar essa peça? Ela tem um conteúdo político muito forte.” Mamberti lembra a resposta que ouviu: “É justamente por causa do conteúdo político que eu quero montar.”
A peça contava a história de um prisioneiro político do governo de Getúlio Vargas que acabava assassinado na prisão. No primeiro ato, seu cadáver era entregue à mãe enrolado num lençol ensanguentado, que, no ato seguinte, servia como toalha de mesa durante o jantar da família, enquanto se ouvia o sucesso tropicalista Deus Vos Salve Essa Casa Santa, na voz da cantora Nara Leão. Era uma cena forte, e parte da plateia reclamou. O produtor da peça, Marcos Franco, o primeiro marido de Regina, pediu para tirar da cena o lençol que servira de mortalha. Sérgio Mamberti, que fora convidado para dirigir a peça pela própria Regina, se recusou a fazê-lo. Procurada para resolver a questão, Regina atendeu aos apelos do marido produtor, e a toalha empapada de sangue sumiu da cena. “Foi a primeira vez, talvez, que vi na Regina um pouco dessa Regina que vejo hoje e às vezes não reconheço”, disse Mamberti.
Ao longo dos 21 anos de ditadura, Regina teve participação discreta nas ações e manifestações contra a censura, mas nunca esteve ao lado dos militares. Na democracia, aproximou-se dos futuros tucanos. “Na política, eu sou assim. Eu me envolvo por paixão. Eu era apaixonada por Fernando Henrique Cardoso, com quem tive aulas na Universidade de São Paulo ainda bem jovenzinha”, disse. Em 1985, apoiou a candidatura de FHC a prefeito de São Paulo. Na propaganda eleitoral, apareceu pedindo aos eleitores de esquerda que se unissem em torno de FHC para impedir a vitória do candidato da direita, Jânio Quadros. “Eu acho que a gente tem que fazer isso para impedir que as forças da corrupção e da ditadura voltem a se juntar e destruam nossa frágil democracia”, dizia. “Não vamos também nos esquecer do que aconteceu na Alemanha na década de 1930. Os democratas se dividiram e o que aconteceu? Hitler subiu ao poder com pouco mais de 30% dos votos.” Na época, Regina estava especialmente popular. Interpretava a Viúva Porcina na novela Roque Santeiro, o maior sucesso da história da teledramaturgia da Globo. Com uma vantagem de apenas 141 mil votos, Jânio venceu a eleição.
Na campanha presidencial de 2002, a atriz apoiou o tucano José Serra, que conhecera em sua encarnação de ator amador durante o festival de 1962, e estrelou o vídeo do candidato em que tentava convencer os eleitores de que o petista Luiz Inácio Lula da Silva era uma figura perigosa. “Eu tô com medo”, dizia ela, logo na abertura do vídeo. A frase lhe valeu chacotas intermináveis porque Lula foi eleito e, dois mandatos depois, deixou o governo com uma taxa altíssima de aprovação. “Acho que a Regina foi sincera naquele vídeo, e não sabia a dimensão que aquilo iria tomar”, disse Sérgio Mamberti, que presidiu a Funarte no segundo governo Lula. “Ela criou um mote para o PSDB, o do medo, e um slogan para o PT, a esperança venceu o medo.” Durante os anos do PT no poder, Regina sumiu do mapa político. Só voltou à arena nos atos em defesa do impeachment de Dilma Rousseff. Ela participava das manifestações promovidas pelo Nas Ruas, movimento de direita fundado pela hoje deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), de quem Regina tornou-se amiga – em 2018, passaram o Natal juntas, na casa de Zambelli. Nos atos pelo impeachment, a atriz disse que subiu no caminhão de som do Nas Ruas “umas três ou quatro vezes”.
Com a ascensão de Bolsonaro, Regina apaixonou-se novamente, como acontecera com FHC. “Foi um pouco assim com Bolsonaro. Eu tinha preconceito contra ele, mas meu filho André me fez ver que era um homem bem-intencionado, embora com um jeito meio rude, como meu pai.” Ela conta o que pensava dele antes. “No começo, como todos os meus amigos artistas, eu acreditava na narrativa da esquerda, de que Bolsonaro era um representante do ódio. Achava que Bolsonaro era homofóbico, e que Olavo de Carvalho era um pornógrafo, que escrevia palavrões nas redes sociais.” (Regina não gosta de linguagem chula e jamais usa palavrões.) “Foi quando meu filho André, que é eleitor de Bolsonaro, me enviou um vídeo do presidente elogiando Clodovil, quando ambos eram deputados. Naquele momento, para mim, toda a narrativa petista caiu por terra.” Até então, Regina pensava em dar seu voto ao tucano Geraldo Alckmin. “Num almoço de família, André me disse que Alckmin era do Foro de São Paulo, e me explicou o que era o Foro de São Paulo. Uma articulação de vários partidos de esquerda. Acabei me decidindo por Bolsonaro.” (Geraldo Alckmin, no entanto, nunca pertenceu ao Foro de São Paulo.)
Entre o primeiro e o segundo turnos, Regina conheceu Bolsonaro pessoalmente. A seu pedido, a amiga Carla Zambelli acompanhou-a numa visita ao então candidato, no Rio de Janeiro. Empolgado com a presença da atriz e confiante na vitória, Bolsonaro disse: “Você não quer ser ministra?” Regina se lembra da sua resposta: “Não me faz esse convite para não me causar o constrangimento de ter que dizer não. Eu não tenho nenhuma capacidade, nem possibilidade de assumir essa responsabilidade.” Depois do encontro, ela postou foto de Bolsonaro no seu Instagram. Em quatro dias, ganhou 300 mil seguidores. No dia 26 de outubro, dois dias antes do segundo turno que elegeu Bolsonaro, ela deu uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo e contou como virou bolsonarista: “Notei o tamanho da adesão desse país ao Bolsonaro e pensei: ‘Eu sou esse país, eu sou a namoradinha desse país.’”
Com quatro dias no cargo de secretária especial da Cultura, Regina Duarte, 73 anos, deu uma entrevista ao Fantástico, na TV Globo. Com o rosto um pouco abatido, estava vestida de branco e usava uma gargantilha com crucifixo prateado. Falou vagamente dos seus planos, pediu desculpas aos artistas cujas fotos postara nas redes sociais como se a apoiassem e disse que passara os primeiros dias no governo “desfazendo intrigas que foram criadas, fake news e acusações não verdadeiras” a respeito de sua equipe. Ao comentar o bombardeio que vinha sofrendo, disse que “uma facção” queria sua demissão. “Já tem uma hashtag ‘foraregina’”, disse, espantada. “Querem que eu me demita, que eu me perca.” A “facção” era a milícia digital do bolsonarismo, que estava revoltada com a decisão da atriz de, antes mesmo de tomar posse, afastar doze funcionários que ocupavam cargos de confiança na Secretaria Especial da Cultura.
Entre os demitidos, estava o maestro Dante Mantovani, então presidente da Funarte, órgão mais cobiçado da área cultural, que ganhou fama nacional como autor da frase “o rock leva ao aborto e ao satanismo”, uma distorção que ele atribui à esquerda “que adora assassinar reputações”. Mantovani é graduado em música, mestre em linguística e doutor em estudos da linguagem. “Sou, provavelmente, a única pessoa da direita com doutorado em humanas, pois a direita não se dá bem no ambiente acadêmico”, disse ele, em conversa com a piauí. Afinado com as concepções bolsonaristas e aparentemente convencido de que cabe ao Estado tutelar as escolhas culturais do cidadão, o maestro defende que a missão da Secretaria Especial da Cultura é promover “uma agenda conservadora para um presidente conservador”, exaltando “a pátria, a família e a liberdade”. Quem quiser fazer outro tipo de arte, é livre para fazê-lo “desde que use o próprio dinheiro”.
Além dos doze demitidos, Regina também tentava em vão tirar do cargo o jornalista Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, órgão responsável por promover a cultura de matriz africana. Camargo é, como ele mesmo diz, “um negro de direita” e afirma que existe racismo nos Estados Unidos, mas no Brasil existe apenas um racismo “nutella”: “A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda.” Sua posse na Fundação Palmares chegou a ser barrada na Justiça, diante da evidência de que Camargo não parecia disposto a defender os direitos culturais dos negros, mas, alguns meses depois de pendenga judicial, ele foi autorizado a assumir o cargo em 12 de fevereiro. Reconduzido ao posto, não demoraria a começar a fustigar Regina nas redes sociais. Em abril, ele postou, e depois apagou, o seguinte tuíte: “Recado para os amigos de Regina: coloquem coleira nos pretos da esquerda! Comigo não! Sou livre e tenho opiniões próprias.” Antes, escrevera: “É preciso insistir. Nenhum nomeado pelo presidente Bolsonaro tem o direito de colocar esquerdista no governo (a facada foi comemorada por TODA esquerda). Quem o faz está cometendo um ato de alta traição.”
Cumprindo um papel de polícia ideológica, os bolsonaristas radicais não admitiam a saída de Mantovani, nem de Camargo, mas, acima de tudo, não admitiam a entrada do braço direito de Regina, o produtor cultural Humberto Braga – um dos “esquerdistas” a quem Camargo se referia. Avesso a entrevistas, desprovido de vaidade, traço que o ajuda a navegar bem entre os egos da área cultural, Braga tem larga experiência em governos. Teve cargo no período de Ernesto Geisel e passou por quase todas as administrações da era democrática – José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique e Michel Temer. Nos últimos meses, vinha liderando um grupo que se reunia na casa de Regina para discutir propostas para a área cultural. Quando chegou ao governo, a atriz tinha, assim, um projeto e um time, que, boicotado desde o início, nunca teve a oportunidade de mostrar serviço. Na equipe de Regina, uma das missões de Braga seria fazer a ponte entre o governo e a classe artística, que o respeita. Na sua conversa inicial com Bolsonaro, a atriz informou que Braga seria seu braço direito. Para afastar qualquer acusação de esquerdismo ao auxiliar, Regina disse ao presidente que Braga fora exonerado no início do governo Lula e ficara no ostracismo na era petista, retornando só sob Temer. Bolsonaro não se opôs à indicação.
Os radicais do bolsonarismo, no entanto, saíram cuspindo ódio contra Braga desde o primeiro momento em que seu nome apareceu. Antes da posse da atriz, Braga participou de reuniões da equipe em Brasília, e a milícia digital ficou atenta a todos os seus movimentos. O site bolsonarista Crítica Nacional, ao lado de outros veículos da mídia governista, notaram sua presença e acusavam o produtor cultural de ter “viés esquerdista” porque, entre outras coisas, participara, havia poucos dias, de “um evento esquerdista ao lado de figuras como Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e de um representante da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) no Rio de Janeiro”. Publicaram fotos, cartazes, memes e motes contra Braga. “O que aconteceu foi algo absurdo. Fui rotulado de ‘comunista’. Sou um técnico, um servidor de carreira, participei de vários governos”, disse ele, ao relembrar a campanha de que foi alvo. “Essas mentiras, fakes, fotos grosseiramente adulteradas e posts maldosos foram fabricados por pessoas que desejavam permanecer nos cargos.”
Ao ouvir o ronco da milícia digital, Bolsonaro, bem ao seu estilo, voltou atrás. Uma semana depois de ter autorizado a indicação de Braga, ligou para Regina e disse que estava “desconfortável” com a situação. Marcaram então uma conversa no Palácio da Alvorada. Segundo a pastora Janícia Silva, a Jane, que passou duas semanas como secretária adjunta de Regina, a atriz queria levar Braga para a conversa, “para o presidente já ir se acostumando” com ele. A pastora desaconselhou: “Você não deveria afrontar o presidente.” Braga não foi. A pastora, que presenciou a audiência, disse que Bolsonaro falou claramente que o escolhido de Regina não representava seus valores, e lhe deu uma recomendação: “Regina, o segredo do sucesso na política é aprender a dizer não.” A atriz ouviu, mas achou que, até a sua posse, daria um jeito. Nas semanas seguintes, Braga continuou participando de reuniões em São Paulo e em Brasília com a equipe da atriz. No dia seguinte à posse de Regina, no entanto, o veto ficou explícito. O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, convidou a atriz para almoçar. Na ocasião, disse que Braga fora barrado pelo Planalto. Foi uma conversa dura. Regina insistiu que precisava de um nome de confiança ao seu lado, invocou a “carta branca” e ameaçou pedir demissão. Foi sob o peso dessa enorme frustração que ela criticou os movimentos da “facção” ao falar com a Globo no domingo, dia 8 de março, no programa Fantástico.
Na segunda-feira, um dia depois da entrevista, enquanto a facção bolsonarista rugia nas redes por ter sido chamada de “facção”, uma reunião discreta ocorria no Palácio do Planalto. Com Bolsonaro em viagem aos Estados Unidos, naquele périplo em que metade da comitiva voltou ao Brasil contaminada com o novo coronavírus, seu filho Carlos passou o dia no palácio. Entre outros, recebeu o deputado federal Helio Lopes (PSL-RJ), o Helio Negão. Próximo da família Bolsonaro, o deputado tem o hábito de reunir informações sobre suspeitos de esquerdismo – classificação que, para os bolsonaristas, vai de Karl Marx a João Doria. O deputado não faz investigações sofisticadas, e muitas vezes os dados que leva aos filhos do presidente não passam de buscas no Google. Ignora-se o conteúdo da reunião entre Carlos e o deputado, mas assessores de Regina estão certos de que o veto a Carminha, a amiga da atriz, foi tramado naquela reunião no Planalto. Eram os “filtros” em ação.
“É um cenário bonito, colorido, mais a ver com o novo espírito da Secretaria”, anunciou Regina. Era dia 11 de março, ela estava completando sua primeira semana no cargo e, no fim de uma audiência, lhe pediram as indefectíveis selfies. Regina, então, escolheu como cenário da selfie o quadro do pintor nipo-brasileiro Manabu Mabe que decora uma das paredes do gabinete do titular da Secretaria da Cultura. Para tornar a cena mais aconchegante, colocou na mesinha em frente um vaso de flores. “Foi presente da primeira-dama Michelle na minha posse”, contou. O “novo espírito” que Regina queria mostrar era uma forma de disfarçar que o gabinete ainda estava tal e qual o deixara Roberto Alvim, o antecessor que gravou o famigerado vídeo plagiando trechos de um discurso do ministro nazista Joseph Goebbels. Com uma pintura alegre, fechando sua primeira semana de trabalho, Regina estava cansada, mas parecia feliz.
O dia fora pesado. Recebeu a visita do deputado federal Luiz Armando Schroeder Reis, o Coronel Armando (PSL-SC), eleito na onda bolsonarista. “Fui colega do presidente na Academia Militar das Agulhas Negras”, apresentou-se. Sua visita nada tinha a ver com coturnos, mas com sapatilhas. Queria convidar a secretária para comparecer ao Festival de Dança de Joinville, enfatizando que o evento tinha um convênio com o Balé Bolshoi. “É a única filial do Bolshoi fora da Rússia. Que interessante! Eu desconhecia isso. Olha só que ignorância”, disse Regina, prometendo tentar encaixar o compromisso, que seria em julho, em sua agenda. “Eu adoro dança, fiz balé quando era menina.”
Em outra audiência, recebeu parlamentares ligados à cultura. A uma deputada, perguntou se era feminista, e começou a relembrar algumas de suas personagens mais conhecidas – Malu [da novela Malu Mulher], Chiquinha Gonzaga e Viúva Porcina. A reivindicação da comitiva de parlamentares era clara: eles queriam defender o Recine, um programa de incentivo à criação ou modernização de salas de cinema que Bolsonaro vetara em nome do ajuste fiscal. A comitiva pedia o apoio de Regina para derrubar o veto presidencial. Quando lhe disseram que o projeto não teria impacto no ajuste fiscal, pois os valores acabariam resultando num equilíbrio, Regina se entusiasmou: “A pauta me parece maravilhosa, incontestável.” (Mais tarde, foi aconselhada por assessores a não se empolgar com algo que contrariava uma decisão do presidente.)
Antes de terminar o dia, Regina foi obrigada a voltar ao assunto que mais mobilizava os bolsonaristas na área cultural: cargos. A portas fechadas, recebeu a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), uma das estrelas do bolsonarismo raiz. A deputada queria garantir que Rafael Nogueira, atual diretor da Biblioteca Nacional, seria mantido no cargo. Seguidor férreo do polemista Olavo de Carvalho, Nogueira tem três graduações (filosofia, direito e história), mas não tem nenhum mestrado, um dos requisitos oficiais para ocupar o cargo. Ele se irrita ao ser chamado de “terraplanista” (“Para mim, o modelo da terra global é satisfatório”), e tem simpatia pela monarquia porque admira a organização política do Brasil do século XIX. O pleito de Kicis derrubava mais um plano de Regina, que cogitou chamar Helena Severo para comandar a Biblioteca Nacional, cargo pelo qual já passara com sucesso. (A Biblioteca Nacional é a mais antiga instituição cultural brasileira e uma das maiores bibliotecas do mundo, com um acervo de mais de 9 milhões de itens.)
Como a nomeação de Humberto Braga estava vetada, Regina assinou naquele mesmo dia a nomeação para secretário adjunto do advogado Pedro Mastrobuono, um estudioso das artes plásticas e autor de livros e artigos sobre Mira Schendel, Alfredo Volpi, Bruno Giorgi e Sérgio Camargo, o escultor. Ao escolher Mastrobuono, Regina não escondeu que se tratava de um mandato-tampão. “Era para ser o Humberto, ainda tenho esperança de tê-lo aqui comigo”, disse. Duas semanas depois, ela substituiu Mastrobuono pelo advogado Pedro Horta, que tem mais experiência em política do que em cultura – e que, por sua vez, seria demitido logo depois, no dia 15 de maio.
Encerrado o expediente daquele 11 de março, e completada sua primeira semana no cargo, à noite Regina foi à festa de aniversário da ministra Damares Alves. Depois, passou quase todo o mês de abril recolhida em sua casa em São Paulo por causa da pandemia e, quando finalmente reapareceu em Brasília, fez o céu desabar sobre sua cabeça.
“Que loucura isso, que loucura”, desabafou Regina com uma assessora. “Eu acho que ele está me dispensando.” Seu espanto, contido num áudio divulgado pela revista Crusoé, tinha endereço. Regina achava que Bolsonaro estava lhe dispensando do cargo porque o maestro Dante Mantovani, aquele mesmo que ela demitira antes de assumir como secretária da Cultura, acabara de ser reconduzido à presidência da Funarte naquela terça-feira, 5 de maio. Ninguém no governo fez a gentileza de, pelo menos, avisá-la. No dia seguinte, ela teria uma audiência com Bolsonaro, em Brasília. Estava certa de que seria demitida. “Eles estão decidindo. Está decidido”, disse ela, na conversa gravada. De repente, sem nenhuma explicação, no mesmo dia 5 de maio a recondução de Mantovani à Funarte foi anulada.
Na reunião com Bolsonaro, revigorada com o cancelamento da volta de Mantovani, Regina levou os sobreviventes de sua equipe. Fez uma apresentação sobre seus planos, mas teve que engolir outro sapo: Bolsonaro chamou para participar do encontro o jornalista Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares, que seguia hostilizando Regina abertamente nas redes sociais. Depois da reunião com o presidente, a atriz saiu sem dar entrevista. Coube a Camargo fazer um relato aos jornalistas. “Hoje não houve divergência”, disse. “Foi um almoço muito agradável.” Regina só voltaria à cena no dia seguinte, na tela da CNN – e que volta.
Na tevê, ela apareceu de cabelos soltos, vestindo uma blusa rosa-choque e uma calça branca. Mas era outra. Em nada lembrava a atriz que, um mês antes, dera uma entrevista ponderada e cuidadosa à TV Globo. Agora, ela estava mais afiada e parecia a um só tempo relaxada e tensa, mas, à medida que a entrevista avançava, tudo ia ficando cada vez pior, até ser abruptamente encerrada numa cacofonia no estúdio, em que todos falavam sobre a fala de todos. Em quarenta minutos, aconteceu de tudo. Regina cantou Pra Frente, Brasil, dançando sentada, esqueceu o que falava no meio do assunto, divertiu-se consigo mesma com sua risada tão peculiar, usou a palavra “triste” oito vezes para descrever a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo, queixou-se das perguntas que lhe faziam, quase se emocionou ao dizer que queria deixar um “legado”, e reclamou, gesticulou, apontou o dedo e, enfim, deu um “chilique”, nas suas próprias palavras, quando a emissora exibiu um vídeo – que Regina achou que fosse antigo – no qual a atriz Maitê Proença lhe cobrava diálogo com os artistas e empatia com os mortos.
A entrevista começou em clima sereno. Regina falou das demissões e dificuldades de contratar. Tentou demonstrar que era tudo normal. Sobre os rumores da sua própria demissão, fez cara de surpresa: “Demissão? Não, nada disso. Isso é uma narrativa que corre lá fora, pelo mundo. As pessoas têm uma certa ansiedade em me ver fora.” Disse que a contratação de sua amiga Carminha estava emperrada em “problemas burocráticos”, falou que já nem sabia dizer se Sérgio Camargo, seu desafeto da Fundação Palmares, era mesmo seu desafeto e admitiu que fora “totalmente surpreendida” pela recondução do maestro Mantovani à Funarte – cancelada no mesmo dia. Sobre a oposição incansável que lhe moviam os próprios bolsonaristas, sobretudo os que orbitam em torno de Olavo de Carvalho, desviou-se: “Eu não sinto resistência. Se ela existe, não chega até mim.” Disse que leu dois livros de Carvalho e depois parou pelo excesso de “nomes feios”, mas teve o cuidado de elogiar o autor desbocado. “Ele tem uma história muito importante. É um intelectual brasileiro que eu continuo respeitando.”
Na segunda metade da entrevista, o caldo entornou quando Regina falou de suas posições políticas. Sobre o apoio de Bolsonaro à ditadura militar: “Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80… Gente, é para frente que se olha” – e começou a cantarolar Pra Frente, Brasil, tema da Seleção Brasileira no governo de Emílio Garrastazu Médici, o período mais violento da ditadura. “Não era bom quando a gente cantava isso?”, perguntou, empolgada. Constrangido, o entrevistador lembrou que fora um período difícil, com assassinatos políticos. “Cara, desculpa, eu vou falar uma coisa assim: na humanidade, não para de morrer. Se você falar ‘vida’, do lado tem ‘morte’. Por que as pessoas ficam ‘oh, oh, oh!’? Por quê?!” O entrevistador lembrou que houve tortura. “Bom, mas sempre houve tortura”, reagiu a atriz, retomando o tema das mortes: “Meu Deus do céu… Stálin, quantas mortes? Hitler, quantas mortes? Se a gente for ficar arrastando essas mortes, trazendo esse cemitério… Não quero arrastar um cemitério de mortes nas minhas costas. Não desejo isso para ninguém. Sou leve, estou viva.” Sobre os artistas que morreram sem que ela, como secretária da Cultura, tivesse dito palavra: “Será que eu vou ter que virar um obituário?” Por fim, negou que sofresse oposição na classe artística e terminou dizendo que a maioria dos membros do setor cultural tinha grande apreço por ela. “O setor me ama.”
Regina queria divulgar o que havia conversado na audiência com Bolsonaro e ela própria fez chegar à CNN que gostaria de dar uma entrevista ao comentarista Caio Coppolla, uma voz conservadora do canal que a elogiara no ar. A CNN, no entanto, disse que Coppolla não era repórter e escalou o jornalista Daniel Adjuto, da sucursal da emissora em Brasília. Regina gostou da ideia porque lembrou que encontrara Adjuto num voo de São Paulo para Brasília, no qual ela trazia sua gata Pandora, a Pandi, para sua nova residência na capital federal. Uma assessora de Regina pediu à CNN uma lista por escrito das perguntas para que a secretária pudesse se preparar. Foram enviadas nove questões. Como é normal no jornalismo independente, os entrevistadores não se prenderam à pauta. Regina sentiu-se traída. “As perguntas vieram de um jeito que eu absolutamente não esperava, sobre temas que nunca tinha me ocorrido que pudessem ser aventados ali. Inexperiência total. Não me pegam mais. Foi muito feio, muito agressivo.” Em nota, a emissora explicou que o vídeo de Maitê Proença fora gravado naquele mesmo dia e falou da interrupção abrupta da entrevista: “A CNN lamenta o episódio e reafirma seu compromisso de sempre ouvir todos os lados para informar melhor o país.”
Encerrada a entrevista, o setor que Regina dizia que a amava lançou um grito de repúdio coletivo na forma de um manifesto. “Fazemos parte da maioria que não aceita os ataques reiterados à arte, à ciência e à imprensa, e que não admite a destruição do setor cultural ou qualquer ameaça à liberdade de expressão. Como artistas, intelectuais e produtores culturais, formamos a maioria que repudia as palavras e as atitudes de Regina Duarte como secretária da Cultura. Ela não nos representa.” Em 48 horas, o manifesto já contava com mais de 5 mil assinaturas. Entre elas, músicos como Chico Buarque e Caetano Veloso, cineastas como Anna Muylaert e Fernando Meirelles, atrizes e atores como Adriana Esteves, Marieta Severo, Cauã Reymond e Malu Mader, todos ex-colegas de Regina no elenco da TV Globo. Outros artistas decidiram se manifestar individualmente, usando as redes sociais.
“Você não tem humanidade, Regina Duarte? Que vergonha!!! Que horror!!! Que triste…”, escreveu a atriz Debora Bloch, em sua conta no Instagram. A atriz Mariana Lima, na mesma rede social, fez questão de repudiar a ideia de que a maioria dos artistas estava ao lado de Regina. “Eu não sou da sua classe, do seu gênero, do seu tipo, você representa a ignorância, o autoritarismo, a falta de empatia com a existência, com a vida e com a morte.” Até colegas que defenderam Regina em outros momentos escreveram textos igualmente duros. A atriz Camila Amado postou uma carta aberta à colega no Facebook, na qual diz que pensou em defendê-la, mas não conseguiu: “Não posso acreditar na entrevista que vi da Regina Duarte que tentei defender hoje de manhã. Acabou-se a imagem da ingênua usada e sem noção. Vi a pessoa mais feia e de uma loucura tão assustadora, exposta sem controle, sem imagem, agora, sim, revelada pela televisão, ela, a Regina Duarte.”
Os bolsonaristas, em vez de defenderem a atriz, preferiram atacar a emissora de tevê. A hashtag “foraCNN” se popularizou nas redes da direita. O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, foi um dos poucos a dar apoio público à secretária. Em seu Twitter, ele escreveu: “Fiquei encantado com a Regina pela demonstração de humanismo, grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, segurança, doçura e autoconfiança que nos transmitiu.” Também fez coro com a ideia de que a atriz foi vítima de uma emboscada da imprensa: “Admirei também a habilidade com que [se] desvencilhou das armadilhas que os entrevistados tentaram colocar a ela, que visivelmente havia se preparado para, numa atitude totalmente desarmada, abordar temas relativos a sua pasta.” Regina se comoveu com a reação do general, que conhecera em outubro de 2018, durante a inauguração de uma escola militar, em São Paulo. “Foi maravilhoso. Muito rápido. Aconteceu e em seguida ele já estava indignado.”
O saldo nas redes sociais foi um desastre para Regina. Um levantamento feito por um especialista da Universidade Federal do Espírito Santo, publicado pela Folha de S.Paulo, mostrou que, num período de 24 horas depois da entrevista, Regina foi o assunto de 368 961 tuítes, dos quais 83% lhe eram críticos. Com a entrevista na CNN e os movimentos que vinha fazendo para emplacar sua equipe no governo, Regina mobilizou críticos na esquerda e na direita. Diante da avalanche, sua reação foi desfraldar, agora sem inibições, a bandeira do bolsonarismo. Primeiro, atacou os críticos da classe artística. “Esse meio artístico dos abaixo-assinados, do ‘Ele não’, do ‘Amazônia não sei o quê’, isso é a república do Leblon”, disse ela, em conversa com a piauí. “Na verdade, é uma gente que tem dinheiro guardado em banco, que mora no exterior muitas vezes. Eles falam em nome de uma categoria que, na verdade, eles não representam.”
No fim de semana que se seguiu, Regina cortejou as redes bolsonaristas em seu Instagram. Compartilhou um vídeo sobre a crise de desabastecimento na Venezuela e um post elogiando o auxílio de 600 reais pago aos mais pobres, uma iniciativa de organizações sociais junto ao Congresso que Bolsonaro apresenta como se fosse sua. Em resposta à burocracia do cadastro e à demora em receber o pagamento, acrescentou: “Quem precisava de auxílio pra enfrentar a pandemia FOI ATRÁS. Quem não precisava… tá cobrando até hoje! Então… vai lá! Nem tem mais que enfrentar fila grande!” Naquele momento, os telejornais mostravam aglomerações monumentais à frente dos bancos. A atriz também compartilhou uma entrevista de dom Bertrand de Orléans e Bragança ao humorista Danilo Gentilli, no programa The Noite, sobre as virtudes do “Brasil que trabalha”. E ainda difundiu um meme intitulado “Test Drive de Socialismo?”, uma visão bolsonarista do que seria o Brasil de hoje: “Restrição de sua liberdade. Violência e repressão policial ao cidadão e bandidos soltos. Negócios fechando e o desemprego crescente. Redes sociais limitadas. Mídia parcial. Justiça subserviente. Roubalheira de verbas públicas. Está gostando?” No texto, Regina acrescenta: “Precisa…? Eu digo…: de legenda?” Compartilhou até posts de Carlos Bolsonaro.
Na posse de Regina, depois de ouvir que a nova secretária da Cultura cobraria a promessa de “porteira fechada, carta branca”, Bolsonaro foi à tribuna e fez questão de deixar claro que não era bem assim. “Obviamente, em alguns momentos, eu exerço poder de veto em alguns nomes”, disse. “Já o fiz em todos os ministérios. Até para proteger a autoridade, que por vezes desconhece algo que chega ao nosso conhecimento. Isso não é perseguir ninguém. É colocar o ministério, as secretarias na direção que foi tomada pelo chefe do Executivo.” Estava minimizando seu grau de interferência, mas não estava mentindo. Quando foi demitida no dia 20 de maio, depois de apenas 77 dias no cargo, Regina não tinha conseguido nomear Humberto Braga, seu auxiliar mais importante, acusado de esquerdista. Nem tentou nomear o produtor cultural Paulo Pélico, um dos maiores especialistas em Lei Rouanet e outro pilar de seu time, que também fora acusado de esquerdista. O nome de Helena Severo, cogitada para a Biblioteca Nacional, nem chegou a ser apresentado. Maria do Carmo Brant de Carvalho, a Carminha, nunca foi aprovada porque, décadas atrás, fora filiada ao PSDB.
Para complicar, estava em curso uma reestruturação do Ministério do Turismo, pasta que abriga a Secretaria Especial da Cultura. Regina foi informada que a mudança retiraria de sua alçada os órgãos mais relevantes da área cultural, como a Funarte, a Biblioteca Nacional, a Casa de Rui Barbosa, a Fundação Palmares – que, desde a gestão do cantor Gilberto Gil, estão sob o guarda-chuva do ministro ou do secretário da Cultura. Na prática, Regina nunca teve controle sobre esses braços. Por isso, Sérgio Camargo não deixou de presidir a Fundação Palmares, embora Regina estivesse certa de que ele deveria sair. Nos primeiros dias no cargo, ela chegou a dizer que “se ele ficar, estarão fechadas as portas para os artistas ligados ao movimento negro”. Ele ficou.
O decreto da reestruturação foi publicado no dia seguinte à exoneração de Regina. Na Secretaria Especial da Cultura, houve um encolhimento significativo dos cargos. “Quando eu estava no governo, só na minha área, a de Fomento e Incentivo à Cultura, tinha 52 cargos comissionados. Agora são 33”, exemplifica Henilton Menezes, que trabalhou nos mandatos de Lula e Dilma. Henilton Menezes é autor de A Lei Rouanet Muito Além dos (F)atos, livro de referência sobre financiamento cultural no Brasil.
Regina ainda enfrentou a ira dos que foram demitidos. A pastora Jane Silva, que se tornou amiga da atriz depois que fizeram juntas uma viagem a Israel – ocasião em que Regina estreitou seus laços com Carla Zambelli – virou como que uma ombudsman da Secretaria da Cultura nas redes sociais. Quando ainda estava no cargo de secretária da Diversidade Cultural, a pastora fazia questão de ignorar os pedidos e sugestões de Humberto Braga. Demitida, ela explicou seu comportamento: “Sou uma mulher de direita. Tenho minhas convicções. Não posso obedecer a um homem de esquerda.” O maestro Mantovani, que entrou e saiu duas vezes, é outro opositor da equipe que a atriz queria levar para Brasília. Ele também tem objeções de natureza ideológica: “A nova secretária nomeou pessoas ligadas a coletivos de esquerda, gente ligada ao PSOL e a Marcelo Freixo, os maiores inimigos do bolsonarismo, gente que vibrou com a facada de Adélio Bispo e que fica desferindo xingamentos rasteiros contra o líder máximo da nação.”
Com tantos entraves, Regina não conseguiu atender nem a demanda mais básica dos artistas, que lhe cobravam um plano emergencial para enfrentar os efeitos da pandemia. Teatros, cinemas, shows de música, orquestras sinfônicas, espetáculos de balé, circos e museus, tudo estava paralisado. Os artistas queriam que Regina Duarte usasse os 800 milhões de reais do Fundo Nacional de Cultura para amenizar a crise. Sobre esse assunto, Regina, antes de ser demitida, disse à piauí: “A minha pergunta em todas as reuniões é assim: Quando abre a boca do caixa? Quando a gente vai ter dinheiro?” Ela mesma queria promover um festival de teatro amador nos moldes daquele de 1962, que lhe deixou tão boas lembranças. Nada saiu do papel. Christiane Ramírez, uma das principais assessoras técnicas da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados e que coleta dados sobre o setor há mais de vinte anos, está estarrecida com a paralisia da secretaria. “Parece que o governo quer ver a cultura morrer de inanição”, disse Ramírez.
O governo Bolsonaro nunca se interessou pelas questões centrais da gestão cultural no país. Desde a promulgação da Lei Rouanet, em 1991, discute-se como democratizar o financiamento da cultura, como ampliar o impacto econômico das manifestações culturais e como apoiar culturas regionais e periféricas, além de modernizar a legislação do setor. Cada governo, nos últimos trinta anos, imprimiu sua marca nesse debate, com ou sem sucesso. O governo Bolsonaro, em vez disso, ocupou-se mais com o que chama de “ideologia de gênero” e a presença de “esquerdistas”. O primeiro a ser nomeado secretário da Cultura, Henrique Pires, deixou o cargo quando o ministro da Cidadania, a quem a secretaria estava subordinada na época, cancelou o chamamento para a realização de séries sobre homossexualidade na tevê pública. “Esse Afronte [curta-metragem] sobre negros homossexuais no DF, confesso que não dá para entender. Então, mais um filme aí que foi pro saco”, disse Bolsonaro numa live, em agosto do ano passado. Ao deixar o cargo, Pires disse: “Não vou fazer apologia a filtros culturais. Para mim, isso tem nome: é censura. Se eu estiver nesse cargo e me calar, vou consentir com a censura.” O segundo nomeado secretário, Ricardo Braga, ficou dois meses no cargo. O terceiro, Roberto Alvim, foi demitido pela empolgação nazista que demonstrou num vídeo. Alvim chegou a convidar Regina Duarte para participar de um projeto, mas a atriz disse que ficou reticente quando leu numa reportagem que o secretário estava empenhado numa “guerra santa” da direita. “Aí eu pensei: não vai dar para trabalhar com esse moço.” Para ela, uma “guerra santa” era tudo o que o Brasil não precisava. “O Brasil estava precisando pacificar, unificar, sair dessa polaridade. Fiquei muito assustada com ele.”
Na quarta-feira de manhã, dia 20 de maio, a deputada Carla Zambelli levou Regina para uma conversa com o presidente Bolsonaro, no Palácio da Alvorada. Em poucos minutos, Regina estava demitida do cargo e, como prêmio de consolação, fora indicada para dirigir a Cinemateca Brasileira, um órgão com sede em São Paulo que reúne um acervo de 30 mil filmes e padece de abandono e falta de verbas. No Twitter, Bolsonaro anunciou que Regina estava deixando a Secretaria da Cultura “porque sente falta de sua família”. Na frente do Alvorada, os dois fizeram um vídeo para as redes sociais. Bolsonaro disse que nunca “fritou” Regina, e Regina disse que foi presenteada com um cargo dos sonhos, e ainda ficaria perto da família, em São Paulo. Dos 77 dias que ficou como secretária, Regina passou a maior parte do tempo trabalhando em São Paulo, sobretudo no mês de abril, por causa da pandemia. Em uma entrevista mais tarde, Zambelli admitiu que o arranjo era para que Regina não ficasse “desamparada”.
Em alguma medida, foi um alívio para sua família. Com frequência, seus filhos, vendo tudo que a mãe vinha passando no governo, perguntavam: “Você é muito masoquista, por que você tem que sofrer?” Até o filho mais velho, André, que levou a mãe para o bolsonarismo, “faz tempo que não se aproxima”, contou a própria Regina. “Ele diz que prefere ficar longe, que acha isso aqui muito complicado”, disse ela, dias antes de sua demissão. Apesar de tudo, Regina conta que André continua achando que “este é o governo certo para o momento histórico que estamos vivendo”. Os outros dois filhos, a atriz Gabriela Duarte e o diretor João Gomez, sempre acharam mais prudente que a mãe ficasse fora da política. “Eles acham que há outras coisas para fazer na vida. Talvez na minha idade eles comecem a olhar o mundo de um outro jeito. Se a gente não meter a mão na massa a gente vai ter que engolir o mundo que nos apresentarem. Mas eles sabem que sou esse tipo de pessoa, apaixonada. Então não querem fazer a minha cabeça, como eu nunca quis fazer a deles.”
Além da família, os amigos de Regina também estavam incomodados com sua presença no governo. O ator Sérgio Mamberti, que continua um dos melhores amigos de Regina, assinou o manifesto em que os artistas repudiaram a entrevista da atriz na CNN Brasil. “Não se trata de uma questão pessoal, mas política.” Ele disse que é grave minimizar a tortura e cantar uma música que virou um hino à ditadura. “É uma guinada radical, contra o estado de direito, contra uma luta da qual Regina participou”, disse Mamberti. “Não reconheci a Regina. E senti nela uma espécie de descompensação emocional.” Mamberti falou com a piauí na véspera da exoneração de Regina. “Ela foi tão desrespeitada e continua. Ela nomeia, Bolsonaro tira. Por que ela se submete?” Ao assinar o manifesto, o ator Paulo Betti era outro que estava perturbado. Ele lembrou que Regina fora amiga da atriz Bete Mendes. Juntas, as duas deram apoio público à campanha de FHC para prefeito de São Paulo, em 1985. “Bete Mendes foi a não namoradinha do Brasil. Ela foi torturada pelo coronel Brilhante Ustra, a quem Bolsonaro enaltece sempre que pode. Esse é o âmago da questão. Não consigo aceitar que alguém se aproxime de Bolsonaro sem que a questão da tortura esteja presente. Regina se aproximou de alguém que elogia o homem que torturou a amiga dela.”
Dois dias depois de sua demissão, em artigo publicado no Estado de S. Paulo, Regina respondeu aos críticos e colocou-os todos, direita e esquerda, no mesmo plano. Falou de “interesses entrincheirados em ideologias cujo anacronismo não parece suficiente para sepultá-las” e de ataques dos “dois extremos do espectro político”. Discorreu sobre seu amor à pátria e esclareceu que, ao cantar a marchinha Pra Frente, Brasil, estava celebrando o “sonho de brasilidade e união”, e não a ditadura. E desculpou-se se passou a impressão de endossar a tortura – “algo inominável e que jamais teria minha anuência, como sabem os que conhecem minha história”.
No dia 16 de maio, quatro dias antes de sua demissão, ela própria estava atravessada por dúvidas. Àquela altura, sofrendo um processo terminal de fritura, com os olavistas já celebrando vitória com sua provável demissão, Regina fazia posts e compartilhava memes do bolsonarismo e, ao mesmo tempo, tentava racionalizar sua passagem pelo governo que a levou a um crescente isolamento junto à classe artística. Em conversa por telefone com a piauí, por volta das nove da noite daquele sábado, ela ouviu a seguinte pergunta: “Regina, por que você aceitou ser secretária da Cultura do governo Bolsonaro?” Ela respondeu: “Essa pergunta é difícil. Posso pensar nisso com mais calma? Não quero me precipitar. Talvez uma coisa mais… Deixa ver… Não sei… Já te falo. Respondo na próxima entrevista.”
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