Ilustração de Claudius para Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado: “Histórias não devem ser como redomas, mas uma chance de entrar em contato com a diversidade do mundo” CRÉDITO: CLAUDIUS_1986
Os riscos de corrigir os livros clássicos infantojuvenis
A reescrita de obras ameaça podar a literatura infantil no nascedouro
Ana Maria Machado | Edição 201, Junho 2023
Recentemente, em fevereiro, os editores britânicos de Roald Dahl anunciaram que algumas de suas obras seriam alteradas, com a eliminação de termos considerados problemáticos. A Puffin Books, que edita o já falecido autor, ressalvou que os herdeiros e administradores do espólio de Dahl concordam com a intervenção. O que as novas edições da Puffin tratam de eliminar são termos usuais na língua falada cotidiana. Termos como gordo, feio, careca, baixinho – todos cortados para não ofender quem possa eventualmente ser descrito com esses adjetivos. Algumas menções a pais e mães ou homens e mulheres também foram substituídas por termos mais neutros, em respeito a pessoas não binárias. Tais modificações obedecem a sugestões de profissionais contratados pela editora para passar um pente-fino no texto original, consagrado há décadas. Esses leitores sensíveis – ou sensitivity readers, na expressão do meio literário anglo-saxão – trabalham para detectar, com lupa rigorosa, possíveis casos de palavras que possam vir a magoar ou irritar pessoas ou grupos. No caso de Dahl, a faxina foi tão eficiente que aplicativos de e-book, como o Kindle, passaram a “atualizar” os textos automaticamente, mesmo para quem não pediu e comprara as versões originais integrais. Em outras palavras, você paga por uma leitura e algum tempo depois lhe impingem outra. O leitor deixa de ter controle até mesmo sobre sua estante de livros – ainda que virtual.
Pessoalmente, talvez eu até tivesse razões concretas para surfar nessa onda de ressentimento contra Roald Dahl. Por uma espécie de justiça cósmica, eu (que escrevo para crianças) fui sua vítima. Há alguns anos, tive um câncer. Fiz um ano de quimioterapia. Meu cabelo caiu completamente. Uma das poucas alegrias que me restavam eram os banhos de mar. Uma tarde, numa praia capixaba quase deserta, ao sair da água fui atacada por três meninos. Deviam ter uns 10 anos. Só estávamos nós em toda a praia. Começaram a me jogar areia. Em seguida me atiraram conchas e pedrinhas dos recifes. Eu estava fraca e caí. Os garotos saíram correndo e entraram no quintal de uma casa logo adiante.
Levantei-me, fui atrás, toquei a campainha. Veio uma senhora, mostrei um machucado, relatei o ocorrido. Ao chamá-los para que se desculpassem, ela explicou que eles tinham visto um filme, As Bruxas, em que estas, ao serem desmascaradas, tiravam as perucas e se revelavam carecas como eu estava. Talvez a senhora não soubesse que se tratava de uma adaptação de obra do Dahl. Mas tanto ela quanto eu sabíamos que meninos daquela idade, capazes de ir à praia sozinhos, não acreditam mais literalmente nessas coisas, e que o ataque não fora por medo de eu ser bruxa, mas por um impulso coletivo de brincadeira agressiva contra quem é diferente – que foi num crescendo. Algumas semanas depois, me aventurei em outro mergulho no mar num fim de tarde no Posto 6, em Copacabana. Três adolescentes, moradores do Morro do Cantagalo ali perto, batiam bola na areia. Ao me verem, começaram a entoar agressivamente: Sapatão! Meu marido foi tomar satisfações. Vieram conversar, se desculparam. Mas não culparam Roald Dahl.
Os episódios me fizeram pensar em como a arte pode às vezes ser usada como bode expiatório para acobertar impulsos agressivos. Ao mesmo tempo, a alusão da senhora a um filme me fez notar o tratamento distinto que a literatura infantil e obras cinematográficas infantis por vezes recebem. As versões antigas dos desenhos da Disney com contos de fada podem ser assistidas na íntegra até hoje, meramente precedidas de um aviso, informando ao espectador que em outros tempos se aceitavam coisas hoje inaceitáveis. E ainda não passou pela cabeça de ninguém exigir que as cenas com bruxas calvas sejam substituídas por outras mais cabeludas.
Imagens em movimento na tela podem passar, portanto. Em livros, parece ser mais complicado. Um relatório conjunto da Associação Americana de Bibliotecas (ALA, na sigla em inglês) e do Escritório de Liberdade Intelectual (OIF, na sigla em inglês), publicado já há um tempo, em 2002, relata como um ilustrador desenhou uma criança chinesa entre os personagens brancos e negros, por causa do editor, que aparentemente estava preocupado com uma falta de diversidade étnica da história – uma preocupação que seria razoável, não fosse o fato de que a história se passava em 1850 no Sul dos Estados Unidos e não tinha personagens asiáticos.[1] E um recente parecer do Ministério da Educação brasileiro vetou um livro meu num projeto para leitores principiantes porque a ilustração da frase “Mico Maneco é macaco levado” mostra o macaquinho e um vaso de flores espatifado no chão. A razão do veto? A ilustração foi considerada “incentivo à destruição de obras de arte”.
Morto em 1990, Dahl é um clássico de sucesso da literatura infantojuvenil, traduzido em 63 línguas, com cerca de 300 milhões de exemplares vendidos no mundo todo. Seus títulos foram adaptados para teatro, televisão, musicais e serviram de base para filmes de êxito – não só As Bruxas, mas também A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda, O BGA: O Bom Gigante Amigo, James e o Pêssego Gigante.
A decisão da Puffin de alterar termos nos seus livros não foi muito bem recebida. Escritores consagrados em língua inglesa fizeram questão de defender o direito à integridade de um texto autoral, mesmo sem concordar com as opiniões do autor – dentro ou fora da obra em questão. Salman Rushdie, eterno alvo de obscurantismos fundamentalistas, convalescendo de recente ataque a faca em que quase morreu, tratou de protestar: “Roald Dahl não era um anjo, mas essa censura é absurda. A Puffin Books e os herdeiros deviam se envergonhar.” A canadense Margaret Atwood endossou as críticas. Lembrando que ninguém é obrigado a continuar a ler aquilo com que não concorda, citou o clássico medieval Geoffrey Chaucer, autor dos Contos da Cantuária: “Se não gostar dessa história, vire a página e leia outra coisa.” Boa dica. Até mesmo porque, como lembrou Suzanne Nossel, presidente do PEN America, organização de defesa da liberdade criativa de escritores: “O problema com isso de se dar o direito de reeditar obras clássicas é que não há qualquer princípio que limite. Começa-se querendo mudar uma palavrinha aqui e outra ali, e se desemboca na inserção de ideias inteiramente novas – como se fez com a obra de Dahl.”
Diante da forte grita que varreu o mundo da leitura, anunciou-se o breve lançamento de uma nova versão não censurada, Coleção Clássica de Roald Dahl, pela Penguin – a companhia-mãe do grupo editorial. De sua parte, a Gallimard, que publica os livros de Dahl em francês, emitiu um comunicado ressaltando: “Nunca modificamos o que Roald Dahl escreveu e não temos planos de fazê-lo.” No Brasil, a obra de Dahl é publicada por diferentes editoras – a Martins Fontes, a 34, e a Galera Junior. Até o momento, nenhuma anunciou planos de mexer no original.
As modificações introduzidas nos textos de Roald Dahl incidem apenas sobre seus livros para o público infantil. São histórias construídas com amplo recurso a paródias, em linguagem inventiva e tão cheia de neologismos que existe até um dicionário (o Oxford Roald Dahl) para dar conta das palavras criadas por ele. Talvez a intervenção tenha vindo do velho engano de confundir literatura com educação, quando se trata de obras dirigidas a crianças. Pois os contos de Dahl para adultos foram poupados, mesmo emitindo seu senso de humor discutível, por vezes desagradável, e sua linguagem politicamente incorreta. Várias das opiniões expressas em vida por Roald Dahl são francamente questionáveis e exigem mesmo repúdio (apesar de ter sido piloto na Segunda Guerra Mundial combatendo o nazismo, ele era antissemita). Mas o foco das restrições nunca foram declarações ou entrevistas do autor. Ainda assim, como o vírus da sensibilidade censora é altamente contagiante, nas semanas seguintes o fenômeno se alastrou. As notícias de reescrita de texto já dão conta de novos autores atingidos – como Agatha Christie e Ian Fleming. Suas obras são do gênero policial, também por muitos considerado algo menor diante da nobreza do que seria “alta literatura”, categoria que supostamente não abarcaria tampouco a infantojuvenil.
O que não falta são pretextos para limitar leituras alheias. Na maioria das vezes, são tentativas de proibir livros. Como a ordem do então prefeito Marcelo Crivella para apreender uma HQ que mostrava um beijo gay, na Bienal do Livro do Rio em 2019. Ou a inclusão de Macunaíma e Os Sertões em lista vetada nas bibliotecas, pelo governo estadual de Rondônia, em 2020. Mas o que chocou especialmente nesse episódio dos livros de Roald Dahl foi o papel ativo defendido, em público, pela própria editora britânica, interferindo na tessitura da obra ao trocar palavras do texto. Foi isso que acendeu o debate.
O uso de leitores sensíveis na preparação editorial vem sendo comum entre nós, no Brasil, especialmente no caso de originais inéditos e autores novos. Tem sido considerado algo quase inevitável na literatura infantil, em que é comum confundir arte e educação. A cadeia de suscetibilidades pode envolver pais, professores, divulgadores, ameaças de não adoção e outros fantasmas. Em tempo de cancelamentos nas redes, retração de vendas e dependência do sistema escolar para sobrevivência das empresas, basta um grão de pavor nascido dessa chantagem embrionária para desencadear uma avalanche. Principalmente se vier acompanhado da pressão de algum grupo online que use fake news. É preciso uma escola ter muita convicção de seus princípios pedagógicos para se dispor a convidar os reclamões para um debate a partir da leitura crítica do texto considerado sensível. Essas escolas existem. Mas, infelizmente, não são maioria.
O sistema educacional nunca parece muito confortável com a ideia de que a literatura infantil seja arte, e não apenas um instrumento pedagógico. Nos países com um sistema de bibliotecas públicas desenvolvido e atuante, os profissionais que fazem a chamada leitura sensível para as editoras estão atentos a grupos de militantes políticos. Aqui, o cenário abarca também o sistema escolar. Nos dois casos, o principal canal para que se espalhe a hipersensibilidade não são os espaços de leitura propriamente ditos, mas as redes sociais que permitem falar do que não se conhece e provocam reação imediata e epidérmica a termos descontextualizados. Na quase totalidade desses casos, não se discutem livros nem textos, mas palavras soltas. Daí a enorme dificuldade de termos conversas racionais.
Livros podem e devem ser ponto de partida para conversas e debates de ideias. O leitor tem a liberdade e o direito de escolher outro livro, outro autor, outra coleção. De não gostar daquele. De questionar os critérios da escola em que matriculou seu filho. Mas o que esse debate sobre a “limpeza” da obra de Dahl traz à tona é que não se tem o direito de exigir que a biblioteca rasgue ou queime o livro, que a escola mude seus princípios pedagógicos ou que a editora mude um livro já escrito e publicado. Ou de defender o expurgo de textos a pretexto de proteção.
Grande parte das histórias contadas pela literatura – para qualquer idade – aborda conflitos. Muitas vezes os livros tratam de medos, perdas, sofrimento. Lidam com o imaginário. Valem-se de palavras usadas de uma maneira diferente do uso que encontramos todos os dias em situações corriqueiras, pois em um bom texto literário elas podem ter vários sentidos e nos obrigam a pensar e descobrir algo novo. Evitar que os leitores encontrem esses temas e modos de usar a linguagem equivale a limitar sua experiência e apostar no empobrecimento do ato de ler.
“O que é novo é que hoje as editoras estão se voltando para os clássicos; antes, elas contratavam leitores sensíveis apenas para os novos livros”, constatou recentemente Elena Pasoli, diretora da Feira do Livro Infantil de Bolonha. Autores principiantes estão mais sujeitos a esse tipo de bloqueio ou manipulação de seu texto, mas escritores consagrados não são imunes a essas investidas. Não sou uma autora iniciante. Sou consagrada também entre os leitores adultos, já presidi a Academia Brasileira de Letras, escrevo há mais de cinquenta anos, vendi milhões de exemplares, tenho importantes prêmios nacionais e internacionais e títulos traduzidos em dezenas de países, para todas as idades. Portanto imagino que os leitores sensíveis também se sensibilizem com esses números ou respeitem esses dados. Mas volta e meia aparecem sugestões para que eu mude o texto em reedições. Algumas podem ser francamente bobinhas. Por exemplo: “Nesse trecho em que o personagem toma um banho demorado, será que podemos tirar o adjetivo? Banhos longos gastam muita água e isso é ruim para o planeta…”
Outras substituições sugeridas são mais complexas e sua simples troca modificaria por completo o sentido do texto. Um de meus livros de maior sucesso entre as crianças, Menina Bonita do Laço de Fita, tem como protagonista uma menina linda, que um coelho branco acha a pessoa mais deslumbrante que já viu, e a quem reiteradamente pergunta, num estribilho: “Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha?” No decorrer da história, escrita e publicada há quase quarenta anos, menciono que a mãe da menina é mulata. A solução para a dúvida da menina vem da compreensão da sua mestiçagem – ela é linda e pretinha porque a avó era preta. Durante quase quatro décadas, não houve qualquer problema com isso. Em todo canto aonde eu chegava, meninas bonitas, mestiças como a maioria das brasileiras, vinham contar felizes que eram iguais à personagem. Ultimamente, surgiram questionamentos, sempre vindos de adultos. Por que usar a palavra mulata? Não é ofensivo? Não vem de mula?
Alguns vêm estudando essa prática, com lucidez – como é o caso do escritor Ilan Brenman, autor de uma tese de doutorado sobre o politicamente correto na literatura infantojuvenil brasileira. Como demonstra de modo convincente, os leitores (e as crianças em particular) não ficam preconceituosos por causa do que leem. Pelo contrário, a pretensa eugenia literária impede que conheçam os diferentes, enfrentem suas ansiedades e frustrações, derrubem os preconceitos. Histórias não devem ser uma espécie de redoma num vocabulário asséptico, mas uma oportunidade para que se tenha contato com a diversidade do mundo, a multiplicidade de opções e situações diante de cada um.
Deus me livre de ofender crianças. Sobretudo aquelas cuja beleza eu só queria celebrar quando escrevi a história. Mulata não é xingamento. Chamar a mãe de afrodescendente num livro para crianças pequenas escapa ao vocabulário infantil – e tem sílaba demais para um texto ritmado. “Por que não chamar de preta?” Simplesmente porque a menina é descrita como preta, e se a mãe for preta, ela não poderia ter dúvida alguma sobre a origem de sua cor. Com isso, minha menina esperta e divertida, cheia de ideias (e que as ilustrações mostram lendo, pintando, dançando, brincando de teatro), acabaria se transformando em outra personagem. É no que dá escamotear a mestiçagem. Se é para mudar, sugeri então à editora outras palavras de três sílabas com sentido próximo, como morena, mestiça. Optamos (por enquanto) por deixar assim, com o acréscimo de uma nota ao final do livro, lembrando até que Caetano Veloso já defendeu o uso do termo e não acha que seja ofensa. E se a criança que ouve a história é capaz de aceitar a fantasia de um coelho falante, pode aceitar que o texto não pretende feri-la com uma palavra. Ou não?
Menina Bonita do Laço de Fita foi publicado em diversos países. Sempre com sucesso entre os pequenos leitores. Mas na Dinamarca esbarrou numa comissão de seleção para bibliotecas, que a acusou de enaltecer a mestiçagem, apresentada sob uma luz favorável que pode desmobilizar e prejudicar a luta das pessoas pretas. E nos Estados Unidos, me sugeriram trocar o coelho por outro animal, pois “todo mundo associa coelho à promiscuidade”, e meu personagem reforçaria estereótipos sobre a sexualidade dos afrodescendentes.
É uma história para crianças pequenas, em sua maioria ainda nem mesmo lendo sozinhas. Creio que o que essas objeções revelam é uma certa insegurança de adultos para se sentir à vontade na situação de mediação de leitura. Talvez esse seja um novo fenômeno: uma crescente rejeição à leitura, seu desprestígio, a tentativa de diminuí-la de qualquer maneira, a desconfiança de que ler pode fazer mal, causar sofrimentos irreparáveis.
Gerações anteriores acreditaram que se deve estimular a leitura, pois seria um caminho de melhoria para o indivíduo e para a humanidade como um todo. Agora, entre fundamentalismos religiosos e políticos, conservadorismo exacerbado, ou identitarismos equivocados e distorcidos, surgem sinais do enfraquecimento da crença de que ler leva a uma transformação positiva contínua e progressiva, e que a leitura pode ajudar cada um a se conhecer melhor, a se reconhecer no outro, a se apropriar de experiências mais amplas, a amadurecer e a interagir socialmente com maior empatia.
A leitura crítica feita em escolas, com possibilidade de debate amplo e orientação de professores preparados, pode ser um precioso auxiliar na educação emocional dos jovens, abrindo horizontes para confronto de ideias e atitudes, conhecimento de pontos de vista diferentes, exposição de possíveis mágoas e sentimentos conflitantes. A literatura de ficção permite que o leitor se coloque momentaneamente na pele dos outros e os entenda por dentro. Pode ajudar na compreensão mais aprofundada de quem não é igual a si. Livro na escola é para ser discutido. Mas deve se apoiar em professores bem formados e dignamente remunerados, que possam ler, assistir a filmes e peças, ter contato pessoal com a arte e a ficção criadora na medida de seus interesses.
Os Estados Unidos estão à frente em matéria de hipersensibilidade e melindres. Já há algum tempo proíbem títulos e tiram livros das estantes de bibliotecas escolares (na Flórida, desde 1978), numa batalha com a palavra escrita que vem de longe. A obra de Herbert Foerstel, Banned in the usa: A Reference Guide to Book Censorship in Schools and Public Libraries (Banido nos Estados Unidos: guia de referência sobre censura literária nas escolas e bibliotecas públicas) dá uma ideia da magnitude dessa tendência. Segundo o PEN America, apenas no ano escolar de 2021-22, houve 2 532 casos de proibição a livros de literatura infantojuvenil, muitos deles premiados. Seu maior autor clássico na literatura para jovens, Mark Twain, já está banido da leitura escolar há décadas, porque sua obra-prima As Aventuras de Huckleberry Finn, livro que Hemingway considerava o mais importante e fundador de toda a literatura de seu país, incluía a palavra nigger, altamente ofensiva aos afrodescendentes. Foi proibido sem ser contextualizado dentro da época em que foi escrito, sem se levar em conta a profunda crítica que o autor fazia à hipocrisia religiosa do país, e sem considerar o fato de que o protagonista, menino rebelde, enfrenta toda a sociedade e ajuda a fugir do cativeiro um negro escravizado, Jim, que é o grande personagem ético e o compasso moral da história.
É possível admitir que várias dessas iniciativas partem de boas intenções – as tais pedras que a sabedoria popular diz que pavimentam o Inferno. Há ideias que são mesmo francamente condenáveis, e não devem ser aceitas. Livros (principalmente dirigidos às crianças) não devem ser veículos de ofensas a ninguém, nem servir para perpetuar preconceitos só porque sempre foi assim. A tradição não deve ser usada como desculpa para ofensas. Nessa linha, clássicos infantis (ou de que jovens se apropriaram, de Robinson Crusoé a Gulliver) são recontados e adaptados em sucessivas gerações. É compreensível e aceitável que editores de livros infantis estejam atentos a essas questões delicadas. E se espera que quem escreve para essa faixa etária não se sinta autorizado a ser leviano e irresponsável. Mas é desejável que, no mundo editorial, os leitores sensíveis sejam também sensatos. E no mundo pedagógico, o mínimo a exigir é que não se confunda literatura infantil com livro didático. E que os que lidam com a leitura das crianças sejam leitores. Isto é: acostumados a ler para si mesmos e a discernir o que palavras literárias podem trazer. Ou não. Para não culpá-las pelo que não fazem.
No Brasil, temos o caso da obra de Monteiro Lobato, responsável pela formação leitora de gerações apaixonadas por seus textos – e também, em releituras, se revelando portador dos terríveis preconceitos racistas de seu tempo e da sociedade escravocrata de que todos descendemos, ai de nós!, e de que nos envergonhamos enquanto a denunciamos e buscamos reparar os erros de sua herança brutal. São ideias preconceituosas inadmissíveis. Isso independe de, em outras áreas, o autor ser considerado de esquerda, ter sido preso como comunista, ter lutado em defesa de nosso petróleo. Ou de ter sido um dos primeiros a denunciar queimadas e desmatamento – enquanto, ao mesmo tempo, os personagens de sua obra infantil se envolviam com caçadas a onça.
Tais contradições se evidenciam ainda mais agora que sua obra caiu em domínio público e diferentes editoras podem reeditá-la. Mas reeditá-la como? As saídas têm sido variadas. Ora por uma seleção de trechos. Ora pelo uso de paratextos – notas críticas explicativas, prefácio ou comentários. Assim se mostra ao leitor que a linguagem escrita foi feita para durar, mas o mundo muda. A literatura não é como uma notícia de jornal, logo descartável. Ela é longeva. Muitas vezes o que está escrito dura mais do que as ideias do tempo em que a história nasceu. Mudamos como? Por quê? O mundo melhorou se agora não aceitamos mais aqueles costumes e opiniões? O que ainda deveria mudar? Vale a pena discutir.
Este ano marcou os 70 anos da morte de Graciliano Ramos. Em 2024, sua obra entrará em domínio público. Pelo menos nos textos para a infância, devem surgir polêmicas. Como encarar, por exemplo, A Terra dos Meninos Pelados, com crianças sem cabelo magoando leitores às voltas com tratamento quimioterápico? Como se divertir com as Histórias de Alexandre, a dar modelos de mentiras simpáticas?
O ideal seria poder conversar sobre o que se lê. E opor novas leituras a velhas leituras. Um autor a outro. Multiplicar o número do que é lido e variar os pontos de vista, de modo que um livro responda a outro ou o contradiga. Alimentar argumentos. Aumentar a autonomia do leitor em vez de diminuí-la. Não é preciso – nem desejável – concordar com tudo o que se lê.
Um efeito perturbador dessa preocupação excessiva com a assepsia literária é que a proliferação de leitores sensíveis nas editoras traga uma autocensura por parte dos autores. E que nossa literatura infantil, tão marcada pela irreverência e pelo humor, comece a ser podada no nascedouro, virando uma chatice que substitui sorriso e poesia por palavras de ordem. Ou ambiguidades divertidas por lições de moral. Há também o óbvio direito moral do autor, de não ser levado post mortem a assinar algo que não escreveu, mas que um leitor sensível achou por bem lhe atribuir. E que alguns anos depois outro leitor sensível pode tornar a modificar, ao bel-prazer dos modismos de sensibilidade de cada momento. Literatura é a arte das palavras. Não confundir com bula de remédio, obrigada a se preocupar com dosagens, efeitos colaterais e contraindicações. Nossas crianças merecem mais. Os adultos também.
[1] O caso do ilustrador é citado, entre outros análogos, pela historiadora da educação Diane Ravitch em seu livro The Language Police: How Pressure Groups Restrict what Students Learn (A polícia da linguagem: como os grupos de pressão restringem o que os alunos aprendem), de 2003. Muitos outros casos semelhantes são citados por Marjorie Heins em seu livro Not in Front of the Children: “Indecency”, Censorship and the Innocence of Youth (Não na frente das crianças: “indecência”, censura e a inocência da juventude), de 2001.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_201 com o título “Sensatez e sensibilidade”.
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