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Tesouro submerso
As descobertas da Petrobras indicam que as reservas brasileiras devem saltar de 14 para 70 bilhões de barris, colocando o Brasil entre os maiores produtores do mundo. Quem vai explorar essa riqueza? E quem ficará rico?
Consuelo Dieguez | Edição 19, Abril 2008
Uma gigantesca camada rochosa de sal se estende no fundo do Oceano Atlântico do Espírito Santo até Santa Catarina. Com 800 quilômetros de comprimento por 200 de largura, ela fica a pouco menos de 300 quilômetros do litoral. Para se ir da superfície da água até o topo da camada, no fundo do mar, é preciso submergir 5 mil metros. E para se chegar à base da formação salina é necessário atravessar outros 2 mil metros. A soma de água e rochas de sal equivale a uma montanha do tamanho do Everest. Durante 130 milhões de anos, essa imensidão branca permaneceu desconhecida e intocada. Há cerca de dois anos, com acesso à tecnologia sismológica mais recente, geólogos da Petrobras conseguiram afinal enxergá-la. Usaram aparelhos que parecem uma enorme ultra-sonografia: navios-plataforma emitem ondas sísmicas cujo eco produz um retrato do fundo do mar. A imagem obtida revelou a camada de sal.
Os manuais de geologia ensinam que, sob cadeias submarinas de rochas de sal, costuma haver petróleo. Sondas especiais foram então enviadas para perfurar sete poços embaixo das rochas, na camada cujo nome técnico é pré-sal. Foi escolhida uma área conhecida como Bacia de Santos, distante 286 quilômetros da costa do Rio de Janeiro. O material, recolhido a diferentes profundidades, foi levado à análise em laboratórios da Petrobras. Em maio passado os primeiros resultados ultrapassaram as previsões mais otimistas. Eles indicavam a probabilidade de haver no pré-sal uma quantidade enorme de petróleo e de gás.
Em outubro veio a confirmação. Dois testes realizados em uma das áreas pesquisadas – o campo de Tupi – revelavam, sem margem de dúvidas, a existência de reservas de 5 a 8 bilhões de barris. Ou seja, em apenas uma das sete áreas sondadas a quantidade de petróleo encontrada equivalia à metade das reservas brasileiras atuais, estimadas então em 14,4 bilhões de barris. Testes subseqüentes aumentaram o impacto da descoberta. As amostras indicavam a existência de petróleo e de gás nas sete áreas. E mais: em todas elas, o petróleo encontrado era do mesmo tipo, o leve, de qualidade muito superior ao pesado, produzido na Bacia de Campos. O petróleo leve, por ser mais propício ao refino e à produção de gasolina, é mais rentável e caro que o pesado.
O que deixou os pesquisadores da Petrobras eufóricos não foi a qualidade do óleo dos sete poços – foi a sua uniformidade. Isso indica a existência não de campos isolados, mas de enormes reservatórios, situados numa área contínua. No caso do mar brasileiro, significa dizer que, por baixo da camada de sal, do Espírito Santo até Santa Catarina, muito provavelmente jaz um mar de petróleo.
Os cálculos da Petrobras estimaram que nessa área há reservas de cerca de 70 bilhões de barris. Se a estimativa estiver próxima dessa realidade, o Brasil pulará do 24º para o nono lugar no ranking mundial das reservas de óleo e de gás, ficando atrás apenas dos paí-ses do Oriente Médio, da Rússia, da Nigéria e da Venezuela. Com o preço do barril batendo nos 110 dólares, o Brasil teria hoje o equivalente a quase 8 trilhões de dólares – oito vezes o seu Produto Interno Bruto.
Como essas reservas podem mudar radicalmente a economia nacional, a Petrobras e o governo trataram a descoberta como segredo de Estado. Em meados de outubro, José Sérgio Gabrielli, o presidente da Petrobras, insistiu junto ao presidente da República que ele fosse ao Rio para assistir a uma apresentação sobre as pesquisas da empresa. No dia 26 daquele mês, Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou na cidade, acompanhado do ministro interino das Minas e Energia, Nelson Hubner, e do ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Resende. A comitiva seguiu direto para o Centro de Pesquisas da Petrobras, o Cenpes, uma construção em concreto aparente erguida na Ilha do Fundão, na Zona Norte, onde se desenvolvem todas as pesquisas da companhia. Além de Gabrielli, aguardavam o presidente os diretores da Petrobras e alguns superintendentes e gerentes da companhia.
Todos se acomodaram na sala de projeção e receberam óculos especiais para visão simulada em três dimensões. A apresentação permitiu que o presidente Lula e seus ministros tivessem uma idéia concreta da pesquisa e da quantidade de óleo existente no fundo das águas territoriais brasileiras. Terminada a exposição, Gabrielli passou a palavra para Guilherme Estrella, o diretor de exploração e produção da empresa. Ele reiterou que os testes não deixavam dúvidas quanto à existência do petróleo embaixo de toda a camada de sal, e não apenas nas áreas sondadas. Entrou a seguir no terreno político. Estrella argumentou que, como o risco de exploração era nulo, qualquer empresa que perfurasse naquela faixa encontraria petróleo excelente e em grande quantidade. Seria um crime de lesa-pátria deixar que outras empresas, que não a Petrobras, explorassem o petróleo na área, teria dito Estrella, segundo me contou um dos participantes da reunião.
A discussão levantada por Guilherme Estrella não era teórica. A Agência Nacional do Petróleo, ANP, havia marcado (antes da descoberta) a nona rodada de licitação de zonas petrolíferas para dali a um mês, no dia 27 de novembro. A rodada estabelecia o leilão de 312 áreas (“blocos”, no linguajar da licitação) em terra e no mar. Dessas, 41 estavam bem na área sob a camada de sal, nas imediações do campo de Tupi. Estrella sustentou que a manutenção da nona rodada equivaleria a “entregar um bilhete premiado aos nossos concorrentes”. Com base nesse argumento, a direção da companhia pediu a Lula que cancelasse o leilão.
Todas as empresas de petróleo instaladas no Brasil – incluindo aí as maiores do mundo, como a anglo-holandesa Shell, as americanas Exxon, Chevron, e Devon, a norueguesa Statoil e a espanhola Repsol – tinham grandes expectativas com a nona rodada. Isso por que, pelas regras da Agência Nacional do Petróleo, aquelas que se candidataram às licitações puderam comprar um pacote de dados sobre os blocos em leilão. Os pacotes, que custaram entre 1 e 2 milhões de dólares, continham algumas informações sobre a camada de sal – embora não tivessem o resultado dos testes feitos pela Petrobras. Os geólogos das demais petroleiras, no entanto, fizeram a dedução elementar: a de que, embaixo do sal, poderia haver óleo.
Tanto Lula quanto os diretores da Petrobras estavam cientes de que o cancelamento da rodada repercutiria mal no setor e, fatalmente, levantaria suspeitas quanto à disposição do governo petista em manter a quebra do monopólio do petróleo, aprovada há dez anos pelo Congresso.
Um último argumento, também apresentado por Estrella, ajudou o presidente a tomar a sua decisão. Esbanjando irritação, ele revelou que, no mês anterior, o empresário Eike Batista contratara para a sua recém-criada empresa de petróleo, a OGX, duas figuras-chave na descoberta do lençol do pré-sal: o geólogo Paulo Mendonça, gerente executivo do departamento de exploração e produção da Petrobras, e Luís Reis, seu gerente de contratos. E a OGX, liderada por Francisco Gros, que foi presidente da Petrobras no governo de Fernando Henrique Cardoso, vinha dando mostras de que estava disposta a fazer lances bem altos na nona rodada.
“O Paulo Mendonça e o Luís Reis tinham mais informações do que todos os diretores da Petrobras”, confirmou-me no mês passado um ex-diretor da empresa. “Eles sabiam não só das áreas onde havia mais petróleo, mas também dos preços que a Petrobras poderia oferecer por cada bloco, caso fossem a leilão.” No encontro na Ilha do Fundão, por diversas vezes Estrella se referiu a Mendonça e a Reis como “traidores”, o que parece ter sensibilizado o presidente. Segundo um dos presentes na reunião, Lula selou a sua decisão com uma frase: “Vamos cancelar a nona rodada. Foda-se o mercado.”
Quatro dias depois, em 30 de outubro, o diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo, Haroldo Lima, recebeu um telefonema da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Lima é um baiano bem-humorado, de cabelos grisalhos e olhos claros que há 35 anos é dirigente do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Ele começou a fazer política ainda no curso de Engenharia Elétrica da Universidade Federal da Bahia, passou para a clandestinidade em 1967, foi preso em 1976 e solto quase três anos depois, com a promulgação da lei da anistia.
Em março, na sua imensa sala da direção-geral da ANP, no centro do Rio, Haroldo Lima rememorou o telefonema da ministra. “A Dilma me ligou e eu perguntei onde ela estava”, contou. “Ela disse que estava no hospital, toda espetada de agulhas. Nós rimos e eu chamei sua atenção por ela estar trabalhando daquele jeito.” A ministra, que convalescia de uma crise de diverticulite, lhe disse que Lula ligara pouco antes de Zurique – onde fora participar da reunião da Fifa que escolheria o Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014 – e determinara que ela convocasse uma reunião extraordinária do Conselho Nacional de Política Energética, o CNPE.
A reunião foi marcada para o dia 8 de novembro, na sede da Petrobras, no centro do Rio. Na manhã daquele dia, os treze integrantes do CNPE, entre eles o ministro da Fazenda, Guido Mantega, do Planejamento, Paulo Bernardo, e Dilma Rousseff, além de Lula, se reuniram no 18º andar do prédio. Foi feita uma apresentação semelhante à da Ilha do Fundão, inclusive com os óculos em 3D. “Foi uma comoção”, contou Haroldo Lima. “Ficamos todos muito impressionados com as descobertas.”
Os conselheiros foram então encaminhados para uma sala no 24º andar. Lá, o presidente Lula foi direto ao assunto: “Tudo o que vocês viram é para o Brasil uma notícia muitíssimo importante e positiva.” E em seguida enfatizou: “Não passarei à história como o presidente que tomou conhecimento de uma notícia dessa natureza e deixou tudo prosseguir como se nada tivesse acontecido.” Lula repetiu os argumentos da direção da Petrobras, de que a licitação dos blocos exploratórios se justificava apenas quando envolvia capital de risco, mas, naquele caso, o risco era quase inexistente. E ele então concluiu que, do ponto de vista do interesse nacional, seria recomendável cancelar a licitação.
“Todos os conselheiros concordaram com a proposta”, contou Haroldo Lima. Quando chegou a vez de o próprio Lima falar, o diretor-geral da ANP destoou. Ele lembrou que outros 271 blocos, em terra e em mar, também constavam da nona rodada, e argumentou que, para muitas empresas e municípios de pequeno porte, a exploração dessas áreas era fundamental. Boa parte desses blocos ficava em regiões pobres do Nordeste e, para elas, a exploração do petróleo significaria um grande reforço de caixa, por conta do pagamento dos royalties. Lima sugeriu então que, em vez de se cancelar o leilão inteiro, se retirasse da nona rodada apenas os 41 blocos sob o sal.
Lula se entusiasmou com a proposta porque, dessa forma, o desgaste do governo diante das empresas e dos investidores seria menor. “Nada como a experiência de um velho comunista”, brincou Lula com o diretor-geral da ANP. Na hora do almoço, ele chamou Lima para a sua mesa e perguntou, preocupado: “Ô Haroldo, você tem certeza que dá para tirar só os blocos sob o sal?” Lima conta, rindo, que, naquele momento, sentiu um certo pavor. “Eu tinha quase certeza que podia, mas quando o presidente da República te faz uma pergunta dessas à queima-roupa, a certeza vai para o espaço.” Ele pegou o celular e ligou para o procurador da ANP, Gustavo Takahashi, para se certificar. O procurador também não tinha certeza, e lhe pediu um tempo. “Takahashi, você não está entendendo, eu preciso dessa informação agora”, disse-lhe Lima. “Me liga assim que você tiver alguma posição”, pediu Lima quase desesperado. “O tempo ia passando e nada dele me ligar. Mas, antes do fim do almoço, ele confirmou a legalidade da operação.”
Coube à ministra Dilma comunicar à imprensa, depois do almoço, a exclusão dos 41 blocos da licitação. Ela justificou a decisão com a descoberta de “uma nova província petrolífera na área, de uma riqueza de proporções significativas”. Logo após a ministra falar, Sérgio Gabrielli e Guilherme Estrella disseram que as estimativas das reservas existentes no campo de Tupi iam de 5 a 8 bilhões de barris. No final daquela tarde, numa teleconferência com representantes de instituições financeiras, a direção da Petrobras finalmente disse que toda a área embaixo do sal, pertencente à União, tinha reservas estimadas em 70 bilhões de barris.
A decisão de se manter a nona rodada da ANP, embora com a retirada dos 41 blocos, frustrou as expectativas de dirigentes da Petrobras. Gabrielli e Estrella achavam que o anúncio das reservas bilionárias seria uma excelente oportunidade para o governo defender a volta do monopólio da Petrobras na exploração e produção do petróleo. A posição inicial do presidente Lula, durante a reunião no Fundão, enchera os dois de esperança. Mas a decisão final do CNPE revelou que tanto o presidente como Dilma Rousseff preferiam ganhar tempo.
Desde a mudança da lei do petróleo, em 1998, a produção no Brasil saltou de 300 mil barris ao dia para 1,9 milhão, quase tudo produzido pela Petrobras. Nesse período, mais de setenta empresas nacionais e estrangeiras também passaram a explorar o petróleo em território nacional, pagando royalties e participações especiais aos cofres de União, estados e municípios. O estado do Rio, que em 1995 recebia como royalties, pela exploração da Bacia de Campos, 40 milhões de reais, arrecada hoje 6 bilhões de reais por ano. Entre 1998 e 2006, o total dos repasses para dez estados e 823 municípios saltou de menos de 1 bilhão para 68 bilhões de reais.
Apesar dos royalties, nenhum dos municípios teve mudanças expressivas no panorama econômico. Nem é garantido que, com a extração das reservas bilionárias, o Brasil também fique bilionário. A exploração de petróleo não significa nem riqueza econômica nem democracia política. No caso da África, o petróleo tem sido, historicamente, mais fonte de miséria e conflito do que de progresso. A Nigéria é o país mais populoso do continente e o sexto maior produtor de óleo no mundo. Mais de 250 bilhões de dólares em óleo já foram extraídos da água e do solo nigerianos nas últimas quatro décadas. Mas o país permanece mergulhado num fosso de pobreza e de bilhões de dólares em dívida. Além disso, a região de onde se origina 100% da produção nigeriana, o Delta do Níger, é uma das mais miseráveis do país, sem sequer serviços de saneamento básico. A poluição provocada pela extração do petróleo provocou doenças e arruinou as únicas fontes reais de recursos dos moradores: a agricultura e a pesca.
Em Angola, a situação é semelhante. Ali, o Estado faz contratos de partilha com as multinacionais petrolíferas. Em troca da exploração, elas ficam com uma parte do produto extraído, e o governo com outra. A parcela estatal, contudo, não costuma ter como destino os cofres públicos. A maior parte do dinheiro escorre pelos ralos da corrupção, enriquecendo apenas umas poucas famílias de governantes, que, graças às fortunas amealhadas, compram bens na Europa e se eternizam no poder.
Esse panorama se repete na maioria dos países grandes produtores de petróleo. O dinheiro obtido com a exploração das reservas vem servindo para sustentar ditaduras, clãs corruptos, grupos mafiosos e fanáticos religiosos. Nos países árabes, o petróleo é o alicerce na manutenção de regimes semifeudais. Na Arábia Saudita, a dinastia familiar dos Saud tornou-se praticamente dona do país, a partir da descoberta do petróleo na década de 30. No Irã, mulás se sustentam no poder com a força de milícias pagas com os ganhos da exportação de petróleo, que representa 70% das suas receitas. Na Rússia, desde a privatização das empresas petrolíferas, elas são disputadas por máfias que juntam políticos e bandidos. Na América Latina, o México e a Venezuela, há décadas grandes produtores, não conseguiram, apesar disso, livrar-se de índices sociais sofríveis e de crescimento econômico medíocre. Os venezuelanos, por exemplo, sofreram durante quarenta anos com a corrupção de elites governamentais enriquecidas pelo petróleo. A revolta com a situação favoreceu o surgimento de Hugo Chávez, que usa os recursos do petróleo para desenvolver uma política populista.
Embora ainda às voltas com os problemas da pobreza e da desigualdade, o Brasil está longe da instabilidade política e social reinante na maioria dos países petrolíferos. Além disso, o Brasil tem uma extensa pauta de exportação, que vai desde minério de ferro a produtos agropecuários e a manufaturados, o que em geral não acontece com os grandes produtores, cuja economia depende quase que exclusivamente da venda do petróleo. “O Brasil é o único país com democracia plena, regras estáveis e estabilidade social a possuir reservas acima de 70 bilhões”, avaliou Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-estrutura, uma consultoria especializada em energia. “Isto cria um novo paradigma para a indústria petroleira mundial.”
Há dez anos, alguns críticos da quebra do monopólio estatal do petróleo diziam que o Brasil correria o risco de seguir os mesmos rumos dos países africanos, tornando-se apenas um fornecedor de óleo para as grandes multinacionais. “Naquele tempo, essa crítica já era descabida”, afirmou David Zylbersztajn, dono da DZ consultoria e o primeiro diretor-geral da ANP. Ele disse que todos os cuidados foram tomados para que grande parte dos equipamentos para exploração de petróleo fosse fabricada aqui. “Além disso, o Brasil já tinha uma indústria muito forte no setor, que atendia à Petrobras.” Entre 2000 e 2006, os investimentos da indústria do petróleo somaram 58 bilhões de dólares. Segundo o diretor-geral da Organização Nacional da Indústria do Petróleo, Eloi Fernández, o Brasil possui 1 500 empresas fornecedoras de equipamentos para a indústria do petróleo. A estimativa é de que o conteúdo nacional nas plataformas, linhas de escoamento, torres de prospecção e válvulas submarinas seja de 50%. Ou seja, metade de tudo o que é produzido para o setor vem sendo fabricada aqui mesmo. “Esse é um excelente momento para a indústria nacional. Com o barril a 110 dólares, a demanda por equipamentos e serviços está superaquecida em todo o mundo”, afirmou Fernández.
Em março, as 36 empresas de petróleo – das quais 21 brasileiras – que arremataram blocos na nona rodada estiveram na ANP para assinar os contratos de concessão. Os investimentos dessas companhias, apenas na fase exploratória, somam 1,3 bilhão de reais. Entre as empresas privadas, a OGX de Eike Batista foi a que arrematou o maior número de blocos – 21, apenas seis a menos do que a Petrobras – , pagando bônus de mais de 1 bilhão de dólares. O presidente da OGX, Francisco Gros, admitiu recentemente que a empresa estava preparada para entrar pesado na compra dos blocos na área sob a camada de sal, que foram retirados dias antes da licitação. “Nós iríamos até o limite de nossas possibilidades”, disse-me ele.
Essas posições da OGX, e sobretudo a contratação dos dois funcionários da Petrobras, fizeram com que a companhia de Eike Batista fosse vista pela Petrobras como a sua principal adversária. “Esse ataque da Petrobras à OGX não faz o menor sentido”, reagiu Gros. “A estatal precisa entender que ela agora tem concorrentes, que não é mais uma empresa monopolista. Esses movimentos de contratação de funcionários são normais no mercado. Quem paga mais, leva.”
Gros não se conforma com a posição que a estatal vem assumindo em relação à exploração na área do pré-sal. Sua avaliação é de que, ainda que o risco seja pequeno, qualquer empresa que se disponha a explorar ali terá que fazer investimentos gigantescos, até que os campos entrem em produção. “Estamos falando de prospecção de petróleo a 7 mil metros de profundidade”, disse ele. “Isso exigirá enormes gastos tecnológicos que só trarão benefícios.”
Ernani Torres, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, espalhou sobre a sua mesa, na sede da instituição, no Rio, uma pilha de gráficos para ilustrar um fenômeno. Os financiamentos tomados pelas empresas junto ao banco indicam que a economia brasileira iniciou, no ano passado, o maior ciclo de investimentos das últimas três décadas. Entre 2008 e 2011, os investimentos totais contratados somam 1,2 trilhão de reais. Só na indústria do petróleo e do gás, serão investidos 202 bilhões de reais, sendo a Petrobras responsável por 75% disso. “O BNDES é o único financiador de longo prazo; por isso temos condições de avaliar com precisão os planos de investimentos das empresas”, disse ele. “Sabemos que estamos diante de uma brutal onda de investimentos no Brasil.”
A avaliação do BNDES é de que os investimentos em petróleo tendem a crescer de forma cada vez mais acelerada. A demanda mundial pelo combustível ainda é grande, apesar de os preços terem atingido patamares estratosféricos. Mesmo dando sinais de recessão, os Estados Unidos consomem 22 milhões de barris de petróleo ao dia, mais de dez vezes o que é consumido pelo Brasil. Depois dos americanos, são os chineses que mais utilizam o combustível: 10 milhões de barris ao dia. Não há ainda sinais no horizonte de que essa demanda irá arrefecer.
Desde que o governo tornou públicas as descobertas, em novembro do ano passado, novos testes foram conduzidos por laboratórios independentes, como o HRT, do Rio. Todos eles confirmaram a possibilidade da existência dos níveis de reservas estimados pela Petrobras. Uma outra avaliação, feita pelo banco Credit Suisse, em janeiro, apontou para reservas superiores a 50 bilhões de barris. O Brasil, que há apenas um ano se dava por satisfeito por ter alcançado a auto-suficiência na produção de petróleo, extraindo 1,9 milhão de barris ao dia, vê-se agora diante da possibilidade de, até 2015, estar produzindo 5 milhões de barris de petróleo diariamente. Essa mudança no patamar das reservas brasileiras teve tanto impacto que o Departamento de Energia dos Estados Unidos avaliou oficialmente que o Brasil se tornara uma nova fronteira do petróleo.
Essas descobertas chegam num momento em que alguns países dão sinal de enfraquecimento da sua produção. É o caso do México, que reduziu os seus investimentos em exploração e vem prospectando bem menos nos últimos cinco anos. Sem novas descobertas, as suas reservas, que já foram de 50 bilhões de barris, hoje são de 15,3 bilhões. A queda dos investimentos mexicanos se deve ao seu modelo de exploração do óleo, feito por meio de contratos de serviço. Nesse sistema, o país contrata companhias privadas para explorar o petróleo e as remunera por isso. As empresas não têm direito a nenhuma parcela do óleo, que é todo administrado pela Pemex, a estatal do setor. Para as petroleiras, o modelo foi se tornando desinteressante, em função de não lhes permitir acumular reservas. Um dos parâmetros usados para avaliar o desempenho das companhias é a comparação da produção com a sua capacidade de acumular reservas. Se a companhia produz em grande quantidade, mas, ao mesmo tempo, não repõe o que foi explorado, ela perde valor.
A produção da Inglaterra e da Noruega no mar do Norte – que teve grande expansão nos anos 70 e 80 – também entrou em declínio no começo da década. Os altos custos de produção em áreas cada vez menos acessíveis desestimularam a prospecção.
Ainda que o preço do barril seja um evidente incentivo a novos investimentos, as gigantes multinacionais do setor não têm se esforçado muito na busca do petróleo. Um estudo feito pela Rice University, dos Estados Unidos, revelou que os investimentos das cinco maiores petroleiras do mundo – BP, Chevron, ConocoPhillips, ExxonMobil e Shell – caíram de quase 10 bilhões de dólares, em 1997, para pouco mais de 6 bilhões de dólares, em 2005, apesar de todas estarem engordando o seu caixa, em função da alta nos preços. No ano passado, em vez de prospectar, as cinco grandes usaram 56% do seu caixa para pagar dividendos aos acionistas.
O resultado é que a produção delas caiu de 10,2 milhões de barris ao dia em 1996, para 9,4 milhões de barris ao dia em 2005. Isso estaria ocorrendo porque haveria cada vez menos óleo para ser descoberto no mundo. Na própria Arábia Saudita, recentes estudos revelam o esgotamento de muitos poços. As gigantes petroleiras, porém, usam como justificativa para a queda da produção a dificuldade que vêm encontrando para explorar petróleo em muitos países. As maiores reservas estão nas mãos das empresas estatais de governos que dificultam a sua entrada no jogo. A Venezuela, por exemplo, tomou 50% dos campos explorados pelas grandes companhias, e acabou expulsando a Exxon de lá.
O que se discute na Petrobras e no governo é a oportunidade de mudar a forma de concessão da exploração no Brasil, já que não existiria o risco exploratório. Pelas regras atuais, toda empresa, interessada em prospectar e produzir petróleo (inclusive a Petrobras), tem que participar de uma licitação dos blocos exploratórios, e assinar contratos de concessão. Esse modelo é utilizado na metade da produção mundial de petróleo. Por ele, a concessionária paga ao Estado um bônus pela aquisição do bloco de exploração, e fica com o risco de encontrar ou não petróleo na área. Caso ela tenha sorte, a empresa paga ao Estado royalties e participações especiais pela sua produção.
Na direção da Petrobras, defende-se que o modelo ideal para o Brasil seria o de contratos de partilha de produção – o mesmo utilizado em Angola. Para que um contrato de partilha seja adotado, é necessária, porém, a existência de uma empresa 100% estatal, sem ações no mercado, já que ela ficaria responsável por todo o petróleo do país. No caso da Petrobras, a aplicação do modelo exigiria que a empresa fechasse o seu capital. Hoje, 63% das ações da companhia estão nas mãos de investidores privados. Caso o fechamento de capital não ocorresse, o governo estaria garantindo um mercado gigantesco apenas para uma companhia, privilegiando unicamente os seus acionistas.
Os defensores do modelo de partilha argumentam que, com um controle maior do Estado, as reservas não correriam o risco de se esgotar precocemente. Levando-se em consideração o histórico da exploração do petróleo no Brasil, no entanto, o risco de esgotamento de nossos recursos petrolíferos parece muito distante. Desde 1933 – quando foi perfurado o primeiro poço de petróleo, em Lobato, na Bahia – até hoje, apenas 23 mil poços foram perfurados. Todos os campos em exploração e produção no Brasil representam apenas 5% das bacias sedimentares. Os Estados Unidos e o Canadá abrem 22 mil poços por ano. Juntos, os dois países, de território comparável ao do Brasil, têm 4,5 milhões de poços perfurados. Só no Texas, há 1 milhão de poços abertos. “Com o petróleo nesses preços, era o momento de se acelerar os leilões da ANP, e não de se discutir se se deve ou não interrompê-los”, afirma o geólogo Giuseppe Bacoccoli, pesquisador da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Reservas embaixo do solo não geram riqueza.”
Quanto tempo o Brasil pode ainda esperar para decidir como explorar as suas novas reservas? Se a idéia de mudar a lei do petróleo e garantir a volta do monopólio vingar, pode-se colocar aí no mínimo uns oito anos. “Imagine toda a lei sendo votada novamente no Congresso, sob fortes pressões políticas”, disse David Zylbersztajn. É preciso também levar em consideração os interesses dos estados e de centenas de municípios que não se conformarão em perder as suas receitas. “Isso é briga para muitos anos”, afirmou ele. “O risco é de, nesse período, o preço do petróleo cair, e o Brasil ficar com essas reservas micadas.”
Uma reserva só vale sob quatro condições. Em primeiro lugar, a de saber onde está o óleo. Em segundo, quanto há de óleo. Em terceiro, se existe tecnologia para extraí-lo. Em quarto, se a tecnologia torna a exploração economicamente viável. Sem um desses quatro fatores, o risco é de as reservas permanecerem para sempre embaixo do solo ou no fundo do mar. No caso do pré-sal, todas as quatro condições, em tese, estariam presentes. A estimativa da Petrobras é de que os avanços tecnológicos tornem mais baratas a exploração e a produção de um óleo que se sabe onde está, e cuja quantidade e qualidade são garantidas. Guilherme Estrella revelou, numa conferência, que a sondagem do primeiro dos sete campos pesquisados na área do pré-sal custou à Petrobras 240 milhões de dólares. Já a pesquisa no último deles caiu para 50 milhões. A estimativa da empresa é de que a produção na área do pré-sal permaneceria economicamente viável, ainda que o preço do barril caísse a 35 dólares.
Na manhã de terça-feira, 18 de março, a direção do Instituto Brasileiro de Executivos do Mercado Financeiro reuniu, em um seminário no Rio de Janeiro, especialistas e executivos da área de petróleo. A idéia era explicar as oportunidades para o setor em função das novas descobertas. Ficou claro que a maior preocupação de todos é saber o que o governo fará em relação à lei do petróleo. No painel de abertura do encontro, estava prevista a presença de Haroldo Lima, mas ele foi substituído, em cima da hora, por um outro diretor da ANP, Nelson Narciso, que explicou que Lima fora chamado com urgência a Brasília. A informação suscitou um comentário na platéia: “Quando o Haroldo Lima vai a Brasília é sinal de que teremos problemas.” Os representantes das empresas privadas se perguntavam o que restaria para elas, caso o governo resolva mesmo voltar ao regime de monopólio. O presidente da Petrobras ajudou a elevar ainda mais o nível de tensão: ao encerrar o seminário, Gabrielli defendeu o modelo de produção compartilhada.
Dois dias depois, Haroldo Lima, já em seu gabinete no Rio, disse que mudar a lei seria um tremendo retrocesso, pois o impacto em toda a indústria petrolífera seria negativo: “Todos sofreriam, desde as petroleiras até os fabricantes e os trabalhadores.” Como foi deputado durante onze anos, Lima disse saber exatamente o que significa levar uma lei como essa no Congresso: “Sejamos realistas. Vai parar tudo. Levaremos anos até termos uma nova lei. Até lá essas reservas ficariam inexploradas?”
Existe, segundo ele, uma medida mais simples e eficaz, que poderia reverter em bilhões de dólares para os cofres públicos. Seria a edição de um decreto-lei aumentando o percentual das participações especiais, que incidem sobre a receita de cada poço. Quando a lei do petróleo foi regulamentada, o preço do barril estava na casa dos 17 dólares. Hoje, a 110, a lucratividade de todos os poços se multiplicou. Há dez anos, poços que produziam até 400 mil barris – o que então correspondia a uma receita de 68 milhões de reais – eram liberados do pagamento da participação especial. Agora, o ganho desses poços saltou para 400 milhões de reais, mas eles continuam isentos do pagamento do tributo. “O que faz sentido agora é aumentar a cobrança das participações especiais, principalmente nos blocos explorados na área do pré-sal”, reitera Lima. Existem situações em que os percentuais de taxação poderiam chegar a até 80% da receita poço.
Deixar o nosso óleo dormindo, inexplorado, é uma cartada que interessa só às grandes potências. Os Estados Unidos estão hoje sentados sobre os 220 bilhões de barris das reservas iraquianas – um óleo leve e de fácil extração. Caso países da Opep – que têm o poder de manter os preços altos, impondo cotas máximas de produção aos seus membros – comecem a criar problemas (principalmente a Venezuela de Hugo Chávez e o Irã de Ahmadinejad), os americanos podem simplesmente abrir as torneiras iraquianas e derrubar os preços.
O geólogo Márcio Mello é o dono do laboratório HRT, de pesquisas em petróleo. Há oito anos ele deixou o comando do Cenpes para montar a sua empresa, que hoje faz análises em campos do mundo inteiro. Instalado no seu escritório, com uma estupenda vista para o mar de Copacabana, Mello disse: “O mundo inteiro está investindo para aproveitar essa alta dos preços. Se a discussão sobre as reservas for ideologizada, nós corremos o risco de perder o melhor momento desse mercado.”
Ao Brasil, a demora na exploração pode ter o significado da perda do que talvez seja o último sopro da civilização do petróleo. Cada vez mais, o mundo estará falando em hidrogênio líquido, em biocombustível e em combustíveis alternativos. A corrida do petróleo, pois, pode desacelerar. Ou, como alertou o xeque Yamani, ex-ministro do petróleo da Arábia Saudita, que entende do assunto, “a idade da pedra não acabou por falta de pedra”.
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