Em 1998, então presidente mundial do BankBoston, Meirelles confidenciou a um amigo, numa conversa de bar, que gostaria de ser candidato à Presidência da República. Depois de algumas doses, concluíram que o banqueiro deveria se vender como “uma espécie de Roberto Campos de Goiás” IMAGEM: ORLANDO BRITO_2017
Um liberal à brasileira
Chefe do Banco Central de Lula, executivo de Joesley Batista e ministro da Fazenda de Temer, Henrique Meirelles sonha com a Presidência
Malu Gaspar | Edição 134, Novembro 2017
Era para ser uma ocasião festiva, mas o constrangimento dos recém-chegados denunciava que o encontro com Henrique Meirelles havia se transformado numa tremenda saia justa. Naquela manhã de quinta-feira de maio, acomodados nas poltronas aveludadas da sala do Conselho Monetário Nacional, os técnicos do Fundo Monetário Internacional, o FMI, ensaiavam como dizer ao ministro da Fazenda que o relatório otimista que haviam preparado sobre as perspectivas da economia no país tinha caducado. Ao longo dos dezesseis dias em missão no Brasil, os técnicos sinalizaram que o documento final mencionaria os esforços do governo para controlar o endividamento público e aprovar medidas de ajuste fiscal no Congresso. Seria uma ótima oportunidade para o presidente Michel Temer faturar junto à opinião pública, no momento em que completava um ano de governo. O script, no entanto, fora atropelado pela realidade.
Na noite anterior, todos confraternizavam em torno de canapés e espumantes, no salão de festa de um hotel com varanda voltada para o lago Paranoá, quando se espalhou a notícia de que o presidente havia sido gravado pelo dono da JBS, Joesley Batista, dentro do Palácio do Jaburu, incentivando o empresário a manter um cala-boca milionário endereçado ao ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Assim que as primeiras mensagens com links da matéria de O Globo pipocaram nos celulares, os convivas brasileiros – como o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn – começaram a sair de fininho. Aos poucos, os estrangeiros também perceberam que havia algo de errado no ar. Não demorou muito e os garçons já circulavam num salão vazio. Ao amanhecer, a mídia repercutia em peso as denúncias. A aposta era praticamente unânime: o presidente da República estava liquidado e seria levado a renunciar. Ao abrir a reunião pela manhã, Henrique Meirelles, ciente da ansiedade dos estrangeiros, procurou acalmá-los. “Vocês devem ter visto as últimas notícias, imagino que estejam preocupados”, disse o ministro. “Estamos com o presidente e não achamos que ele vá cair. Mas quero garantir a vocês que, independentemente do que acontecer, a política econômica continua, nossa equipe continua. E, mesmo que haja alguma transição, a presidente do Supremo Tribunal Federal, a ministra Cármen Lúcia, estará no comando.” Sentado à esquerda de Meirelles, o mexicano Alfredo Cuevas, chefe da missão do Fundo no Brasil, sentiu-se liberado para abrir o jogo, embora num tom ainda relutante. “Pois é, ministro. À luz do que ocorreu, nosso relatório ficou desimportante. Talvez fosse melhor esperar um pouco para divulgá-lo…” Meirelles não esperou que ele se estendesse. “Boa ideia. Talvez não seja mesmo a hora.” O alívio foi geral.
Na madrugada seguinte, o site da Folha de S.Paulo estampava: “Meirelles diz que fica mesmo se Temer sair e reafirma seguir com reformas.” O presidente leu e não gostou. Na hora em que mais precisava demonstrar capacidade de reação ao bombardeio, seu ministro mais estratégico tentava se distanciar dele. Temer nada disse a Meirelles – diretamente. Mas o rumor de que a fala do ministro pegara mal no Planalto se espalhou. Assim que teve chance de se encontrar com Temer, em uma reunião com outros ministros, Meirelles deu um jeito de tocar no assunto. Num comentário rápido, culpou a imprensa, que teria distorcido suas declarações. O presidente registrou o gesto – assim como os ministros e auxiliares, que se entreolharam com um risinho incrédulo. Naquele momento em que se multiplicavam as apostas de que Temer renunciaria, vários personagens apareciam como potenciais substitutos. Meirelles era um deles.
“Vamos para aquele canto ali!”, disse Henrique Meirelles, resoluto, a seus assessores, e rumou certeiro para um ponto estratégico do Rose Club, o bar do luxuoso hotel The Plaza, em Nova York. Encerrava-se o primeiro dia da visita que o ministro da Fazenda fez à cidade em setembro, para rodadas de encontros com investidores, em agenda paralela à Assembleia Geral da ONU. Perto das sete da noite, o bar começava a encher e as conversas se misturavam a um jazz de fundo. Meirelles se preparava para sentar quando um garçom o impediu. “Está ocupada, ministro!”, advertiu um dos assessores. Embora se vissem copos com bebidas, à mesa não havia ninguém, e ele não se conformou. “Mas está ocupada mesmo?”, perguntou. Os assessores ofereceram outras opções. Meirelles aquiesceu, mas deixou um deles de sobreaviso: “Fica de olho para ver se tem alguém mesmo.” O grupo se acomodou e estudou o cardápio. Todos pediram bebidas alcoólicas, menos o ministro. “Ando evitando álcool, por uma questão de cansaço”, explicou, e pediu uma sopa de cebola e uma água. “Cowboy!”, brincou.
Aos 72 anos, o engenheiro civil Henrique de Campos Meirelles – que foi presidente mundial do BankBoston e chefe do Banco Central nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva – tornou-se, no tumultuado governo Temer, o fiador da estabilidade junto ao mercado, como dizem os políticos. A expressão significa que, na percepção dessa entidade abstrata que guia os rumos da economia real, sua presença garante a ausência de manobras heterodoxas e a continuidade do ajuste fiscal.
O programa conduzido pelo ministro é amplo e complexo. Sua aprovação necessita da boa vontade de políticos ávidos por tirar proveito do governo em crise. Meirelles tem colecionado vitórias, mas também revezes. Para ser considerado vencedor, precisará aprovar a reforma da Previdência – e ver concretizada sua previsão de crescimento econômico de 3% para 2018, com queda razoável no desemprego, hoje bastante alto, em 12,6%. Desses resultados – e também de algumas outras variáveis políticas submetidas a um grau de imensa imprevisibilidade – depende a realização de um sonho: ser presidente da República. Sonho publicamente inconfesso, mas já segredado a várias pessoas. E que, apesar de distante, nunca pareceu tão próximo de se materializar como agora, a meses de uma eleição cuja única certeza é a indefinição.
Naquela tarde em Nova York, na entrevista coletiva que dera, o ministro respondera a cinco perguntas sobre uma possível candidatura presidencial, sem confirmá-la nem desmenti-la. Disse apenas que decidiria até o final de março de 2018 – resposta óbvia, uma vez que abril é o fim do prazo para a desincompatibilização de ministros de Estado. Ao assistir à cena, lembrei-me de um artigo do International Herald Tribune que uma vez o definiu como “um homem de muitas palavras, mas poucas respostas”. Notei sua tática e comentei com ele. Ele sorriu. “Uma vez, fiquei impressionado com uma entrevista que vi na tevê, de uma autoridade que estava bastante nervosa com o jornalista. Até comentei com meu assessor de imprensa na época. E ele me disse: ‘O amigo lá não está levando em consideração uma regra básica – o jornalista pergunta o que ele quiser, e o senhor responde o que o senhor quiser.’ É isso.” E emendou um exemplo: “Em outra ocasião, havia uma situação complexa, durante a crise de 2008, e muitos presidentes do BC optaram por não falar nada. Aí me perguntaram: ‘Mas o senhor fala, fala, e não dá problema?’ Eu respondi: ‘É simples. Primeiro, eu só digo a verdade. Segundo, tenho boa memória!’.” As bebidas já estavam servidas quando o garçom avisou que os lugares que Meirelles queria estavam livres. Ele se levantou na hora: Let’s sit there!, e zarpou em direção à mesa. Um pequeno séquito o seguiu.
A expressão “muitas palavras” usada pelo Tribune não é exagero. Só em outubro, segundo informações do próprio Ministério da Fazenda, foram dezesseis entrevistas coletivas e sete exclusivas, incluindo os chamados “quebra-queixos” – as sessões rápidas de perguntas e respostas após palestras ou eventos. Entre maio e agosto, foram 92 eventos, todos seguidos de entrevista. A estratégia lhe garante projeção e a boa vontade dos jornalistas, que prezam sua disponibilidade. O ministro também se comunica diretamente por celular ou WhatsApp com alguns repórteres e colunistas mais próximos. Está ligado no que acontece nos bastidores, mas raramente fornece alguma notícia bombástica.
Casado com a psiquiatra Eva Missine, de 58 anos, a quem conheceu em 2000, nos Estados Unidos, num seminário de psicologia, o ministro não tem filhos. O pai, a mãe e o único irmão já morreram. Tem ainda três tias e mantém contato com vários primos, entre eles o decano do PCdoB Aldo Arantes – os dois conviveram mais de perto na juventude, quando Meirelles cursava a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. De vez em quando encontra os enteados e os netos da mulher, que moram no exterior. Sua companhia mais frequente em Brasília, além da mulher, são cinco cães da raça cavalier king charles spaniel, bastante popular na nobreza inglesa. Seu xodó é a cadela Teresa Cristina, a Trica, que vive com a mãe, Florípedes, e os irmãos Nonô, Mané e Leco. Além da casa em Brasília, o ministro mantém ainda outros três endereços, em Goiânia, São Paulo e Rio de Janeiro, onde é dono de uma cobertura na orla de Ipanema.
Meirelles é um homem rico. Em quase trinta anos no Boston e, mais recentemente, atuando como consultor privado, ele acumulou centenas de milhões de reais, distribuídos em aplicações no Brasil e no exterior. Um desses fundos, exclusivo dele, tem patrimônio de 67,5 milhões de reais e é administrado por uma gestora de recursos do Bradesco. Além dos rendimentos dessas aplicações, ele recebe uma aposentadoria de 750 mil dólares anuais como executivo do mercado financeiro. E, é claro, o salário de ministro da Fazenda, de 30 934 reais por mês.
Nas conversas que tivemos em setembro e outubro, ele falou animadamente sobre seus cachorros e mencionou os livros que estava lendo – sempre vários ao mesmo tempo. Nos últimos dias havia sido capturado por Full Catastrophe Living, ou Vivendo na Catástrofe, cujo subtítulo é Como Usar a Sabedoria do Seu Corpo e de Sua Mente para Enfrentar o Estresse, a Dor e a Doença.
Meirelles costuma dar duas festas por ano: uma de aniversário (ele faz anos em 31 de agosto) e outra de Réveillon, sempre no Rio. A passagem de 2005 para 2006 foi tema de uma coluna assinada por Diogo Mainardi, na Veja. Segundo amigos e assessores, ele ficou bem contrariado com o comentário do articulista: “Henrique Meirelles é meu vizinho. Tem um apartamento no prédio ao lado do meu. Ele deu uma festa no Ano-Novo. Com música dos anos 80. Muita gente reclama dos juros praticados por Meirelles no Banco Central. Eu reclamo apenas porque ele me impediu de dormir na passagem do ano, atormentando-me com o estribilho: It’s raining men. Hallelujah! It’s raining men. Amen!” Em Nova York, perguntei a ele sobre o episódio. Ele riu. “Você sabe que, no ano seguinte, pedi ao diretor da revista que perguntasse ao Diogo se ele me dava autorização para o Réveillon.” E depois, sério, emendou: “Mas o Diogo foi unfair. Porque naquela noite havia diversas festas na praia e nos prédios em volta. Não era só a minha.”
Os aniversários são quase sempre temáticos. Em 1996, no de 51 anos, o mote era Hollywood. Os convidados entravam por um portal pavimentado com teclas de piano semelhantes às que Tom Hanks tocava com os pés numa cena do filme Quero Ser Grande. Meirelles usava smoking, e um clone de Elvis Presley se apresentava na pista de dança. A festa de 2002 – ano em que ele disputou a eleição para deputado federal – emulou um comício: do alto de um palanque cenográfico, Meirelles fez um discurso inflamado. Noutra ocasião, o tema foi “Uma noite na Bahia”. A última grande comemoração, em Brasília, em 2016, não tinha mote específico. Realizada no Clube Naval, contou com a banda Celebrare, um clássico dos bailões do clube, especializada em dance music. No momento alto da festa, o ministro – que por alguns meses tomou aulas de dança de salão numa escola famosa de São Paulo – evoluiu à vista de todos com a mulher ao som de Zeca Pagodinho.
Nenhuma comemoração, porém, foi mais grandiosa do que o aniversário de 70 anos, em 2015, que reuniu 600 pessoas no Jockey Club de São Paulo em uma noite gelada. Um dos páreos foi batizado de HM, iniciais do aniversariante. Artistas circenses em pernas de pau recebiam os convidados. Garçonetes distribuíam taças de espumante, retiradas de uma armação de arame ao redor das saias rodadas. A certa altura, foi exibido um vídeo no estilo Esta É Sua Vida, com depoimentos de amigos sobre Meirelles. Fogos de artifício e uma apresentação de dança com trechos do musical Cats completaram a festa. À saída, os convidados recebiam um pendrive com o vídeo e uma caneca branca aparentemente banal, mas que tinha uma bossa: toda vez que nela se colocava um líquido quente, aos poucos ia surgindo em letras pretas o nome de Henrique Meirelles.
Os frequentadores mais assíduos comentam que é nas festas que Meirelles deixa de lado a sisudez e o autocontrole. Recebe a todos com animação e se esbalda na pista. “Ele procura conversar com todo mundo e circula o tempo todo. Ele gosta de estar ao lado de pessoas felizes”, contou o empresário Marcos Brandão, filho de uma amiga de juventude de Meirelles e próximo do ministro desde pequeno. Agente de artistas como Giovanna Antonelli e Marina Ruy Barbosa, Brandão faz um estilo informal: sempre de jeans e camiseta, é um dos poucos que cumprimentam Meirelles com um abraço, um tapinha nas costas e um forte aperto de mão, por vezes acompanhado de um “Faaala, cara!”. Certa vez o arrastou a uma casa de samba no Centro do Rio, numa noitada que entrou pela madrugada. E é um dos mais entusiasmados eleitores potenciais de Meirelles. “O Henrique é alegre, engraçado, mas como está sempre tomando decisões importantes, num jogo pesado, acaba se fechando, como em um casulo”, comentou, em seu escritório. Segundo o amigo, os dois nunca conversaram sobre uma eventual candidatura à Presidência. “Eu é que uma vez tomei a liberdade de falar, quando ele ainda estava no Banco Central: ‘Cara, se você quer ser candidato, você tem que demonstrar o que você é. Um político pode ser tudo. Ele só não pode ser uma pessoa antipática’”, lembrou. “Ele ficou quieto. Mas, depois disso, eu o senti bem mais leve.”
“Estamos agora nesse projeto de primeiro tirar o Brasil da maior recessão da nossa história”, dizia Meirelles. Sentado diante de uma grande mesa de madeira, olhando fixamente para a câmera instalada sobre um tripé, ele continuou: “Nunca houve uma recessão como esta. Desta vez, no entanto, o Brasil está crescendo e criando empregos, o que é muito importante. Nossa meta é, de fato, fazer com que o país volte a ter emprego para todos.”
A voz anasalada e empostada, de locutor das antigas, a entonação que faz lembrar a de Paulo Francis, demorando-se mais em algumas vogais, e o movimento das mãos em gestos coordenados eram os mesmos de sempre – assim como era o mesmo o terno que vestira o dia todo no ministério. O conteúdo pendia de leve para a campanha política, mas a sala parcamente iluminada por uma lâmpada de abajur sem cúpula, com uma Bíblia aberta sobre uma mesinha de canto, tornava o ambiente soturno. “Eu me sinto muito à vontade para conversar com vocês, porque nós temos os mesmos valores, são os valores da lei de Deus e dos homens visando crescer, visando colaborar com o país. Portanto, preciso da oração de todos.”
Depois da fala de um minuto, o vídeo terminava com imagens de primaveras vermelhas e amarelas sob os dizeres: “Vamos ajudar o Brasil. Outubro, mês de oração pela economia.” Fora gravado depois do expediente de sexta-feira, na casa de Meirelles em Brasília, por sugestão de um amigo presbiteriano, como forma de compensar a ausência a um culto na Assembleia de Deus de Madureira, subúrbio do Rio. Embora tivesse garantido presença, o ministro desistiu de ir na última hora. “Não achei que seria conveniente”, explicaria ele um mês depois, num almoço na sede do ministério, sem explicitar as razões da suposta inconveniência. Enviada ao pessoal da igreja pelo WhatsApp no sábado de manhã, a gravação talvez tenha causado mais frisson do que teria provocado sua presença ao culto, uma reunião fechada entre pastores.
Era mais um gesto da aproximação de Meirelles com os evangélicos, iniciada em junho, dias depois do escândalo da JBS – na mesma época que ele debutou no Twitter, com a frase “Pretendo usar esse espaço para debater os rumos do Brasil”. Desde então, o ministro compareceu à festa de 106 anos da Assembleia de Deus, no Pará, e participou da celebração dos 85 anos do bispo Manoel Ferreira, uma das principais lideranças da igreja. Depois, em julho, esteve numa convenção de mulheres evangélicas, em Brasília. Foi a São Paulo e ao Rio para pregar sobre economia em atos do Ministério de Madureira, como é chamado o maior ramo da Assembleia de Deus no Brasil. No início de agosto, a convite do mesmo grupo religioso, esteve em Juiz de Fora, sempre negando que os encontros tivessem fins eleitorais. “Não posso ficar falando só com banqueiros”, ele rebatia quando lhe perguntavam. “Eles têm valores parecidos com os que defendo – cuidar das finanças, não gastar mais do que se ganha…”
Em julho, os pastores Jorge Leibe e Ivan Bomfim, do Ministério de Madureira, que ciceroneavam o ministro em vários eventos, circulavam esbaforidos pelos salões da Câmara dos Deputados em busca de Sóstenes Cavalcante, deputado federal pelo DEM do Rio de Janeiro. A despeito de estar em seu primeiro mandato, Cavalcante, aos 42 anos, é um dos mais articulados da bancada evangélica. Pastor desde os 22, destacou-se como assessor de Silas Malafaia, líder da igreja Vitória em Cristo, também vinculada à Assembleia de Deus. É um homem alto, agitado e bem-humorado, que passa horas tentando dar conta dos milhares de mensagens de WhatsApp enviados diariamente para os 200 grupos de que participa, quase todos ligados à comunidade evangélica. Sua inserção no meio faz com que seja procurado por todos os políticos que tentam se aproximar desse público – de Lindbergh Farias, a quem ele assessorou na pré-campanha para o governo do Rio, em 2013, aos amigos de Meirelles.
Cavalcante relembrou a abordagem em meados de setembro, na sede da liderança do DEM na Câmara. “Eles me pararam no corredor e perguntaram se seria possível agendar uma conversa do ministro com o bispo Malafaia no início de agosto. Queriam falar de política. Estranhei. Afinal, se o Meirelles quisesse, poderia telefonar diretamente para o pastor. Mas acabamos não marcando nada. Malafaia está fechado com o João Doria.” Perguntei se o deputado considerava as idas de Meirelles aos eventos religiosos uma boa estratégia, do ponto de vista político. “Para mim, qualquer pessoa que queira uma aliança tem que falar com as lideranças evangélicas do Congresso. E ele até agora não fez isso. Pelo contrário. Quando vem aqui, gosta de ser o último a chegar e a sentar à mesa. Mal cumprimenta.”
O deputado não era, àquela altura, o único incomodado com a movimentação de Meirelles. O sinal de alerta soou também entre os principais assessores de Michel Temer, aos quais parecia evidente que o ministro tinha ambições para além da solução do problema fiscal do governo. Que, aliás, se aprofundou mais ainda no segundo semestre, quando foi necessário comunicar ao Congresso que o já abissal rombo de 140 bilhões de reais previsto para 2017 se agravaria e chegaria a 159 bilhões em 2017 e 2018. Irritados com a repercussão da má notícia num momento de fragilidade política, os auxiliares mais próximos ao presidente iniciaram a fritura do ministro – o que, na dinâmica da corte, consiste em soprar aos jornalistas que o político está fraco, que não tem habilidade ou que só pensa em seus interesses. Meirelles foi alvo das três maledicências. Dias depois, os mesmos jornais que noticiaram a fritura passaram a dizer que Temer advogara por encerrá-la, preocupado com as oscilações que o enfraquecimento do titular da Fazenda poderia provocar no mercado financeiro. Aparentemente, foi obedecido.
Em setembro, dois auxiliares do presidente me disseram que, àquela altura, uma eventual candidatura de Meirelles poderia ser até bem-vista pelo Planalto. “Dos candidatos da centro-direita, Alckmin já se bandeou para a oposição e Doria quer distância de nós. Ele, pelo menos, defenderia o legado do governo Temer”, resumiu um deles.
“Golpista, fala, golpista, Meirelles ladrão!” Os gritos de meia dúzia de manifestantes à saída das autoridades brasileiras do hotel The Pierre, na Quinta Avenida, em Nova York, foram ficando mais próximos. Naquela manhã de setembro, o local havia sediado um seminário do jornal Financial Times sobre as perspectivas da economia brasileira, de que participaram o presidente da República, quatro ministros e os presidentes do Banco Central, do BNDES, da Petrobras e da Apex, a agência de promoção de exportações. O evento terminara um pouco antes, e Temer embarcara no carro oficial sob protestos do grupinho que empunhava cartazes de “Xô Ladrão!”, “Vampirão” e “Golpista”. Meirelles saía pela porta giratória do hotel, acompanhado por quatro assessores, além de mim. Decidira ir a pé até o próximo compromisso, no hotel The Plaza, a três quadras dali, por um trajeto que margeava o Central Park. Assim que os carros com a comitiva de Temer sumiram no trânsito de Nova York, o grupo se voltou para o ministro e começou a persegui-lo. “Você tira o dinheiro do povo! Ladrão!! Tirando dinheiro do povo pra dar pros banqueiros!! Sem-vergonha! Golpista! Tá vendendo o Brasil!”
Meirelles tentou ignorar as ofensas, mas os manifestantes começaram a filmá-lo com o celular, e ele ficou aflito. “Cadê o carro? O carro estava bem aqui”, disse, ao chegar à primeira esquina. “Ladrão do povo brasileiro! Tira do povo e dá pros ricos!! O Brasil não está à venda!! Seu canalha, traidor!! A pobreza do povo brasileiro é culpa sua!” Os assessores também estavam assustados. Em segundos, um deles, Diogo Coelho, acenou para o primeiro táxi que passava, abriu a porta e nos enfiou dentro. Assim que nos sentamos, olhei para o ministro, tentando captar uma reação. Ele procurou manter a fleuma. “Eles não conseguiram pegar o Temer, aí resolveram aproveitar!” Perguntei se ele já havia passado por isso. “Já, sim. Várias vezes. No governo Lula era assim também, tudo igual. De um lado ou de outro. Teve um dia que um partido de extrema esquerda fez um abraço ao Banco Central, supostamente para abaixar o juro. Cada época tem uma briga diferente.”
Em menos de dois minutos chegamos ao centenário The Plaza, que recebia o Global Business Forum, evento promovido pela Bloomberg, de que participavam chefes de Estado, empresários e autoridades de vários países. Meirelles e sua comitiva se apresentaram numa porta lateral, foram devidamente identificados e sumiram pelos corredores. Fiquei do lado de fora. Não tinha autorização para entrar.
O empresário Joesley Batista havia ingressado clandestinamente no Palácio do Jaburu e já gravara doze minutos de conversa com Michel Temer quando lançou a pergunta: “E o Henrique? Como é que cê tá com o Henrique?” “Tá tudo muito bem”, respondeu o presidente. E mais à frente: “Mas o Henrique vai muito bem comigo. Eu chamo ele todo dia para trabalhar.” Joesley, para quem Meirelles trabalhou na holding J&F, falou então de patrão para patrão: “Ele gosta de trabalhar. Só não chama ele para ir à praia. Se você for pra praia e chamar ele, iiih.” Temer riu, e Joesley explicou o que pretendia. “Um dia eu falei assim, ‘Henrique, precisa mexer na Receita Federal, porra. Esse Rachid [Jorge Rachid, secretário da Receita] aí, tá tanto tempo aí. Bota um outro cara aí, mais dinâmico, pá. Um monte de coisa pra fazer.’ [E Meirelles:] ‘Ih, não, não posso mexer.’” Joesley, então, pediu a Temer: “Queria ter alguma sintonia contigo para, quando eu falar com ele, ele não jogar: ‘Ah, não, o presidente não…’” Seguiram-se alguns minutos de conversa, em que o empresário reclamou que o ministro sempre dizia que não mandava nem no Cade, o órgão de defesa da concorrência, nem na CVM, que regula o mercado de capitais, nem no Banco Central – todos autarquias ligadas à Fazenda, onde Joesley dizia ter questões pendentes. E sugeriu que, se Temer autorizasse seus pedidos, Meirelles faria o que ele queria. “Eu trabalhei com ele quatro anos, se eu for mais firme nele, ‘Pô Henrique’… Eu acho que ele corresponde.” Temer chegou a especular por que o ministro resistiria (“Eu acho que ele tem ambições maiores”). E, mais de uma vez, autorizou Joesley a usar seu nome em conversas com Meirelles: “Pode fazer.”
Em meio a tantas revelações contidas naquela conversa, pouco repercutiu que o presidente da República autorizasse um empresário a pressionar o ministro da Fazenda para resolver seus problemas no governo. Talvez pelo fato de Joesley ter afirmado nas gravações – de forma até insistente demais – que não conseguiu nada com Meirelles. Ainda assim, é visível o desconforto do ministro quando se toca no assunto.
Na primeira vez que perguntei sobre Joesley, no bar do hotel The Plaza, em Nova York, Meirelles pediu um tempo para terminar a sopa de cebola. Terminado o prato, ele respondeu às mensagens de celular, ouviu em silêncio algumas conversas triviais, e só depois de catorze minutos voltou ao assunto: “Quando saí do BC, cumpri mais de um ano de quarentena, e assinei três contratos de prestação de serviços. Com a [instituição financeira] Lazard, que funciona ali na Quinta Avenida, instituição prestigiada. Passei também a prestar serviço para o KKR [fundo de investimentos] e para a J&F. O trabalho era a montagem de um banco digital, uma ideia antiga minha”, ele respondeu, referindo-se ao Banco Original, que pertence ao grupo de Joesley. Entre pausas para conferir o WhatsApp (recurso que, percebi com o tempo, ele usava sempre que se via diante de perguntas mais delicadas), disse não ter ingerência nos assuntos da holding. Afirmou que o banco – “um projeto imenso que me tomava o tempo todo” – era seu único foco. Acrescentou que nem via Joesley quando estava nos domínios dos Batista. E reforçou: “Eu sou uma pessoa de reputação boa. Não adianta falar nada errado comigo. Nunca recebi proposta de fazer coisa errada na minha vida profissional inteira.”
Perguntei-lhe sobre as solicitações do dono da JBS, e Meirelles admitiu que Joesley lhe perguntara sobre Cade, CVM e BC, mas isso quando ele estava saindo da holding para o governo. Ele me assegurou que, desde que entrara para o governo, os dois nunca mais haviam se falado.
A contratação do ex-presidente do Banco Central como conselheiro da J&F, em fevereiro de 2012, foi um acontecimento para os Batista. O grupo começou nos anos 50, a partir de um açougue que o patriarca José Batista Sobrinho mantinha em Anápolis – cidade natal de Meirelles, da qual seu avô foi prefeito em três ocasiões. E agora o conglomerado era um colosso com faturamento de 63 bilhões de dólares, mais de 100 mil funcionários e interesses que iam bem além da proteína animal: produtos de beleza e de limpeza, laticínios, energia, celulose. Mas o grupo já começava a enfrentar os primeiros problemas. Os empréstimos de 8 bilhões concedidos pelo BNDES à JBS, principal empresa da holding, eram alvo constante de críticas, e um inquérito havia sido aberto pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro para apurar se houvera favorecimento do banco numa operação de emissão de títulos (meses depois, a investigação foi arquivada). Considerada pouco transparente com as finanças e com uma dívida de 22 bilhões de reais, montante nem tão grande para o tamanho da empresa, a JBS era menos valorizada na Bolsa do que seus donos achavam que ela deveria ser. Eles esperavam que o novo conselheiro desse um jeito nisso.
“O Meirelles não vai ser apenas um consultor. Vai cobrar resultados dos executivos e traçar estratégias para a expansão do negócio. Agora é com ele”, declarou Joesley Batista à Exame, numa reportagem de três páginas que trazia uma foto sua conversando com o ex-presidente do BC. Segundo a revista, só o anúncio da contratação de Meirelles valorizara em 4,4% as ações da JBS, numa única semana – maior alta desde 2007, quando a empresa entrou na Bolsa.
A recompensa dos Batista foi régia. Um levantamento recente do site BuzzFeed Brasil mostrou que os contratos feitos por Meirelles ao retornar ao setor privado renderam 217 milhões de reais em dividendos para sua empresa de consultoria entre 2012 e 2016, quando ele decidiu atender ao convite de Temer. Junto a executivos de bancos brasileiros, colhi uma estimativa de remuneração de 1,5 milhão de dólares anuais para cargos como os que ele ocupou na Lazard e no KKR. Segundo esse cálculo, Meirelles teria recebido em torno de 37 milhões de reais dessas outras empresas. Dessa forma, os 180 milhões que sobram só podem ter vindo da J&F. Quando expus minhas conjecturas, o ministro comentou: “É um valor, eu diria, muito pequeno, considerando ser uma plataforma digital – que vale uma fortuna, e que será paga em dez, vinte anos. Isso é um investimento. Foi o primeiro banco totalmente digital do mundo… Isso aí é um breaktrough (avanço)!” Além dos contratos de consultoria, Meirelles também era conselheiro da Rolls-Royce e do Banco Lloyd’s, em Londres, e da Azul, de aviação, que lhe rendiam uma remuneração mensal mais modesta.
Antes de fechar com essas seis companhias, Meirelles contou à Exame ter recebido doze propostas de trabalho. Nos últimos meses, ouvi alguns dos executivos e banqueiros que tentaram contratá-lo naquele período. Apesar de terem objetivos diferentes, seus relatos convergiam num ponto – nas negociações, o ex-presidente do Banco Central comentava ter ficado descapitalizado ao longo dos oito anos do governo Lula, e pretendia recuperar as perdas. “Ele estava muito preocupado com a remuneração, ficava sempre perguntando se não podia ser mais”, me disse um empresário que por pouco não o contratou.
A proposta da J&F, hoje está claro, era bem maior do que todas as outras – só de luvas, Meirelles recebeu 32,8 milhões de reais em março de 2012, de acordo com um relatório de inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, sobre os pagamentos da holding dos Batista. O advogado que negociou os contratos para Meirelles, Leandro Chiarottino, diz que, além do dinheiro mais gordo, a missão também era mais apetitosa. “Joesley encontrou uma coisa que o dr. Henrique ainda não tinha feito, que era criar um banco do zero”, afirmou, durante um almoço em Brasília. A proposta, contudo, não tinha só vantagens. Dois amigos de Meirelles a quem ouvi o aconselharam a não aceitar o cargo, alertando-o para o perigo de manchar a reputação colando sua imagem à de Joesley. Ele decidiu aceitar e tranquilizou os amigos dizendo que o contrato de trabalho o blindaria de riscos.
Em nosso encontro, o advogado Chiarottino me explicou em que consistia a blindagem de Meirelles. “O dr. Henrique é sempre muito cuidadoso e preocupado com riscos de todo o tipo. Por isso, o escopo do contrato era limitadíssimo”, disse. Segundo ele, o acordo era para prestar serviços de consultoria, embora previsse a participação em conselhos. E também afirmava que Meirelles se concentraria no Banco Original e não teria acesso a informações que não dissessem respeito ao trabalho dele. E que precisava atingir algumas metas, sem ter de se submeter às ordens dos Batista. “Se eles estivessem insatisfeitos, poderiam mandá-lo embora, mas não podiam dizer o que ele tinha que fazer”, disse o advogado, que não me mostrou o documento.
De início, o ministro integrou um conselho consultivo da J&F criado especialmente para ele. A partir de 2014, porém, ele passou a presidente do conselho de administração da holding, cargo que ocupou até entrar no governo Temer. De acordo com o estatuto, o conselho teria reuniões bimestrais e a seus conselheiros caberia orientar os negócios do grupo, eleger e destituir diretores, fiscalizar as finanças das empresas e decidir sobre a compra e a venda de ativos, entre outras atribuições. Mas, em meados de outubro, quando perguntei a Meirelles o que fazia como presidente do conselho, ele me respondeu: “Nada. O conselho nunca se reuniu.” Segundo ele, a estruturação do conselho da J&F tinha a ver com um plano de abrir o capital da holding, oferecendo ações na Bolsa ou atraindo um sócio – no caso, o fundo soberano de Abu Dhabi, com o qual Joesley e Wesley chegaram a se reunir. Nas duas situações, a empresa precisaria seguir algumas regras de governança, como ter um conselho profissional. O plano acabou não vingando. Mas o conselho continuou existindo, e, entre 2014 e 2016, registrou cinco atas assinadas por Meirelles na Junta Comercial de São Paulo, todas referentes à aprovação de contas, eleição e renúncia de conselheiros.
O advogado que formulou os contratos de Meirelles com a J&F diz que não há possibilidade de o ministro vir a ser responsabilizado por desvios praticados pela holding, já que seu contrato é só de consultoria. A questão, porém, não é pacífica. Para Luiz Marcatti, consultor especializado em governança corporativa, a quem expus a situação em tese, sem dar o nome do personagem em questão, o presidente do conselho de administração de uma empresa não pode ter papel apenas consultivo. “Um executivo pode até ser consultor de um conselho de administração. Mas, se for presidente do conselho, adquire deveres e responsabilidades. Ser consultor e presidente ao mesmo tempo não dá”, afirmou Marcatti, para quem é “no mínimo estranho” alguém assinar atas de reuniões das quais não participou.
Apesar do esforço do ministro para se desvincular de Joesley Batista, não se pode dizer que a relação dos dois fosse formal e distante. Executivos que trabalharam na JBS dizem que eles se reuniam com frequência e, até o início de 2015, trabalhavam no mesmo prédio. Em 2012, Meirelles viajou ao Japão, Cingapura e Hong Kong para sondar investidores interessados na holding. Também se envolveu nas discussões sobre a tentativa de comprar a Construtora Delta, de Fernando Cavendish. Acusada de manter um esquema clandestino de informações sobre licitações públicas, e de lavar dinheiro por meio das empresas de jogos de azar de Carlinhos Cachoeira, a Delta estava no centro de uma cpi no Congresso quando a venda foi selada, em maio de 2012. Discutia-se, inclusive, a possibilidade de ela ser declarada inidônea para fechar contratos com a administração pública. Na ocasião, Meirelles divulgou uma nota defendendo o negócio. Depois, segundo executivos da J&F e segundo ele mesmo, achou melhor desfazê-lo quando o BNDES e a Controladoria-Geral da União se declararam contrários à transação, reclamando que o governo não havia sido consultado. “Eu disse que tinha dois tipos de problemas. Primeiro, a reputação duvidosa e, segundo, o risco jurídico de perder a fé pública”, contou o ministro numa conversa em setembro.
Para agravar o quiproquó, o irmão mais velho de Joesley e Wesley, conhecido como Junior Friboi, deu uma entrevista rebatendo o BNDES e a CGU. Disse que jamais Meirelles faria algo que contrariasse o governo: “Imagina que o dr. Henrique Meirelles vai fazer um negócio que o governo não quer! Noventa e nove por cento da carteira da Delta é com o governo federal, estadual, municipal. Como vai fazer um negócio desses?”, ele afirmou, sem dizer a quem do governo a JBS tinha pedido aprovação. O mistério foi esclarecido dias depois, quando o jornal Valor Econômico publicou que o aval ao negócio havia sido dado pelo ex-presidente Lula. Executivos que acompanharam as negociações na época me confirmaram a informação de que Joesley e Meirelles tiveram uma reunião com o ex-presidente sobre a compra da Delta. O ministro, porém, nega. “Nunca conversei com o Lula junto com o Joesley. Ele deve ter conversado com o Lula e pode até ter falado de mim. Mas essa reunião não aconteceu”, afirmou, na última vez que nos encontramos, no dia 20 de outubro.
Em setembro, em Nova York, Meirelles também havia me dito que não se encontrara mais com Joesley Batista desde que deixara o grupo. Um mês depois, em Brasília, citei a gravação de uma conversa entre Joesley e Rodrigo Rocha Loures – assessor especial de Temer filmado pela Polícia Federal com uma mala com 500 mil reais recebidos da J&F –, que consta do inquérito da JBS. Joesley queria, entre outras coisas, que Rocha Loures assumisse o papel antes desempenhado pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima. “Mas com o Henrique o que eu preciso é essa ponte. É eu falar uma coisa com ele, que é o que acontecia com o Geddel. Eu falava com ele, o Geddel ia nele e dizia, ó, o governo quer, viu? E ele, ah, então tá bom.”
Ao longo do diálogo, ocorrido em março, Joesley descreve algumas conversas com Meirelles, numa das quais menciona ter pedido uma extensão dos benefícios do Refis, o programa de refinanciamento de dívidas com a Receita Federal, para permitir que empresas com créditos tributários pudessem usá-los para fazer pagamentos à Fazenda Nacional. “Isso eu dei um papel pro Henrique. Falei, Henrique, toma esse papel aqui, tem que resolver esse troço.”
Na nossa última conversa, Meirelles admitiu ter conversado com o ex-patrão depois que assumiu o ministério. “Aqui ele não veio. Nós nos encontramos em eventos, em lugares, em almoços, esse tipo de coisa. Ele pode ter me dado um papel. Mas agora você vai me perguntar: ‘Você leu o papel?’ Tanto não li que ele depois reclamou que não fiz o que ele queria.”
“Henrique, você está pensando mesmo em se candidatar à Presidência da República?” Corria o ano de 1998 quando Meirelles ouviu a pergunta de um vice-presidente da operação brasileira do BankBoston. Os dois estavam sentados no balcão de um bar no Centro de Boston, nos arredores da sede mundial da instituição, onde vez por outra se encontravam para tomar um drinque depois das reuniões. O papo fluía, o uísque era bom, o frio não animava ninguém a sair.
Meirelles tinha 53 anos e se tornara presidente mundial do Boston dois anos antes. Vivia o ápice da carreira. Começara no banco do zero, duas décadas antes, e se tornara o primeiro brasileiro a presidir um banco internacional, que então administrava 400 bilhões de dólares em ativos distribuídos por quinze países. Fora alçado ao posto depois de ter apresentado no Brasil os melhores resultados do banco no mundo. Solteirão convicto, vivia entre Boston e Nova York. E integrava alguns dos mais exclusivos círculos da elite americana. Era o único brasileiro aceito no tradicional Country Club de Boston – que ele pronuncia “Bostán”, como os locais. Também integrava conselhos consultivos variados, como o da escola de negócios do prestigiado MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o da escola de administração pública de Harvard, o do conservatório da Nova Inglaterra e o do Instituto de Artes Contemporâneas de Boston. Estava no topo do mundo, mas começava a pensar no retorno.
Nos corredores do banco em São Paulo e em notas de jornais circulava o rumor de que o chefe voltaria para se candidatar à Presidência da República. Naquela noite, no balcão de um bar em Boston, a conversa enveredou pela política. Meirelles deu corda até que o interlocutor se sentiu à vontade para lançar a pergunta. Meirelles não titubeou. “Eu gostaria, sim, de ser candidato. Mas antes preciso saber que caminho devo percorrer.” A conversa, então, passou a versar sobre estratégias políticas e de marketing. Depois de algumas doses, concluíram que Meirelles deveria moldar a imagem não só de vencedor, como de um eminente liberal – ou, nas palavras empregadas na ocasião, “uma espécie de Roberto Campos de Goiás”. Já conhecido no mercado financeiro internacional e frequentemente procurado por jornalistas interessados em saber o que os investidores estrangeiros pensavam do Brasil, ele agora precisava disseminar entre seus próprios conterrâneos a ideia de que era um patrimônio do estado, antes de declarar suas intenções políticas. Do contrário, poderia ser visto como aproveitador ou oportunista.
A volta ao Brasil não aconteceu de imediato. Meirelles estava envolvido na fusão do Boston com o Fleet Financial, um banco bem maior, e teria de permanecer por mais um tempo nos Estados Unidos. Para fazer a transição, mudou-se para Nova York, cidade que adora, e que até hoje só chama de “New York”. Morava na Quinta Avenida, de frente para o Central Park; frequentava uma academia a duas quadras dali e era assíduo na plateia dos concertos. Enquanto não voltava, desfrutava a vida como um “autêntico New Yorker”, como ele mesmo definiu – e trabalhou com dedicação no projeto de se tornar o “Roberto Campos de Goiás”.
Naquele período, Meirelles dividia o tempo de trabalho com entrevistas para rádio, tevê, jornais e revistas brasileiras. Aparecia dando conselhos sobre como alcançar o sucesso, em matérias intituladas “Fabricante de bilhões” (Época, 2000), “A rota do sucesso” (Veja, 2001) ou “Trajetória de um vencedor” (IstoÉ, 2002). Nas entrevistas, sempre com um discurso milimetricamente ensaiado, dizia ser de uma família de políticos – o pai foi secretário de estado, o avô, prefeito de Anápolis, o tio, governador – e rememorava o que aprendera nos tempos do movimento estudantil secundarista em Goiás; também contava como havia derrotado outros três candidatos à presidência mundial do banco alguns anos antes; ministrava lições de liderança e sugeria como o Brasil poderia atrair mais investimentos estrangeiros.
Exigente e detalhista, Meirelles se contrariava quando alguma declaração saía de um jeito que ele não gostava ou quando considerava que havia erros ou imprecisões no conteúdo da notícia – hábito que mantém até hoje. Naquela época, a responsável por fazer o meio de campo com os jornalistas era Sarah Coelho, diretora-adjunta de imprensa de comunicação do BankBoston no Brasil (Meirelles tinha outras assessoras nos Estados Unidos, mas nenhuma delas se dedicava à mídia brasileira como ele queria. Coelho, então, assumiu a missão). “Ele é megapreocupado com a imagem. Acordava cedo e lia todos os jornais. E, se saía alguma coisa que ele achava que o jornalista havia entendido errado, pedia para eu conversar com o repórter. Só que às oito da manhã o jornalista está dormindo, e eu tinha que acalmá-lo e convencê-lo a esperar”, lembrou ela, quando nos encontramos num restaurante de São Paulo.
Em novembro de 2001, Meirelles convidou dois jornalistas do maior jornal de Goiás para conhecer a operação do banco na sede, em Boston. “O objetivo ali nem era tanto a campanha política, mas sim mostrar para eles que havia algo além do oceano Atlântico, porque eram pessoas que nunca haviam saído do Brasil”, explicou Coelho, uma sul-mato-grossense despachada que até hoje é amiga do ministro (ela o chama de Henrique, ele a chama de Sarica). “E eles perceberam o tamanho do banco lá fora e do Henrique lá fora. Pô, se o Henrique era grandão lá fora, por que não poderia ser grande também aqui no Brasil?”, disse Coelho, que depois se tornou chefe de comunicação da campanha a deputado federal, em Goiás.
Ao voltar, porém, Meirelles mergulhou na política brasileira como ela é. Flertou com o PMDB – que chegou a lhe propor a candidatura à Presidência que ele tanto queria –, mas desistiu. “Não tinha viabilidade nenhuma naquela época”, explicou. Também quase se filiou ao PFL – Ronaldo Caiado lhe garantiu que ele sairia candidato ao Senado. Mas, a certa altura, recebeu uma ligação do então presidente Fernando Henrique Cardoso convidando-o para concorrer pelo PSDB. Aceitou e foi comunicar sua decisão a Caiado: “Não posso recusar um pedido do presidente da República.” Ouviu de volta: “Tudo bem, mas essa vaga do Senado não será sua. Já está prometida para a Lúcia Vania [então deputada federal].” Meirelles subestimou o alerta e aceitou o convite dos tucanos. Quando chegou a Goiás, soube que teria de brigar pela vaga na próxima convenção do partido. Viajou pelo estado, conversou com os delegados e chegou às vésperas da convenção certo de que teria os votos necessários. Na última hora recuou. “O clima estava muito pesado e, se ele vencesse, o partido sairia conflagrado e ele correria o risco de não ganhar a eleição. De nada adiantava ganhar para perder ali adiante”, conta um dos correligionários que participou da decisão.
Sem alternativa, Meirelles partiu para a candidatura a deputado federal por Goiás. “Ele não brigou contra a realidade”, disse Paulo de Tarso Santos, seu marqueteiro na ocasião e conhecido por ter criado o slogan Lula Lá. “Ele assimilou rápido o fato de que não poderia desembarcar de Boston dando as cartas na política. E pôs na cabeça que ia responder com resultado. E resultado, nesse caso, era ser o mais votado.” Meirelles chamou uma dezena de pessoas de São Paulo que haviam trabalhado com ele no banco, contratou os melhores assessores disponíveis e fez uma campanha de profissionalismo e custos considerados fora da curva para os padrões da época. Segundo a prestação de contas entregue ao tse, para se eleger ele gastou 887 mil reais do próprio bolso (além de receber duas doações, de 15 mil reais cada uma). Foi a campanha de deputado mais cara daquele pleito.
O marqueteiro criou vídeos e materiais reforçando a imagem do goiano de sucesso que voltava para ajudar o estado – em contraposição à ideia, disseminada pelos adversários, de que Meirelles era apenas um oportunista sem relação com a terra natal. “Tínhamos que fazer o discurso muito bem, porque sabíamos que os adversários certamente partiriam para a difamação”, contou Santos, numa conversa em seu escritório em São Paulo.
De fato, ao longo da campanha os boatos proliferaram. Os detratores só chamavam Meirelles de Henrico, e espalharam que ele limpava a mão com álcool gel toda vez que cumprimentava um pobre. “E diziam isso apenas porque eu tinha o hábito de sempre lavar a mão. Naquele tempo, em Goiás, não havia esse hábito”, disse o ministro. Comentava-se também que ele andava escoltado por oito seguranças (segundo ele, eram três) e oferecia dinheiro vivo aos cabos eleitorais. Meirelles combatia os ataques visitando pessoalmente os 246 municípios do estado, falando com todo mundo e distribuindo santinhos e panfletos com cópias das matérias elogiosas publicadas quando ele ainda estava em “New York”.
Aficionado por pesquisas, encomendava uma por semana, mensurando sua aceitação em todas as regiões do estado. Se percebia que seu nome não crescia em determinado local, chamava o candidato a deputado estadual com quem fazia dobradinha naquela região e passava um corretivo. Se a intenção de voto não aumentasse, ele reduzia a ajuda que daria para a campanha do sujeito. Aos poucos, a imagem do “Roberto Campos de Goiás” se impôs, e Meirelles foi o deputado federal mais votado do estado, com 183 046 votos. Não ocupou o cargo nem ficou no PSDB. Dois meses depois da eleição, em dezembro de 2002, o novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o convidou para comandar o Banco Central. Ele aceitou. Renunciou ao mandato e saiu do partido.
Meirelles foi a quinta opção de Lula. O novo presidente buscava alguém alinhado ao ideário ortodoxo – perfil necessário para convencer o mercado de que o partido prezava o compromisso assumido na campanha, com a Carta ao Povo Brasileiro. A escolha foi bem recebida entre empresários e banqueiros, mas desde o início combatida por setores do petismo. A então senadora Heloísa Helena chegou a chorar no dia da sabatina de Meirelles, e preferiu ausentar-se da votação para não ter de obedecer à ordem do PT e votar a favor de um banqueiro internacional. O novo presidente do BC encontrou um cenário de taxas de juros de 25% ao ano e inflação a 12,5%. Nos primeiros meses, o BC aumentou ainda mais os juros, até chegar a 26,5% – despertando insatisfação até mesmo no núcleo duro do governo Lula. Aos poucos, porém, o arrocho foi diminuindo. E então Meirelles enfrentou o primeiro escândalo de sua vida.
Em abril de 2004, a revista IstoÉ acusou o presidente do BC de ter declarado domicílio nos Estados Unidos quando já vivia no Brasil, para supostamente sonegar a Receita. Em julho, Veja revelou que um primo e procurador de Meirelles, Marco Túlio Campos, fora detido no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com 32 mil reais em dinheiro vivo. Pensando em se livrar da situação com uma carteirada, o rapaz contou que era primo do presidente do BC e que o dinheiro se destinava a pagar por um imóvel que Meirelles estava comprando em Goiás. Campos apresentou os documentos da compra, Meirelles sustentou que o negócio estava totalmente regular. Mas a imagem do presidente do BC ficou arranhada na época.
Desgostoso, Meirelles afirmava ser vítima de uma conspiração. “A quem interessa tudo isso, no momento em que a economia começa a decolar?”, declarou. Nos bastidores, ele ia mais longe: acusava José Dirceu de ser o artífice dos ataques. Naquela ocasião, disse aos mais chegados que o então ministro da Casa Civil não o perdoava pelo fato de o BC não ter aceitado suspender a falência do Banco Mercantil de Pernambuco, para que seus ativos pudessem ser assumidos por outra instituição – negócio em que Dirceu, segundo Meirelles, tinha interesse direto. Lula, porém, estava satisfeito com seu desempenho e ficou temeroso de que o escândalo pudesse evoluir para uma investigação e até uma ação penal. Para proteger Meirelles, em agosto o governo aprovou no Congresso uma lei que deu status de ministério à presidência do BC – e, portanto, foro privilegiado a seus ocupantes.
José Dirceu seria exonerado em 2005, com o escândalo do mensalão. Mas a oposição ao presidente do BC dentro do governo continuou – agora encabeçada mais claramente pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, que não perdia oportunidade de fustigar Meirelles. Em 2008, no auge da crise dos títulos nos Estados Unidos, Mantega quase o derrubou, substituindo-o pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que se filia à escola desenvolvimentista da Universidade Estadual de Campinas. O presidente chamou Belluzzo e sondou sua disposição para substituir Meirelles. Belluzzo disse que topava. O presidente do BC ficou sabendo da conversa e colocou o cargo à disposição. Lula recuou, Meirelles firmou-se como homem forte e ficou no governo até o último dia.
Em 2009, enquanto Dilma Rousseff se consolidava como candidata à sucessão de Lula, o presidente e o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci aventaram que Meirelles poderia ser o vice na chapa pelo PMDB, partido ao qual ele acabara de se filiar. Lula chegara a articular sua indicação com o grupo de Renan Calheiros, que travava uma disputa com Michel Temer pelo controle do partido. Lula achava que, com o apoio de Calheiros, Meirelles teria chances. O presidente do BC já estava sondando seus interlocutores no mercado financeiro sobre uma possível candidatura quando emissários de Temer o avisaram que, no PMDB, respeitava-se a fila – e o então presidente da Câmara dos Deputados estava bem à frente. Na convenção de junho de 2010, com o apoio de Dilma, que nutria ferrenha antipatia por Meirelles, Temer foi escolhido o candidato a vice-presidente pelo PMDB na coalizão com o PT. Quando comentamos o episódio, Meirelles me disse que não recebeu aviso nenhum. “Eu é que não quis disputar. Achava que Temer era o candidato natural.”
Em 2011, ao sair do governo, Meirelles trocou o PMDB pelo recém-criado PSD, do então prefeito de São Paulo Gilberto Kassab – hoje ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações de Temer. Lula e Palocci ainda tentaram emplacar Meirelles em algum cargo no governo Dilma, mas a presidente foi inflexível. Primeiro inventaram uma supersecretaria para concessões e privatizações, nos moldes da que hoje ocupa o ministro Moreira Franco. Palocci combinou uma conversa entre Meirelles e a presidente. Levou o ex-chefe do BC até o Planalto na hora combinada. Dilma apenas cumprimentou Meirelles, disse algumas amabilidades e foi embora, deixando o candidato a ministro no vácuo. Meirelles ainda chegou a ser lembrado para a presidência da Autoridade Pública Olímpica, a APO, mas teve o nome vetado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e pelo governador Sérgio Cabral, que não queriam disputar os holofotes da Olimpíada com ninguém. Meirelles acabou ficando apenas no Conselho Público Olímpico, órgão de assessoramento da APO que, na prática, não apitava nada. Mais tarde, diria a interlocutores que, de novo, fora ele quem não quisera o cargo. Então, em 2012, o ex-presidente do BC decidiu voltar ao setor privado e distanciou-se do governo.
Até retomar a ribalta, com Temer, Meirelles ainda bateria na trave algumas vezes. Em 2014, uma articulação entre caciques tucanos e o PSD tentou fazer dele candidato a vice de Aécio Neves. Se tivesse vingado, o acordo entre PSD e PSDB resultaria não só na dobradinha Aécio-Meirelles, mas numa chapa com Kassab vice de Geraldo Alckmin na disputa pelo governo de São Paulo. A iniciativa fracassou – segundo três de quatro participantes das negociações com quem conversei, sobretudo devido à má vontade de Alckmin, que não tolera Kassab. O preferido do governador para ser seu vice era o deputado federal Márcio França, do PSB. Ao final, Alckmin ficou com França, Aécio com Aloysio Nunes, e Kassab se voltou para o PT – em uma negociação que, hoje se sabe, incluiu não só participação na gestão Dilma como também dinheiro da Odebrecht para os candidatos do partido.
No final de 2015, com o governo Dilma em crise, Lula mais de uma vez tentou levar Meirelles para o Ministério da Fazenda no lugar de Joaquim Levy, que vivia sob constante fritura. Os jornais chegaram até publicar que Meirelles seria nomeado em breve, mas nunca aconteceu. Dilma não só discordava de suas ideias, como fazia questão de lembrar que, quando a descoberta de um câncer obnubilou sua candidatura, Meirelles rapidamente se ofereceu a Lula para substituí-la. Por isso, toda vez que se falava em Meirelles no ministério, ela reagia com um “sob hipótese alguma!” Em outubro, quando perguntei a Meirelles sobre o episódio, ele negou que tivesse tentado ocupar o lugar de Dilma. E afirmou que recusou o convite para ser ministro em 2015.
Os aparelhos de ar-condicionado estavam ligados na potência máxima em todo o quinto andar do edifício-sede do Ministério da Fazenda, na primeira vez em que encontrei Meirelles, em setembro. Os únicos ambientes preservados da refrigeração eram o gabinete e a sala de reuniões ocupados pelo ministro – que tem ojeriza a ar-condicionado. De terno, suspensório sobre a camisa social e camiseta por baixo, Meirelles parecia sentir calor. Ligava o aparelho um pouco, mas logo desligava, para em seguida repetir o liga-desliga. Em certo momento, começou a suar nas têmporas, mas não manifestou incômodo. Tanto em situações prosaicas como nas mais críticas, ele parece treinado para persistir até conseguir o que quer, e não só não reclama dos revezes como também dificilmente os admite. Um economista que trabalhou com ele no Banco Central me disse que o via como um Joe Frazier, numa referência ao grande rival de Muhammad Ali. “Ele apanha, apanha, e continua de pé”, comentou o ex-subordinado.
Com a missão de negociar com o Congresso uma agenda de reformas e corte de gastos, Meirelles não raro apanha (em público e nos bastidores) de deputados que não tiveram seus pleitos atendidos. Ao apurar os dados para esta reportagem, não foram poucas as vezes que ouvi de deputados que o ministro é frio, arrogante e às vezes submete os parlamentares a chás de cadeira homéricos.
Em maio, por exemplo, ele mandou um assessor receber o vice-presidente da Câmara, Fábio Ramalho (PMDB-MG), que fora conversar sobre a privatização da Cemig, a estatal de energia de Minas Gerais. Ao se dar conta de que não encontraria o ministro, mas o assessor, o deputado se abespinhou: “Fala para o ministro que ele não marcou audiência com qualquer um, não! Quem está aqui é o representante da bancada de Minas, e eu estou indo embora agora!” Meirelles se materializou em cinco minutos. Meses depois, já com a Cemig privatizada, Ramalho comentou o episódio com uma frase recorrente entre a base do governo na Câmara: “O governo hoje é refém da equipe econômica.” E acrescentou: “Mas se o Meirelles quiser ser candidato, vai ter zero voto em Minas. O povo de lá não vai perdoá-lo.”
No mercado financeiro, a possibilidade de Meirelles sair candidato é recebida com ambiguidade. As propostas e a equipe da Fazenda só recebem elogios. “Ele tem os melhores de cada área”, me disse o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Nas reuniões que presenciei em Nova York, a postura dos investidores é de respeito e curiosidade sobre sua eventual candidatura. Mas, nos bastidores, aqui e ali surge o temor de que, em nome do projeto político, Meirelles possa vir a fazer concessões que coloquem em risco o ajuste. Nem todos os economistas do campo liberal ficaram satisfeitos, por exemplo, com o resultado do processo de renegociação das dívidas dos estados com a União, no ano passado – as exigências de contrapartidas foram bem menores do que o governo havia proposto inicialmente. No mercado financeiro, despertou certa indignação constatar que o Refis, planejado para reaver para o Tesouro 13 bilhões de reais em impostos não pagos, acabará por recuperar apenas 7 bilhões de reais, graças às concessões para derrubar as denúncias contra Temer.
Os deputados da bancada do PSD – eram 24, de um total de 39 – mal cabiam à mesa naquele almoço marcado de última hora na casa de Henrique Meirelles, no Lago Sul, área nobre de Brasília. Na hora de comer – arroz, feijão, farofa, couve, salada verde, carne, frango e salmão, servidos em grandes travessas dispostas sobre um bufê –, alguns tiveram de sentar em banquinhos. O líder do PSD na Câmara, Marcos Montes, vinha tentando promover aquele encontro havia tempos, com o claro objetivo de criar um fato político que pusesse o nome do anfitrião na corrida eleitoral. Gentil e sorridente, o ministro causou boa impressão entre os convidados. “Como ele é normalmente muito seco, foi uma surpresa boa para todo mundo”, disse um dos comensais. Depois que Meirelles fez uma breve exposição sobre a economia, os deputados começaram a falar, todos incentivando sua candidatura. No final, Montes pediu a palavra. “Ministro, os eleitores em 2018 vão buscar um perfil como o seu, da gestão. Nós achamos que o senhor tem que ser o nosso candidato a presidente do Brasil. Quero pedir que o senhor me permita falar no assunto publicamente.” Meirelles apenas sorriu.
Terminado o evento, o líder do PSD afirmou que Meirelles “praticamente” havia aceitado sair candidato. “Ele recebeu com entusiasmo. E sorriu, o que é melhor do que palavras”, disse o deputado a um grupo de repórteres que se aglomeravam na porta da casa. Imediatamente, os sites espalhavam a notícia de que Meirelles seria o candidato do PSD. Pouco depois, o ministro telefonou para o deputado. “Olha, estão me perguntando sobre a candidatura, eu vou negar”, ele disse, segundo me contou o próprio deputado um mês depois. “Eu respondi: ‘É o papel do senhor, uai. O senhor tem que negar. Nós é que temos que falar.’” Em seguida, Meirelles fez uma série de postagens no Twitter. “Eu não sou candidato à Presidência da República. Estou concentrado em meu trabalho na Fazenda, para colocar o Brasil na rota do crescimento sustentado. Fiquei muito honrado com as palavras de todos os deputados do PSD. Continuarei debatendo a política econômica com todos os parlamentares.”
Ainda assim, Montes continua convencido de que Meirelles quer (muito) ser candidato. “Lá em Minas, nós prestamos mais atenção aos sinais do que às palavras. E eu ainda sou médico, tenho olho clínico de médico. Para mim, ficou claríssimo que ele gostou da ideia.” Ele acha, porém, que ainda falta “verniz político” ao ministro. “Dizem que ele não é político no trato com as pessoas, que é frio demais, como todo homem que tem que tomar grandes decisões. E essa frieza que ele tem que ter nas decisões transfere para o relacionamento pessoal, distancia ele dos outros”, diz o deputado, para quem o PSD tem de aproveitar melhor a presença de um de seus membros no Ministério da Fazenda. “Temos que usar o fato de ter um homem da qualidade do Meirelles. Quem é que não quer ter um presidenciável no seu partido?”
E o verniz político?, perguntei. “Ah, ele aprende rápido, tem todas as condições! E não existe professor melhor do que o Kassab”, afirma o deputado mineiro, que pretende promover palestras de Meirelles Brasil afora, para que os grotões o conheçam melhor. “Pelo menos no Pará e em Minas Gerais já estamos combinados, é só ele dizer a data”, disse. A pressa do deputado se justifica. As poucas pesquisas sobre a eleição de 2018 que incluem o nome de Meirelles mostram que ele é pouco conhecido e que muito pouca gente hoje votaria nele (2% dos eleitores, segundo levantamento do Datafolha divulgado no início de outubro, e 1%, segundo o Ibope do final do mês).
O ministro está a par desses dados. Acompanha com cuidado os indicadores de tendências de opinião nas redes sociais que a Fundação Getulio Vargas produz para o Ministério da Fazenda. Contratou também como consultor particular o ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social de Dilma Rousseff, Thomas Traumann. Monitora com lupa tudo o que sai a seu respeito na imprensa, e avalia com cuidadosa obsessão cada passo a ser dado. Deixou de lado, por ora, a aproximação com os evangélicos e está cozinhando os deputados do partido em banho-maria. “Se o país chegar ao ano que vem com a economia acelerando, com o país crescendo 3% ao ano, o Meirelles será um candidato forte”, diz Kassab. Os amigos mais próximos, porém, duvidam que o ministro vá embarcar numa candidatura se não tiver a percepção clara de que tem chances reais de vencer.
Henrique Meirelles já havia terminado a sopa de cebola e conferia o relógio e as mensagens de WhatsApp com mais insistência, possivelmente pensando que em poucos minutos sairia para o próximo compromisso, um jantar em algum ponto de Nova York. De repente, levantou os olhos e disse que ia me contar uma história. “Uma vez, há muitos anos, eu estava velejando com um amigo no Rio de Janeiro, e o vento acabou bem na entrada da Baía de Guanabara, de frente para o Pão de Açúcar. Quando nós olhamos, vinha vindo um cargueiro em nossa direção, e o veleiro não andava. Calculei que em dado momento estaríamos justamente em cima do canal por onde o navio ia passar. De lá de longe, o cara do cargueiro nos viu e começou a buzinar. O meu amigo se apavorou. Começou a querer tomar providências, jogar o bote salva-vidas, baixar a vela. Eu pensei e disse para o meu amigo: ‘Olha, tem uma corrente de água, e nós estamos andando imperceptivelmente.’ E continuei: ‘Vai dar tempo.’” E de fato deu. O cargueiro passou e nós continuamos sãos e salvos.” Quando terminou, virou-se para mim, com um olhar entre maroto e enigmático, e disse: “Avaliação de risco!” Intrigada, eu perguntei: “E essa metáfora é para quê?” Ele respondeu: “Para tudo!”
Aproveitei a deixa para retomar o caso JBS e perguntei se, à luz do que se sabe hoje, ele teria se associado ao grupo. “Não perco tempo pensando nisso. Evidentemente me surpreendeu, não sabia de nada do que sei hoje. Agora, o trabalho que eu fiz está lá, o banco está lá.” Comentei que, se um dia ele vier a ser candidato, precisará responder sobre a J&F o tempo todo. “Fazer o quê? Tudo tem que ser enfrentado. O combate político no Brasil é muito duro, o jogo é bruto.” Lancei uma última pergunta: “E por que, então, o senhor quer tanto isso?” A resposta veio em seu melhor estilo: “Quem falou que já tomei uma decisão, madame Gaspar?” E deu uma gargalhada.
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