ILUSTRAÇÃO: REINALDO_2008
Veloz, furioso e quebrado
Felípedes João da Silva, maratonista high-tech que quanto mais rápido corre, mais pobre fica
Marcos Caetano | Edição 20, Maio 2008
Meu nome é Felípedes – uma tortuosa homenagem do meu pai ao primeiro herói da maratona –, tenho 34 anos e meu melhor tempo para os 10 quilômetros é 39 minutos e 27 segundos. Uma pessoa pode se apresentar de diferentes formas, mas só há uma que realmente conta: o tempo para os 10 quilômetros. A humanidade se divide em corredores, que completam a distância em menos de quarenta minutos; nos esforçados, que terminam o percurso abaixo de cinqüenta minutos; e nos invertebrados, que gastam mais de cinqüenta minutos num percurso tão banal. A distância de 10 quilômetros, assim como a meia maratona, só serve como treino. A meia maratona é uma invenção dos fracos, inverossímil como uma meia gravidez. As distâncias de 10, 20 e 30 quilômetros são treinos fracionados, que funcionam apenas como preparação para a única prova de verdade: os 42 195 metros da maratona. Não tenho o menor respeito por alguém que passou pela vida sem completar uma maratona. E respeito bem pouco quem o fez em mais de três horas.
Apesar do bom salário de gerente de informática de uma multinacional, estou financeiramente quebrado. Limite estourado no cheque especial e no cartão de crédito, dois empréstimos em diferentes financeiras, 1 500 reais que peguei com o cunhado há mais de dois anos e outros 500 mangos que devo ao agiota do parque do Ibirapuera, sem falar na conta vencida da academia: tal é o tamanho do meu déficit. Sempre fui um sujeito econômico e hoje não gasto dinheiro com nada que não envolva corrida. Mas a corrida é justamente a raiz do meu padecimento.
Quando comecei a dar meus primeiros trotes, imaginava haver escolhido um esporte simples, que poderia praticar de graça em qualquer lugar do mundo. Estava enganado. Para correr, pensava eu, basta ter pernas. Vá lá: pernas e um par de tênis – algo que a maioria dos quenianos dispensa, ao menos na juventude. Mas que tênis comprar? De qual marca? De que tipo? “Pronador, neutro ou supinador?”, perguntou-me o vendedor na loja de material esportivo. Como não fazia a menor idéia do que era aquilo, decidi pedir ajuda a um técnico. E um técnico não sai por menos de 150 reais por mês, se for do padrão Cuca, ou de 300 reais para cima, se for um Felipão das pistas. O personal trainer foi o começo da minha glória atlética. E da minha ruína financeira.
Um técnico competente jamais deixará você começar a correr sem um exame de VO2 máximo, que custa cerca de 100 reais. Depois, vem a consulta com o ortopedista, pois você pode ter uma fratura de estresse ou uma pisada defeituosa, coisas que poderão ter que ser tratadas, não sem um exame de cintilografia, com atividades fisioterápicas. Ortopedista, 350 reais. Cintilografia, 750 reais. Fisioterapia, 150 reais por sessão. Após a liberação do ortopedista, um nutricionista de 250 reais por consulta pedirá uma série de exames clínicos, como creatinina, fosfocreatinina, ácido lático e taxa de hemoglobina. Se o seu plano de saúde não cobrir, diga adeus a mais uns 850 reais. Cumprido todo esse caríssimo ritual, semelhante à preparação para uma cirurgia de alto risco, chega finalmente a hora de correr.
A hora, portanto, do famigerado tênis. Um bem mixuruca custa 250 reais, mas o seu técnico vai dizer que se você quiser poupar as articulações, em vez de gastar uma fortuna em sessões de fisioterapia, precisa comprar um importado, com bom sistema de amortecimento, que sai por 500 reais em dez vezes no cartão. Se você for um cara descolado como eu, não resistirá aos modelos que permitem transmitir arquivos MP3 para um headphone sem fio. Eu simplesmente não consigo correr sem ouvir a trilha de Chariots of Fire ou uma daquelas músicas de academia: “You’ve got to pump it up, don’t you know pump it up!” O máximo! Tênis com MP3, 1 mil reais; headphone sem fio, 300 reais. Nesse dia, pela primeira vez na vida, entrei no cheque especial. A segunda vez foi quando segui outra máxima dos técnicos: não dá para ter só um par de tênis, pois a borracha da sola de um calçado de corrida leva 48 horas para se recuperar após um treino. Eu só preciso de 24 horas de repouso, mas o meu tênis precisa de 48. Ossos do ofício. Mais 500 reais.
Não dá para correr pelado. Não em logradouros públicos. Em casa, na esteira (3 500 reais a com os apetrechos mínimos), até aprecio correr nu, embora isso não venha ao caso. Para correr vestido, é preciso comprar short e camiseta. Com sistema de refrigeração dry fit ou climacool, óbvio. Nada de reter o suor no corpo. Reduz o nível de potássio no organismo, garante o técnico. A camiseta, 150 reais e o short, 90. Só que como ninguém treina todo dia sem ter uns três pares desses aparatos, multiplique as quantias. E não dispense o short térmico, para usar por baixo do short e não assar a virilha: 100 reais. Em treinos longos, o roçar da camiseta empapada com os mamilos pode causar sangramento. Faz-se necessário um tubo de vaselina (20 reais), para lubrificar a região sensível.
Obviamente, é suicídio correr sem um freqüencímetro, modelo Polar. Um Polar com recursos intermediários não sai por menos de 500 reais. Mas aquele que compra um freqüencímetro que diz a quantas anda o coração bem que pode comprar um relógio com função de medição de distância (1 mil reais), que registra o quanto você correu. Ou ainda um relógio finlandês Suunto com GPS (2 mil reais), que não apenas marca o quanto você correu, mas dá a sua posição exata na superfície do globo, para que você jamais se perca. Comprei este último e, ao sair da loja, passei na financeira para assinar um papagaio.
Ninguém investe em tantas engenhocas para ficar correndo bestamente, sem objetivo. É preciso participar de provas! A inscrição em uma prova custa 50 reais. Fora outras dez ou quinze pratas de estacionamento – a menos que você pretenda sair cavalgando de casa. Essas são as provas tradicionais. Se você for um corredor fashion, não resistirá a participar de coisas como a Fashion Run (não adianta: brasileiro acha que para ser sofisticado tem que ser em inglês), do Shopping Iguatemi, em São Paulo. A inscrição custa a bagatela de 150 reais. Mas e o conforto? Café da manhã com cozinha biodinâmica e alimentos orgânicos oferecidos pelo Clube Chocolate, valet parking, camiseta da prova em tecido de alta performance, tenda VIP com lounge e DJ, presença confirmada de celebridades e muito mais. Tenho quase certeza de ter visto a Ana Maria Braga correndo com um short de vison.
De prova em prova, fui à segunda financeira pegar um empréstimo para pagar os juros da primeira, ao cunhado e ao agiota. A situação ficou tão complicada que na última semana do mês passei a me alimentar com sachês de carboidratos, daqueles que usamos para repor as energias nas provas longas. Quando os sachês acabam, fico mascando a minha pulseirinha amarela com a inscrição Live strong. O processo todo me ajudou a perder peso, o que me permitiu baixar meus tempos. Não há de ser nada. Mês que vem eu largo o emprego para virar técnico. Padrão Cuca, para começar. Isso se antes eu não acabar como o grego Feidípedes, que em 490 a.C. correu os 42 quilômetros entre Maratona e Atenas, balbuciou “Vencemos!” e em seguida bateu as botas.
Corro muito bem, mas não sei se mais rápido do que as taxas de juros do cheque especial.
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