Ilustração: Carvall
O dia em que um defensor negro intercedeu por uma acusada de racismo
Defesa entendeu que ré confessou participação em crime e pediu pena mínima; julgamento demorou dezoito anos para ser realizado
Quando, em 7 de julho passado, o defensor público Wisley Rodrigo dos Santos soube que faria a defesa de Edwiges Francis Barroso no tribunal do júri dali a vinte dias, reagiu da forma mais fria e racional possível. “É só mais um processo”, disse para si. Ao mesmo tempo, reconhecia que o julgamento seria, inevitavelmente, carregado de simbologias. Santos é negro. Barroso, por sua vez, é apontada como integrante de um grupo neonazista que atuou em Curitiba dezoito anos atrás e seria levada a júri pelo crime de racismo. Outros sete integrantes da facção já tinham sido julgados e condenados por associação criminosa, racismo e discriminação; três dos sete também foram condenados por lesão corporal gravíssima contra dois homens negros, um deles homossexual.
“Eu tenho que ser técnico. A família ou a sociedade podem até querer a morte do réu, mas quem está no processo tem que manter a isenção. Sem isenção não se tem justiça”, disse Santos à piauí. “Se eu for indignado, vou ter que me indignar em todos os processos em que eu atuar”, acrescentou.
O defensor foi designado para o caso de forma aleatória, por acaso. A Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) tem, em Curitiba, três defensores que atuam em tribunais do júri. Eles recebem os processos em que vão atuar de acordo com o último número de identificação da ação penal. Santos, por exemplo, é responsável pelos processos de final 3, 4, 5 ou 6. Com o processo de Barroso em mãos, o defensor passou a estudar as mais de 4 mil páginas, preparando-se para o júri que ocorreria ainda em 27 de julho deste ano. Ainda que minimamente, preocupava-se, no entanto, se sua atuação no caso seria questionada em razão da cor de sua pele e do crime pelo qual a ré era julgada.
“A escolha é por número. Não é por eu ser negro, por nada… Eu poderia ter me declarado suspeito para atuar, se fosse o caso. Mas eu tinha total isenção para fazer o júri”, frisou Santos. “Eu nem sabia desse caso. Nessa época, eu tinha 17 anos e morava em Umuarama [município a mais de 550 km de Curitiba]”, justificou.
No processo, Santos leu que Edwiges Francis Barroso era apontada como integrante de um grupo neonazista skinhead, liderado pelo então marido dela. Segundo as investigações, a facção costumava se reunir na casa de Barroso ou na Rua 24 Horas, um centro comercial na área central de Curitiba, de onde saía para colar cartazes e fazer pichações pregando ódio a negros e homossexuais. A acusação também aponta que o grupo estava arregimentando adolescentes e partindo para ações mais graves, que culminaram nas duas tentativas de homicídio.
Em mandado de busca e apreensão cumprido na época, os policiais encontraram na casa de Barroso uma série de objetos com alusão ao nazismo, inclusive um desenho em grafite de Adolf Hitler. As alianças dela e do marido eram gravadas com a cruz suástica. Além disso, foram apreendidas fotografias do grupo. Numa delas, a filha de Barroso, que tinha 4 anos, aparece com o braço frontalmente esticado e com a mão espalmada, fazendo a típica saudação nazista. “O menino, quando via a foto de Hitler, chamava de vovô”, destacaria o promotor Rodrigo Otávio Mazur Casagrande, durante o julgamento. Em depoimento da época, Barroso confirmou que tinha ensinado a menina a fazer o gesto, mas justificou como sendo brincadeira.
Em uma das audiências de instrução do caso, uma das vítimas – um homem homossexual que se definia como punk – reconheceu a ré como integrante do grupo neonazista. Segundo o processo, na noite em que ocorreu o ataque ao homem negro, o grupo estava reunido e bebendo na casa de Edwiges Barroso. Ela só não saiu com os demais integrantes porque teve que ficar cuidando do filho. A mulher também confirmou ser dona dos objetos apreendidos, mas justificou dizendo que apenas os mantinha em casa e que não os usava na rua.
Os oito integrantes do grupo foram denunciados por associação criminosa (à época, chamado de crime de quadrilha) e racismo. Três deles também se tornaram réus por lesão corporal gravíssima contra as duas vítimas. À exceção de Barroso, todos foram julgados e condenados em agosto de 2019. Ela obteve uma liminar para adiar o julgamento, já que seu advogado tinha outra audiência marcada previamente. Quando o júri foi remarcado, para julho de 2023, a acusação de associação criminosa já havia prescrito. Edwiges Barroso responderia somente pelo crime de racismo – que é imprescritível.
Para estruturar a defesa, o defensor Wisley Santos contou com uma dificuldade extra. Ele não conseguiria ouvir Edwiges Barroso, que sequer participaria do próprio julgamento. Ela não foi notificada do julgamento, pois não foi localizada nos endereços informados à Justiça. Segundo informações da Polícia Federal (PF), ela está no Reino Unido desde 27 de abril de 2016. Questionado pela piauí sobre como seria ficar frente a frente com uma mulher apontada como integrante de um grupo condenado por práticas neonazistas, o defensor foi lacônico. “Seria normal, como qualquer outra pessoa”, disse. “Se ela tivesse aparecido e declarado que não me queria como defensor, por exemplo, eu me declararia suspeito”, acrescentou.
Sem a possibilidade de conversar com a ré, Santos focou em verificar se tinha havido alguma nulidade no processo. Não encontrou nada que maculasse as investigações nem a condução da ação penal. Em todos os procedimentos, por exemplo, Edwiges Barroso tinha sido assistida por um advogado. A partir de então, em conjunto com a psicóloga Mariana Levoratto, passou a fazer uma análise multidisciplinar do caso, estruturando a defesa da ré. Juntos, o defensor e a psicóloga concluíram que Barroso havia confessado práticas que se enquadravam como racismo. Por isso, descartaram a estratégia de pedir absolvição da ré.
“Ela é questionada sobre o que foi encontrado na casa dela, os artigos de cunho neonazista, as fotografias… e ela concorda com esses achados. Diz que fazia uso desses objetos em casa. Inclusive, sobre uma fotografia que se tornou pública [que mostra a filha de Barroso fazendo saudação nazista], ela confirma que aquilo ocorreu e com participação dela”, apontou Levoratto.
“O prognóstico dela era de condenação. Tem uma porrada de coisas que foram encontradas na residência dela e que ela diz que eram dela. Temos o fato de o júri ser conduzido por um juiz conhecido como [aplicador] de penas mais altas. A única saída era sustentar a confissão e pedir pena mínima”, avaliou Santos.
Na quinta-feira, 27 de julho, no Centro Judiciário do Ahú, em Curitiba, o defensor Wisley Santos se posicionou no púlpito para fazer a defesa de Edwiges Barroso. Falou do papel constitucional da Defensoria Pública, rememorou o caso e, diante dos jurados, apontou que havia provas materiais e de autoria contra Edwiges Barroso. Destacou, porém, o atenuante da confissão, pedindo que a pena fosse afixada em “seu mínimo legal”. “Ela tem o direito a uma redução de pena. A Defensoria pleiteia essa redução de pena”, disse. Em seguida, falou da ineficácia do encarceramento sem outras medidas multidisciplinares.
“Eu acredito que só a prisão não resolve. Não adianta só pena de prisão, porque esses eventos, esses fatos vão continuar existindo. O primeiro passo, na minha concepção, é admitir que o preconceito existe. E o preconceito vem a lume neste processo”, declarou.
Edwiges Francis Barroso foi condenada pelo crime de racismo à pena de um ano e três meses de prisão, com cumprimento inicial em regime aberto, com monitoramento eletrônico. Se a condenada não comparecesse para colocar tornozeleira em um prazo de cinco dias úteis, ficaria suscetível a sanções, como decretação de prisão preventiva. O defensor, no entanto, recorreu desse trecho da decisão, argumentando que o regime aberto é incompatível com o monitoramento.
Filho de um funcionário de curtume e de uma enfermeira, Wisley Santos se identifica, hoje, como um defensor negro. Mas nem sempre foi assim. Nascido em Umuarama, município do Noroeste do Paraná, ele cresceu à margem de discussões raciais. Aos 17 anos, optou pelo direito menos por vocação e mais “por acaso”, seguindo os colegas. “Eu participava de um grupo de leitura com amigos. Acabamos indo para o direito”, relembrou. Após se formar na Universidade Estadual de Maringá (UEM), prestou concurso para a primeira turma da DPE-PR e acabou aprovado. Trabalhou em tribunais do júri em Paranaguá e Campo Mourão, até ser designado para Curitiba, onde está desde 2017. Só nos últimos anos é que se aproximou da temática racial.
“O meu letramento [racial] ocorreu tardiamente, já na Defensoria e já em Curitiba. Li, por exemplo, a coleção Feminismos Plurais. Foi de lá que veio abrindo um leque”, disse Santos. “Hoje, eu vejo a forma sutil como o racismo se manifesta. É uma coisa para que eu não atentava antes”, acrescentou.
Apesar de a equipe de defensores que atuam no tribunal do júri em Curitiba ser majoritariamente negra, Santos reconhece que o direito ainda é uma profissão operada principalmente por homens brancos. Aponta a desigualdade evidente e pondera que o concurso público também acaba sendo uma ferramenta de exclusão social e racial.
“É a questão do acesso. O concurso é um pente-fino difícil, em que todos não têm as mesmas oportunidades. No meu caso, eu pude só estudar. Meu primeiro emprego foi só aos 23 anos, já depois de formado. Meu segundo emprego foi na defensoria. Quantos podem ter isso? Na população preta e pobre, isso é exceção”, avaliou. “Eu não tive dificuldade econômica e isso me colocou à frente”, disse.
Santos também critica o que chama de hierarquização da justiça. Segundo ele, o fenômeno é muito mais evidente em cidades pequenas, onde alguns operadores do direito são colocados em um pedestal, em posição social privilegiada, seguindo uma ordem de “importância”: juízes, promotores, advogados e defensores. Tudo isso, na avaliação de Santos, interfere na atuação jurídica e abre margem, inclusive, para episódios de racismo.
“Em Curitiba, um juiz é só mais um juiz. Mas se você pega uma cidade menor, todo mundo sabe quem é o juiz, que está lá há vinte ou trinta anos. No interior, há uma hierarquia: é o juiz, o promotor é, por último, o defensor”, apontou. “Em Campo Mourão [cidade do interior do Paraná, de 100 mil habitantes], eu era o único negro. Chega um defensor negro, batendo de frente com um promotor… Eu não quero racializar, mas é uma coisa que está posta”, disse.
Apesar de destacar que sua atuação no caso de Edwiges Barroso se deu de forma técnica, o defensor concorda que o episódio tem um potencial didático. Em primeiro lugar, por referendar o princípio constitucional da ampla defesa a quem quer que seja, independentemente do crime cometido. Por fim, por ser uma mulher acusada de neonazista tendo seus direitos assegurados por alguém que pertence ao grupo contra o qual ela pregava ódio.
“Tem toda uma simbologia. É um julgamento feito pelo tribunal do júri, portanto julgado pela sociedade, com transmissão ao vivo pelo YouTube, o que pode levar o caso a muitas pessoas. E é simbólico pela ironia do destino, por o defensor ser negro. Foi uma ironia para ela e para o grupo. E espero que isso tenha um caráter pedagógico para a sociedade de modo geral”, conclui.
Link para assistir ao júri
https://www.youtube.com/watch?v=bTrTaAPuOYk
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