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O mundo sem a Amazônia
Modelo climático prevê efeitos da conversão da floresta em pasto: diminuição de 25% das chuvas no Brasil e aumento da temperatura, com prejuízo "catastrófico" para agricultura e produção de energia
Se a Floresta Amazônica fosse toda convertida em pastagem, a quantidade média de chuvas que cairia sobre o Brasil diminuiria 25%. A conclusão é de pesquisadores norte-americanos e brasileiros que simularam como seria o clima global caso a Amazônia fosse ocupada pela pecuária em parte ou no todo, em diferentes cenários. A diminuição das chuvas apontada pelo estudo se somaria àquela que já é de se esperar em parte do território brasileiro por causa do aquecimento global.
Baseado em modelos climáticos rodados em computador, o estudo dá números ao argumento de que o agronegócio brasileiro depende da chuva gerada na Amazônia. É a evapotranspiração das florestas que gera o vapor d’água transportado continente adentro nos chamados rios voadores. Sem árvores que os abasteçam, eles ameaçam secar.
A simulação mostrou que, além da própria Amazônia, áreas de Cerrado nas regiões Centro-Oeste e Sudeste – onde se concentra a maior parte da produção agrícola brasileira – estão entre as que sentirão com mais força a queda na precipitação. O agronegócio brasileiro é dependente da chuva – só 6% da área cultivada é feita com irrigação. Caso não contenha o desmatamento da Amazônia, o Brasil vai ter dificuldade para se manter como uma potência agrícola global. A chuva não é o único problema. “O aumento de temperatura será catastrófico para o Brasil”, afirmou Stephen Pacala, autor principal do estudo.
Praticamente 20% da área original da Floresta Amazônica já foi derrubada, dos quais cerca de dois terços foram substituídos por pastagens. De acordo com os alertas emitidos pelo Inpe, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a área derrubada acumulada entre janeiro e setembro deste ano, nos primeiros nove meses do governo Bolsonaro, foi 93% maior que o verificado no mesmo período em 2018 – ano em que a taxa anual de desmatamento chegou ao maior índice da década.
A ideia
Em maio de 2019, três brasileiros entraram no gabinete de Stephen Pacala, professor de ecologia na Universidade de Princeton. Pacala, um dos grandes especialistas mundiais em mudanças climáticas, estava em pé num canto da sala, fazendo café. Os três visitantes – Adalberto Veríssimo, ecólogo, Tasso Azevedo, engenheiro florestal, e João Biehl, antropólogo – vinham convidá-lo para participar de uma conferência sobre a Amazônia que se realizaria dentro de cinco meses ali mesmo, em Princeton. No encontro seria discutido o futuro da floresta.
Pacala, aparentemente distraído, ainda se ocupava do café quando Adalberto Veríssimo começou a falar da situação na Amazônia. Eram tempos difíceis para o bioma, a conjuntura política não se mostrava favorável à floresta – ela estava sob ataque. Havia violência, ocupação ilegal de terras públicas, queimadas. Pacala foi se interessando. Deixando o café de lado, sentou-se de costas para as equações que tomavam os quadros-negros atrás dele. O relato dos brasileiros sugeria que, se a degradação em curso prosseguisse, a floresta poderia se tornar inviável e corria o risco de desaparecer no prazo de algumas décadas.
“Há uma coisa que não está clara para a maioria das pessoas”, observou o americano, dirigindo-se aos três colegas. Referia-se ao Acordo de Paris. “Quando se diz que, para o aumento da temperatura não ultrapassar o intervalo de 1,5°C a 2,0°C, a emissão de gases do efeito estufa nos países desenvolvidos precisa zerar até 2050 e, no restante do mundo, até 2100, subentende-se aí que os sumidouros naturais de carbono continuarão a existir.” Se eles desaparecessem, explicou, na prática não bastaria reduzir as emissões, e isso significava que alcançar as metas de Paris dependia do fim do desmatamento e da continuidade da absorção natural de gás carbônico. “A meu ver, então, seria possível demonstrar que, desmatando a Amazônia, destruindo o sumidouro natural de carbono e provocando emissão de gases com incêndios florestais, o Brasil sozinho provavelmente tornaria impossível concretizar o Acordo de Paris num nível global.”
Os cientistas brasileiros se entreolharam. Havia uma novidade ali. “Interessante”, disse Azevedo, já tendo ideias: “E se nós fizéssemos o seguinte? Vamos considerar que as leis ambientais brasileiras tenham sido alteradas para permitir desmatar mais 20% da floresta, e aí calculamos o impacto disso sobre o clima.” Stephen Pacala, cada vez mais animado, meneou a cabeça e contrapropôs: “Não, vamos ser draconianos: elimine-se a Amazônia! Toda ela vira soja. Assim nós conseguimos calcular o valor desses recursos que queremos preservar. Mandamos embora um bom naco da biodiversidade do planeta, mandamos embora o hábitat das populações indígenas. Em troca, ganhamos soja. Que valor isso tem? Qual o preço para o futuro da humanidade em termos de aquecimento global? É isso, vamos transformar tudo em soja e calcular.”
(Quando fizeram o estudo, os pesquisadores acabaram optando por projetar como seria o clima no futuro caso a Amazônia fosse substituída por pastagens, e não por soja, já que a maior parte da área desmatada acaba sendo destinada à pecuária.)
Poucos lugares no mundo seriam mais apropriados para aquele exercício de imaginação. A cidade de Princeton, em Nova Jersey, sedia o Laboratório de Dinâmica de Fluidos Geofísicos (GFDL na sigla em inglês), um centro avançado de modelagem climática da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica, a NOAA, órgão do governo americano responsável pela previsão de intempéries. “Mais de 100 doutores trabalham lá”, explicou Pacala. Os modelos de previsão climática foram inventados no GFDL por volta de 1960. “É o pessoal que prevê furacões, ciclones. Seria relativamente simples adaptar esses modelos para outro tipo de cenário – a gente aniquila a Amazônia e vê o que acontece.”
O encontro se encerrou com Pacala avisando que o modelo só poderia ser rodado se ele conseguisse convencer uma colega sua – a russa Elena Shevliakova, climatologista do GFDL e codiretora do laboratório – a largar tudo o que estivesse fazendo para se dedicar ao exercício. “É que ela está sempre ocupadíssima”, explicou. “Cresceu na União Soviética, é muito séria. Mas se eu pedir com jeito…”
Duas semanas depois, Biehl, Veríssimo e Azevedo caminhavam pelo campus quando avistaram Pacala vindo na direção deles de bicicleta. O cientista apeou e, com um sorriso, deu a notícia: “Elena topou. Vamos rodar o modelo.”
Os resultados seriam apresentados às 16 horas do dia 17 de outubro de 2019, durante a conferência sobre a Amazônia organizada por João Biehl e seus colegas de Princeton.
O modelo
Para rodar o modelo, Pacala e Shevliakova dividiram o globo terrestre em pequenas unidades de análise para entender como o clima evoluiria em cada uma delas. Na parte continental do planeta, eles aplicaram sobre a superfície uma retícula de 1° por um 1° (latitude e longitude), correspondendo a blocos de 110 km por 110 km. Para os oceanos, usaram uma trama mais apertada, de 55 km por 55 km.
O modelo leva em conta as condições específicas de cada uma dessas unidades de análise. Assim, se uma célula da retícula espelha um trecho do oceano, consideram-se correntes, temperatura da água e interações geoquímicas dessa área em particular; se espelha terra, trabalha-se com emissão de metano (da agricultura, de animais), carbono produzido pelas queimadas, evapotranspiração das plantas, aerossóis de carbono (partículas suspensas pelo fogo), aerossóis minerais (partículas de areia sopradas pelo vento), condensação e evaporação.
A partir desses dados, o modelo retrocede até a idade pré-industrial, ou seja, até meados do século XIX, e calcula o que aconteceu e acontecerá com a temperatura e o carbono desde aquela data até o ano de 2050. Cada rodada do modelo avança 30 minutos no cálculo, e é assim, de meia hora em meia hora, que se chega a 2050. Oito anos de transformações climáticas fatiados em unidades de meia hora em cada quadrante do planeta – da Amazônia à Sibéria, do chifre da África a um canto vazio do Pacífico Sul –, exigem um dia de uso intensivo do supercomputador operado por Shevliakova. O cálculo requer o uso de 3 456 processadores no caso das áreas terrestres (para as unidades oceânicas, que são menores, o número de processadores cai pela metade).
Pacala e Shevliakova rodaram o modelo aplicando-o a dois cenários previstos pelo Acordo de Paris. Mais otimista, o primeiro constructo, batizado de SSP1 – sigla de Shared Socio-Economic Pathways – trabalha com a hipótese de que o mundo escolherá o caminho da sustentabilidade, enquanto o segundo, SSP5, pessimista, presume que seguiremos até 2050 sem alterar os padrões atuais de emissão de gases.
Tanto em SSP1 como em SSP5 a Amazônia existe. Na ocasião em que esses cenários foram desenhados, não havia razão por que imaginar que em algum momento a floresta estaria sob risco existencial. O exercício de Pacala e Shevliakova simula três situações: o mundo de SSP1 sem nenhuma Amazônia, o mundo de SSP1 e SPP5 sem metade da Amazônia.
Em termos de temperatura e chuva, qual o impacto disso sobre o Brasil e o mundo?
Os resultados
Os resultados são graves.
Se a Amazônia desaparece por completo, mesmo no cenário mais otimista de SSP1 – aquele em que o mundo consegue diminuir drasticamente a sua emissão de carbono – a temperatura média global sobe 0,25°C além do aumento já previsto no cenário SSP1, que é de 1,5° a 2,5°C. Apenas trinta anos nos separam de 2050. Se o modelo fosse rodado até 2100, teríamos provavelmente um aumento suplementar de meio grau.
Também é preciso ter em mente que se trata aqui de uma temperatura média, ou seja, obtida pela ponderação das variações de todos os recantos do planeta. Ocorre que as pessoas não moram em localidades médias, mas em lugares com características bem determinadas. O que importa, então, é a temperatura local. Para a região Amazônica, por exemplo, o modelo indica que a eliminação total da floresta leva a um acréscimo de até 2,5°C àquele aumento de 1,5° a 2,5° já incorporado ao cenário SSP1. Ou seja, os termômetros marcariam até 4,5°C a mais, o que tornaria a vida praticamente inviável. Quase toda a América do Sul é afetada. Só parte da Patagônia e dos Andes se safam.
Em SSP5 – o modelo “vida-que-segue” no qual não modificamos nossos atuais padrões de emissão de gases –, a existência de apenas 50% da floresta amazônica produz um quadro climático quase tão grave quanto o resultante de sua completa eliminação. Partes da região Norte experimentarão um aumento de temperatura semelhante, de 2,0 a 2,5 graus além além dos 4°C a 5°C já contratados no cenário SSP5 mesmo que a floresta ficasse de pé. Já o Centro-Oeste brasileiro terá de conviver com até 1 grau adicional nos termômetros.
Igualmente desastrosa é a situação das chuvas. Se a Amazônia se vai, mesmo no cenário otimista de SSP1, o estado de Goiás, o norte de Mato Grosso, o norte da Bahia e boa parte do Sudeste brasileiro perdem de 0,6 a 1,8 milímetro de chuva por dia. No coração da floresta, a queda pode chegar a 2 milímetros, o que corresponde a quase 30% da precipitação anual. Na média brasileira, choverá menos 25% no país.
Em escala global, no cenário SSP1 com desmate completo da floresta, ocorre um aumento acentuado de temperatura no meio-oeste americano, um aumento significativo ainda que mais brando na Europa e na Oceania, e um aumento agudo, de quase 2 graus, no Ártico. Isso significará degelo acelerado da calota polar e muito provavelmente uma mudança radical no regime dos ventos. A destruição da floresta provocará de uma só vez um aumento de trinta partes por milhão na concentração de dióxido de carbono na atmosfera, o que corresponde a quinze anos do que o mundo acumula no atual padrão de uso de combustíveis fósseis.
As mudanças na precipitação pluvial ocorrerão essencialmente na América do Sul e na Indonésia, que também passará a sofrer de falta de chuva.
Sem a Amazônia, seria virtualmente impossível limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C, como propõe o Acordo de Paris. O sofrimento maior, contudo, será nosso e dos nossos vizinhos.
As consequências
A substituição da Amazônia por pastagens teria impacto direto sobre o abastecimento das usinas hidrelétricas, que têm participação preponderante na matriz energética brasileira. Num futuro com menos chuvas, rios escassearão e os fluxos hídricos se tornarão débeis, o que acarretará colapso sazonal na geração de energia.
A energia que as hidrelétricas deixariam de produzir teria que ser compensada com a exploração de outras fontes, conforme explicou à piauí um especialista em planejamento energético cujo contrato profissional não permite contatos com a imprensa. O país poderia optar por fontes renováveis como a solar ou eólica, mas é improvável que abrisse mão de construir novas usinas termelétricas que sujariam sua matriz energética e aumentariam suas emissões de gases do efeito estufa, realimentando a causa da deficiência hídrica.
Mas é sobre a agricultura que os efeitos seriam mais duros. A piauí quis saber de Eduardo Assad, engenheiro agrícola que investiga o efeito das mudanças climáticas sobre o agronegócio brasileiro, o que representaria a queda de 25% na precipitação média apontada pelo modelo computacional. “Um desastre”, disse Assad, que não participou do estudo e trabalha na Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Vai faltar água, continuou o cientista, e com isso haverá mais veranicos e mais períodos secos durante a época de chuva, com impacto nas safras das commodities exportadas pelo Brasil. “Isso já está acontecendo, e tende a ficar cada vez mais forte.”
Estudos feitos pela equipe de Assad desde 2007 vêm mostrando que a soja, o milho e o café, nessa ordem, seriam os cultivos mais afetados pela diminuição das chuvas. “O problema da soja não será a temperatura elevada, mas sim a deficiência hídrica”, afirmou. O pesquisador apontou duas soluções para combater o problema. “A primeira é parar de desmatar e revegetar, para poder voltar a ter o ciclo hidrológico.” A segunda, continuou, é adotar sistemas integrados de lavoura, pecuária e floresta, que retêm a água no solo e minimizam o estrago.
Assad disse que os resultados do estudo se alinham com projeções feitas por outros grupos de pesquisa brasileiros. “Tem mais de quinze anos que estamos falando isso, mas a proposta do país hoje é derrubar o conhecimento científico. Esse povo fica negando que está havendo mudança climática e dizendo que desmatamento não tem problema nenhum”, disse o pesquisador. “Se continuarmos do jeito que está, teremos muitos problemas no médio prazo.”
Documentarista, é fundador da piauí. Dirigiu No Intenso Agora, Santiago, Entreatos, Notícias de uma Guerra Particular e Nelson Freire. É autor de Arrabalde: Em Busca da Amazônia (Companhia das Letras)
Repórter da piauí, é apresentador do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) e autor dos livros Admirável novo mundo: uma história da ocupação humana nas Américas (Companhia das Letras) e Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)
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