minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    O antes e o depois do cartaz divulgado pela Brasil Paralelo Montagem: Paula Cardoso

questões audiovisuais

A operação abafa da Brasil Paralelo

Conhecida pelos conteúdos negacionistas, a produtora vinha alardeando sua estreia na ficção com filme adaptado de best-seller de C. S. Lewis, sem ter os direitos autorais. Até que a artimanha foi descoberta

João Batista Jr. | 04 set 2023_16h07
A+ A- A

Com alardeados 600 mil assinantes, o portal da produtora Brasil Paralelo se projetou como uma Netflix negacionista, graças ao catálogo de filmes e séries em tom de teoria conspiratória, que contestam, por exemplo, a truculência da ditadura militar, a necessidade de isolamento social em razão da Covid e a idoneidade de Maria da Penha, a mulher que ficou paraplégica após um tiro de seu ex-marido e inspirou a lei contra violência doméstica, sobre a qual se diz, entre outras coisas, que tinha um comportamento ciumento.

Sempre pronta para fazer bastante barulho, porém, a empresa iniciou nas últimas semanas uma operação abafa envolvendo um projeto-chave para suas ambições: o primeiro longa-metragem de ficção em seus sete anos de existência.

Batizado de Oficina do Diabo, com estreia nos cinemas prevista para outubro, o filme tinha como grande chamariz (até há algumas semanas) o fato de ser “inspirado em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de C.S. Lewis”, como amplamente destacado em seus cartazes. O autor best-seller é célebre sobretudo por As Crônicas de Nárnia, com 100 milhões de livros vendidos, que deu origem a uma trilogia feita pela Disney cujo faturamento só com as bilheterias dos cinemas rendeu mais de 1,5 bilhão de dólares.

Em sua conta do Instagram, em que soma 2,7 milhões de seguidores, a Brasil Paralelo publicou: “Baseado em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, #OficinaDoDiabo estreia em breve somente nos cinemas.” Em um convite para a pré-estreia no Kinoplex Itaim, em São Paulo, a Brasil Paralelo usa a frase: “Baseado no best-seller de C.S. Lewis, Cartas de um diabo a seu aprendiz.” Uma reportagem do portal Exame, de fevereiro deste ano, feita a partir de entrevistas com os fundadores, registrou também a “adaptação”. O CEO Henrique Viana contou na ocasião que a meta da Brasil Paralelo no longo prazo é ser uma Disney brasileira: “Eles contaram a história de Hamlet com o Rei Leão. É isso que queremos fazer.”

Nada mais natural emprestar o prestígio de um autor ovacionado pela comunidade cristã de todo o mundo para atrair o público aos cinemas. Mas há um problema: a Brasil Paralelo não comprou os direitos autorais do autor nem pediu autorização para fazer um filme inspirado no livro em questão, que explodiu no Brasil (já eram 200 mil cópias vendidas em março de 2021, quando os últimos dados foram divulgados) e figura em primeiro lugar no ranking da Amazon na categoria “Literatura e Ficção Europeia”.

A estratégia de ancorar o filme ao autor da obra seguia firme até que, no final de julho, uma empresa brasileira de audiovisual entrou em contato com a The CS Lewis Company Ltd., companhia britânica responsável pela negociação de direitos autorais do escritor, que negou ter sido contatada pela Brasil Paralelo.

Iniciou-se então uma operação abafa. A Brasil Paralelo deletou posts de suas redes sociais nos quais informava que o filme é “inspirado” e “baseado” em C. S. Lewis. Também foi deletado do X, o antigo Twitter , um post feito por Elton Mesquita, um dos roteiristas da adaptação: “o filme DE FICÇÃO da BP que vai ser brevão (e que eu ajudei a roteirizar) é baseado nesse livro de Lewis”, escrito em resposta a uma seguidora que postou uma foto de Cartas de um Diabo a seu Aprendiz.

Um livro só se torna domínio público após setenta anos da morte de seu autor. Faltam dez anos para a obra de C.S. Lewis chegar lá: ele morreu no dia 22 de novembro de 1963, em sua casa, em Oxford, vítima de um ataque cardíaco.

Procurada pela piauí, Rachel Churchill, representante da The CS Lewis Company, escreveu: “Nós estamos investigando esse assunto no momento, então ainda não temos qualquer informação.” Já a editora Thomas Nelson, que publica as obras de C.S. Lewis, informou que a Brasil Paralelo nunca entrou em contato para comprar os direitos do livro. A empresa estuda quais medidas vai tomar em relação ao lançamento do filme.

 

Poucas horas após ter sido acionada pela reportagem de piauí no dia 17 de agosto, para questionar se tinha os direitos autorais, a Brasil Paralelo publicou em suas redes a postagem que dizia que Oficina do Diabo foi inspirado em oito livros, entre eles Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, de C. S. Lewis. São eles: O Anticristo, de Friedrich Nietzsche; O Homem Eterno, de G. K. Chesterton; Sermões, do Padre Antônio Vieira; A Vocação Religiosa, de Santo Afonso Maria de Ligório; Parerga e Paralipomena, de Arthur Schopenhauer; Noite Escura da Alma, São João da Cruz; e, por fim, a Bíblia. As obras parecem terem sido escolhidas a dedo. Todas elas foram escritas por autores que morreram há mais de setenta anos. Ou bem mais. São Paulo, o apóstolo que escreveu algumas das epístolas do Novo Testamento, morreu há quase 2 mil anos.

Embora tenha deletado de suas redes as propagandas dizendo que, sim, a ficção é uma “adaptação” de Lewis, a Brasil Paralelo esqueceu uma postagem. Feita há sete meses em seu perfil no LinkedIn, onde soma 22 mil seguidores, a empresa informa: “A primeira ficção da Brasil Paralelo é uma adaptação do livro Cartas de Um Diabo a seu Aprendiz, de C.S. Lewis. Sob direção de Filipe Valerim, sócio-fundador da Brasil Paralelo, a empresa entra oficialmente no mercado de filmes em 2023 com o lançamento de Oficina do Diabo.” Esse post seguia no ar quando este texto foi publicado.

Procurado, o CEO da Brasil Paralelo Henrique Viana pediu por WhatsApp para a reportagem procurar a assessoria de imprensa – mas não houve retorno. Viana deixou de responder as mensagens ou atender as ligações. O roteirista Elton Mesquita também não se pronunciou.

 

Até tentar varrer da internet qualquer menção à adaptação, a Brasil Paralelo falava com orgulho do projeto escolhido a dedo para ser um marco na vida da empresa acostumada até o momento a produzir documentários: afinal, marcava sua entrada no segmento de ficção. No elenco, estão os atores Elizângela e Felipe Folgosi (dois nomes, aliás, que se declararam contra as vacinas contra a Covid no auge da pandemia). É um passo e tanto para a produtora que, segundo o portal da Exame, ampliou o faturamento de 67 milhões para 150 milhões de reais em 2022 (as assinaturas custam entre 19 e 59 reais mensais).

Cofundador e CEO da Brasil Paralelo, Henrique Viana conversou com o podcaster Monark, no Monark Talks, em setembro de 2022. No final das quase três horas de conversa, Viana esmiuçou: “Fizemos um roteiro adaptado do livro Carta de um Diabo a seu Aprendiz, do C. S. Lewis, que é do caralho. São orientações do diabo ao seu sobrinho, que é seu aprendiz. Ele ensinando o sucessor dele a influenciar a mente das pessoas pra fazer merda”, explicou ele, para depois falar desse novo momento da empresa. “É um grande passo [fazer ficção]. É um puta salto fazer as nossas novelinhas. O pessoal sempre falou que as novelas da Globo foderam a cultura do Brasil, e eu concordo. Vamos fazer novela para tentar reverter isso daí.” Monark era sócio e apresentador do podcast Flow, até derreter em uma fala na qual defendia manifestações nazistas. Teve seus canais e perfis em rede sociais suspensos por Alexandre de Moraes como desdobramento da investigação dos ataques de 8 de janeiro. Esse episódio do Monark Talks segue no ar.

O filme da Brasil Paralelo baseado na obra do escritor irlandês será distribuído no Brasil pela Paris Filmes, empresa responsável por levar aos cinemas nacionais filmes como La La Land, Meia-noite em Paris e De Pernas para o Ar. A piauí entrou em contato para saber se a empresa sabia que a Brasil Paralelo produziu um filme sem pagar por direitos autorais e se via algum empecilho em trabalhar com uma produtora responsável por produzir conteúdo negacionista. A Paris Filmes respondeu com o seguinte texto:

“Como distribuidora, [a Paris Filmes] não interfere na liberdade criativa, de comunicação e expressão das produtoras cinematográficas, dos diretores e demais talentos criativos. Os produtores são os responsáveis pela produção das suas obras cinematográficas declarando e garantindo à distribuidora que são os legítimos criadores e titulares dos direitos intelectuais agregados à obra audiovisual, complexa e una por natureza. A PARIS FILMES não faz discriminação entre produtores brasileiros e estrangeiros, pequenos ou grandes. Tem por política privilegiar a produção cinematográfica brasileira independente. Igualmente, não compete à distribuidora avaliar o posicionamento ideológico, político, institucional ou empresarial dos produtores audiovisuais brasileiros ou estrangeiros, acreditando que cabe ao público avaliar o interesse pelos filmes que são ofertados em qualquer segmento de mercado. As questões sobre direitos relacionados ao filme e seu material de divulgação devem ser endereçadas à produtora de Oficina do Diabo.”

Além da Brasil Paralelo, a Paris Filmes também deletou de seu Instagram as postagens sobre o lançamento do filme adaptado do livro de C. S. Lewis.

 

De acordo com o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais, qualquer adaptação depende de “autorização prévia e expressa do autor para a utilização da obra, por quaisquer modalidades”. “Há diversas possibilidades jurídicas quando essa lei não é respeitada, como pedir indenização, parcela dos lucros ou o impedimento da veiculação da obra”, explica o advogado Ricardo Brajterman, especializado em direitos autorais e resolução de conflitos.

A Brasil Paralelo já foi questionada outras vezes por desrespeito a direitos autorais. Um dos casos está no documentário 1964 – Brasil Entre Armas e Livros, de 2019, dirigido por Felipe Varelim e Lucas Ferrugem, em que a produtora ameniza os horrores da ditadura militar ao dizer que o golpe se deu porque o país vivia sob ameaça comunista e que a repressão não foi tão severa como contam os livros de história contaminados pela esquerda. O filme, enaltecido por Eduardo Bolsonaro por mostrar “verdades nunca antes contadas”, usou uma foto de Sebastião Salgado feita em Serra Pelada, no Pará, em meados dos anos 1980. A fotografia de um garimpeiro segurando o cano do fuzil de um policial militar, sob o olhar de outros trabalhadores, aparece no filme quando o narrador descreve a formação da Guerrilha do Araguaia, promovida pelo Partido Comunista do Brasil em 1973 e dizimada pelo exército dois anos depois. A equipe de Salgado chegou a notificar a Brasil Paralelo para tirar a imagem do documentário, e não foi atendida, conforme me contou o filho do fotógrafo, o cineasta Juliano Salgado.

Em janeiro deste ano, a advogada Talitah Regina de Melo Jorge Badra entrou com uma ação civil por violação de direito de imagem em nome de seu cliente, o tiktoker Vinícius Araújo Marmo. “Pegaram um trecho de uma postagem dele, tratando-o pelo termo pejorativo ‘tupiniviking’, tirando tudo de contexto e sem nenhuma autorização”, explica ela, que pede indenização no valor de 20 mil reais. Marmo aborda a cultura nórdica em sua rede social. A Ancine também move ação contra a produtora Brasil Paralelo por não pagamento da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, chamada de Condecine, obrigatório para produtoras cinematográficas e principal fonte de investimento público na indústria do audiovisual.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí