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Os 26% de infectados e a vacinação

Enquete sorológica descobriu que 1 em cada 4 paulistanos já têm anticorpos contra o Sars-CoV-2. Entenda por que isso afeta a campanha de vacinação

| 23 out 2020_18h45
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No 56º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach falam sobre os resultados de enquete sorológica realizada na cidade de São Paulo, que mostra que 26% da população já foi infectada pelo novo coronavírus. Ouça o episódio completo aqui. Acesse a pesquisa citada no episódio em https://piaui.co/soroprevSP4

 

José Roberto de Toledo: Se sortearmos quatrocentos adultos que moram na cidade de São Paulo e testarmos o sangue deles, em cem, ou seja, um em cada quatro, terão anticorpos contra o Sars-CoV-2. Foi isso que a quarta fase da enquete sorológica que um grupo de pesquisadores da USP, do laboratório Fleury e do Ibope Inteligência constatou. Ou seja, 26% dos paulistanos já foram infectados pelo novo coronavírus, principalmente os mais pobres, os que puderam passar menos tempo na escola e os moradores da periferia da cidade. Entre os mais desfavorecidos, a prevalência do vírus passa de 30%, ou seja, é de um em cada três. E essa taxa não para de crescer, mesmo com o fim de quase todas as medidas de isolamento social na cidade. Essa informação é especialmente importante para subsidiar os governantes que vão precisar decidir quando e como vão começar a vacinar seus cidadãos.

Uma prevalência alta pode até ajudar. Fernando Reinach explica como.

Dr. Fernando Reinach, então vocês chegaram numa conta alta, chegaram à conclusão de que um em cada quatro paulistanos já esteve em contato íntimo com o Sars-Cov-2. É isso?

Fernando Reinach: Na verdade, vocês lembram desse estudo, né? O objetivo é saber o número de pessoas que já foram infectadas pelo vírus na cidade de São Paulo. E, como a grande maioria das pessoas infectadas depois de um certo tempo produz anticorpos, o que a gente faz é escolher randomicamente pessoas nas cidades. A gente sorteia distritos censitários, que é tirar uma rua, um pedaço pequeno. Nesse caso, a gente sorteou 152 setores censitários e, dentro do setores censitários, oito residências em cada setor. E, dentro de cada residência, a gente convida todo o mundo a doar sangue para ser testado. Na verdade, são 1.129 amostras separadas naquelas duas grandes áreas: a metade da cidade que tem renda maior e a metade da cidade que têm renda menor. E quando você analisa o sangue dessas pessoas, o que a gente descobre é que 26,2% dessa população, que são só adultos, é bom lembrar, têm anticorpos hoje.

José Roberto de Toledo: Que é um número extremamente maior, segundo o paper de vocês, 2,2 milhões de paulistanos já tiveram Covid. Na sua forma sintomática ou assintomática, já foram contaminados pelo novo coronavírus. E teve um crescimento.

Fernando Reinach: Teve um crescimento de 45%, foram 8,3 pontos percentuais.

Agora, o que é interessante é que esse crescimento grande, que corresponde praticamente a 700 mil adultos infectados num período de 70 dias, ocorreu todo entre a fase 3 e a fase 4, nesse período que o número de mortes e casos estão caindo em São Paulo. Na fase 3, quando deu 17, estavam morrendo por volta de 75 pessoas por dia. Agora, na fase 4, estão morrendo 13 pessoas por dia, mais ou menos. Durante essa queda, que é lenta etc., e que a gente fica animado porque caiu, mais de 700 mil pessoas foram infectadas em 70 dias.

José Roberto de Toledo: A epidemia continua menos letal, as pessoas menos preocupadas, você vê pela quantidade de pessoas em bares e restaurantes, mas ela continua à espreita.

Fernando Reinach: O interessante é que esse número é o dobro da estimativa da prefeitura, que é feita com esses testes rápidos. A prefeitura mediu os testes rápidos da ordem de 13%, e a gente tem 26%. A diferença agora ficou muito grande. Então, na verdade, o que esse número indica é que nós temos 26% de pessoas já contaminadas na hora em que a cidade entrou na fase verde.

E todas as medidas, por exemplo, se falar “vamos abrir escola, não vamos abrir escola”, imagina, com 13% de infectados não dá para abrir escola. É muito arriscado, só 13% estão infectados. Agora, você precisa decidir isso com 26%. Também é pequeno ou já dá para criar um pouco de coragem? Outra coisa que tem que ser pensada é que, se for só 10, 13%, provavelmente essa queda que nós estamos vendo em São Paulo, que é real e já vem acontecendo há vários meses, provavelmente é explicada porque a gente está usando máscara, fazendo distanciamento social. Quando esse número é 26%, alguma coisa desse tipo, é muito provável que uma parte dessa queda seja porque o vírus já está tendo mais dificuldade de se espalhar em São Paulo.

Além disso, esse número, se você pegar entre a metade da cidade mais pobre, esse número não é 26, é 30%. E na área mais pobre mesmo chega a 33%. Entre as pessoas que estudaram até o fundamental, ou seja, ou que não estudaram ou fizeram uma parte do fundamental, isso é 35% da cidade de São Paulo. Entre essas pessoas, a prevalência é 35,8%. É mais do que um em três. Aí se compara: até fundamental, 35,8. Ensino superior, 16. Entre os pretos e pardos, é 31%. Então, claramente, não só o pessoal que tem mais dinheiro, mas que tem mais ensino e é branco, está conseguindo se proteger melhor.

José Roberto de Toledo: Não pega transporte público, pode trabalhar em casa, pode ter teletrabalho, esse tipo de coisa – tem facilidades.

Fernando Reinach: Eu acho que, do ponto de vista do nosso estudo, isso mostra que a diferença que a gente vem detectando entre as pessoas mais ricas e as mais pobres ainda é muito grande. Ou seja, o vírus ainda não está conseguindo entrar nas áreas mais ricas da cidade.

José Roberto de Toledo: Na verdade, se você levar em conta as pessoas de nível superior, que é praticamente uma em cada quatro paulistanos, a grande maioria – 84% – é vulnerável ao vírus. Quer dizer, se vai sair no fim de semana para jantar, tome cuidado.

Fernando Reinach: Então, o que a gente vê é que realmente o vírus se espalhou muito mais na área mais pobre da cidade, ainda está se espalhando mais lentamente na área mais rica. Mas o número como um todo é muito alto. E você chegou a esse número durante o período de queda. As pessoas se iludem com a queda. Tudo bem, o número de casos por dia está caindo, mas ele é tão alto que eles vão somando. Entre a fase 3 e a fase 4, que foram 73 dias, caiu o tempo todo e, mesmo assim, a soroprevalência na cidade de São Paulo cresceu oito pontos percentuais, de 17,9 para 26,2.

José Roberto de Toledo: Se, nos últimos 73 dias, aumentou 46% a prevalência na cidade, vamos supor que essa taxa fique estável. Daqui a dois meses, ou 73 dias, dois meses e meio, você teria quase 38% da população adulta da cidade já com anticorpos para o Sars-CoV-2.

Fernando Reinach: Como está crescendo cada vez mais lentamente, não vai ser assim, não vai levar setenta, vai levar talvez cento e tantos dias. Então volta aquela mesma questão: qual vai ser o nível de soroprevalência em São Paulo quando a vacina estiver disponível? Talvez ela esteja disponível no começo do ano que vem, mas vai ser no primeiro semestre do ano que vem que vai mesmo começar a vacinação em massa. Com esses números altos na cidade de São Paulo, fica menos provável que a gente tenha uma segunda onda. Porque a gente está tendo uma primeira onda longa, com uma queda lenta.

José Roberto de Toledo: Qual você acha que é o futuro que nos aguarda na cidade de São Paulo? A gente pode ter uma segunda onda, já que entramos na fase verde, já que as pessoas voltaram a frequentar bares e restaurantes, agora até cinema está aberto. Só não abrem duas coisas em São Paulo: escola e parque aos sábados e domingos. Eu não consigo entender, porque você pode abrir cinema, que é um lugar fechado, com ar condicionado, mas deve ter alguma razão científica que eu desconheço.

Fernando Reinach: Eu também desconheço.

José Roberto de Toledo: Precisamos de um cientista político para entender.

Fernando Reinach: Acho que um economista. Eu acho que ninguém ganha dinheiro com o parque, então não tem pressão para abrir. Mas o que pode acontecer em São Paulo é difícil de saber. A questão agora é o que vai acontecer, pelo fato de a gente ter entrado na fase verde. Será que a gente vai ter um pequeno segundo pico ou esse primeiro pico vai se prolongar ainda mais? Se ele se prolongar ainda mais, onde é que a gente vai estar em termos de soroprevalência quando a vacina chegar? Se a gente tiver uma soroprevalência por volta de 40%, uma coisa assim, que indica que pelo menos 40% das pessoas foram infectadas, que é o que foi medido no Maranhão e em Manaus, existe o risco de São Paulo atingir alguma coisa parecida com imunidade de rebanho por falta de controle e não por uma política, mas sim por uma falta de política, que é o que eu chamo imunidade de rebanho por incompetência. Então é isso que vai estar em jogo nos próximos meses. 

Agora, para uma vacina funcionar, ela tem que levar a população a um nível de vacinação que iniba totalmente o espalhamento do vírus. Vamos supor que a imunidade de rebanho numa cidade qualquer seja 60%. E vamos supor que ninguém pegou, é uma cidade lá perdida no meio de não sei onde, na Antártica. Aí eu vacino todo mundo da cidade com uma vacina de 50%. Eu levo o número para 50%. Ainda vai ter transmissão e vai ter que continuar tomando cuidado. Por isso que as pessoas e os órgãos internacionais estão falando em no mínimo 50%. Uma vacina tem que ser no mínimo 50%. Porque aí você pega uma cidade como São Paulo que, vamos supor, tenha 50% das pessoas já contaminadas, quando você começa a vacinação, se você vacinar todo mundo da cidade, você só imunizou 25%.

José Roberto de Toledo: Ainda vamos falar muito sobre esse assunto, com várias vacinas saindo quase ao mesmo tempo, cada uma talvez com uma taxa de eficiência diferente da outra, vai gerar um monte de conflitos. Sobre começar a vacinar, esperar sair o resultado da segunda, da terceira, começar com a primeira…

Fernando Reinach: Vamos supor que eu seja o governador do estado de São Paulo ou o prefeito de São Paulo. E a primeira vacina que sai é 50%. E tem para eu comprar. Eu falo: “Bom, se eu comprar essa vacina e vacinar toda São Paulo, metade dos que ainda são suscetíveis eu vou conseguir tornar imune. Então será que eu devo fazer isso ou devo esperar mais um mês para ver o resultado da segunda vacina?” Se eu começar a vacinar agora com a vacina de 50% e um mês depois sair uma vacina de 85%, provavelmente eu fiz uma besteira enorme, eu devia ter esperado.

José Roberto de Toledo: Porque você não pode trocar de vacina no meio da vacinação, certo?

Fernando Reinach: Não existe estudo de interferência entre vacinas. Então será que eu posso dar a primeira dose de uma e a segunda dose da outra? Será que uma pessoa que tomou uma vacina logo em seguida pode tomar outra? Esses serão problemas. Agora, por exemplo, saiu uma vacina de 50%, eu fico esperando dois meses. Daí sai o resultado da outra, que não funciona. Sai a terceira e não funciona.

Então, mesmo que não tenha influência política, que não tenha briga política, a Anvisa funcione perfeitamente, todo mundo fazendo o trabalho como deve ser feito, não é uma decisão simples ir adiante com uma vacina só de 50%.

José Roberto de Toledo: Sem dúvida nenhuma. Agora, esse número que vocês descobriram, dos 26% de prevalência no estado de São Paulo, é fundamental para se tomar essa decisão.

Fernando Reinach: É uma estatística triste, mas quanto maior a porcentagem de pessoas já infectadas uma cidade tiver…

José Roberto de Toledo: Mais eficiente vai ser a vacinação.

Fernando Reinach: Ou você pode tolerar uma vacina pior.

José Roberto de Toledo: O que quero dizer é o seguinte: se a prefeitura levar em conta o número que ela encontrou, que é metade do que vocês encontraram, 13%, ela não começaria, talvez, a vacinação, esperaria uma segunda vacina mais eficiente. Agora, se já está em 26, podendo chegar a 40, talvez não precise.

Fernando Reinach: E aí é que vem o papel de uma investigação bem feita, se dá subsídios, em números reais, para as pessoas que têm que tomar a decisão. Não é o estudo que vai tomar decisão. Mas o estudo é um dado a mais para o prefeito, para as autoridades decidirem o que elas vão fazer.

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