Ilustração: Carvall
Pior que a dor do parto
Mulheres buscam na Justiça indenização contra violência obstétrica
Passava das 23h30 de 15 de abril de 2020 quando Claudineia Scors de Sene sentiu que não suportaria mais as dores. Fazia mais de nove horas que tinha dado entrada no Hospital Santa Tereza, em Guarapuava, interior do Paraná, em trabalho de parto. Nesse período, foi colocada em uma antessala, onde ficou sem alimentação e sem informações sobre seu estado. “Me abandonaram lá. Mal e mal veio uma enfermeira me ver, sempre ríspida”, disse a jovem. Só após implorar por medicação que lhe aliviasse a dor, uma enfermeira lhe aplicou uma injeção intravenosa. Claudineia relata que, àquela altura, estava à beira do desespero. Aos 17 anos, na época, ela era uma jovem miúda, de 1,49 metro de altura. A última ecografia tinha apontado que o bebê nasceria com mais de três quilos.
“No pré-natal, o médico tinha falado que a orientação era de cesárea, porque o bebê era muito grande e eu sou bem pequena. No dia [do parto], a enfermeira disse, bem estúpida, que não fariam [a cesárea], que era pra eu parar de mimimi”, contou. “Quando a enfermeira aplicou a injeção, eu perguntei o que era. Ela respondeu: ‘é um remédio que o médico não dá em qualquer situação’. Eu fiquei desesperada. Eu não sabia, mas a coisa ia piorar mais ainda”, acrescentou.
Em seguida, Sene sentiu a cabeça do bebê “coroando”, ou seja, começando a despontar para fora de sua vagina. A enfermeira, então, ordenou que a jovem fosse caminhando à sala de parto. “Ficava no fim do corredor, cinco quartos adiante. Fui com muita dificuldade, com as pernas meio abertas e aparando a cabecinha dele com a mão, porque estava com medo que ele nascesse, que caísse no chão”, relatou. Na sala, diz ter sido recebida pelo médico com “cara de sarcasmo”. Assim que ela se deitou, uma enfermeira começou a forçar sua barriga em direção à pelve – procedimento conhecido como manobra de Kristeller, contraindicada pela Organização Mundial da Saúde e proibida em muitos países, mas que ainda é aceita no Brasil, embora criticada por especialistas. Quando o bebê nasceu – às 00h40 de 16 de abril –, estava com a pele gelada e arroxeada.
“Ele [o médico] jogou meu filho em cima de mim e disse: ‘Toma o seu neném!’. Virou as costas e foi embora. Meu filho estava preto”, lembra Sene. Pouco depois, o recém-nascido foi levado e a mãe ficou sem notícias dele até as 5h30, quando foi informada que o bebê tinha sofrido uma parada cardiorrespiratória. Ele ficou internado por treze dias na UTI neonatal do hospital, até receber alta. Hoje – pouco mais de dois anos depois – Sene ainda sofre os efeitos psicológicos da violência. Tem crises de ansiedade e toma antidepressivos. Procurado pela piauí, o hospital não respondeu.
O caso dela se tornou uma das nove ações judiciais por violência obstétrica movidas pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), da Defensoria Pública do Estado (DPE-PR), contra hospitais onde ocorreram os partos. As ações cobram indenizações por dano moral e material. Todas as ocorrências têm como vítimas mulheres em situação de vulnerabilidade social, sem condições de arcar com os custos processuais. Os casos também serviram de base para a elaboração de um protocolo recém-lançado e que norteaia a atuação de defensores públicos do Paraná no atendimento a casos de violência obstétrica.
As ações ajuizadas pelo Nudem, da DPE-PR, fazem parte de um movimento pioneiro na esfera jurídica: abordar a violência obstétrica em uma perspectiva de violência de gênero, não como resultado de erro ou negligência médica, por exemplo. O Paraná tem desde 2018 uma lei estadual que define as circunstâncias que configuram violência obstétrica e prevê sanções na esfera cível – e que embasam as ações ajuizadas pela Defensoria. Outras unidades da federação, como Minas Gerais e Tocantins, também têm legislações próprias similares sobre o tema, que também listam as práticas que implicam em violência obstétrica, que vão desde o uso de termos depreciativos no atendimento a ignorar as demandas da mulher durante o parto.
“A lei estadual facilitou a atuação da Defensoria, porque positivou o conceito de violência obstétrica, trazendo as hipóteses em que ele se configura e especificando quais os direitos da gestante e parturiente. Considerando que existe uma resistência muito grande em se reconhecer a existência da violência obstétrica por conselhos de medicina e pelo próprio Ministério da Saúde, os desafios seriam ainda maiores”, disse a coordenadora do Nudem, Mariana Nunes.
A falta de uma lei nacional, no entanto, é um dos entraves ao enfrentamento do problema. Na Câmara dos Deputados, tramitam diversos projetos de lei sobre o tema, entre os quais o PL 8219/2017, de autoria de Francisco Floriano (DEM/RJ), que propõe pena de detenção de um a dois anos, além de multa, a profissionais que cometerem as violações. Sem legislação nacional, nos estados que não têm leis específicas sobre o tema, os casos têm chegado à justiça de forma mais pontual, equiparados a leis que prevêem outras responsabilidades, como negligência médica. A falta de uma tipificação específica no Código Penal também dificulta a responsabilização criminal dos profissionais.
“Nos estados que não têm leis específicas, o Ministério Público tem equiparado os casos a outras responsabilizações ou então se faz denúncia dos casos aos conselhos [de classe], que são corporativistas”, disse Tatiana Henriques, pesquisadora do grupo Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp-Fiocruz). “Ter a questão jurídica mais forte é um ponto determinante. Ter uma legislação federal que defina e proponha punição para os perpetradores. Hoje, na maioria dos casos, as mulheres saem com a percepção de que são injustiçadas, como, de fato, são. Isso aumenta a condição de fragilidade delas”, ressaltou.
Os processos acompanhados pela DPE-PR dão uma pequena dimensão do problema. Em 2021, a Ensp-Fiocruz divulgou resultados da pesquisa “Nascer no Brasil”, que apontou que 45% das mulheres atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS) foram vítimas de algum tipo de violência obstétrica. Na rede particular, o índice de violações cai para 30%. Considerado o maior e mais abrangente estudo sobre nascimentos já feito no país, a pesquisa entrevistou quase 24 mil mulheres que tinham dado à luz em 266 hospitais de 191 municípios, entre 2011 e 2012. Os dados atestam que, quando se fala em violência obstétrica, a vulnerabilidade social pode ser entendida como um fator de risco.
“Quando se fala em violência obstétrica, as mulheres pobres, adolescentes, negras, em situação de rua ou privadas de liberdade são as que mais sofrem”, definiu a coordenadora do Nudem, a defensora Mariana Nunes. “Recentemente, tivemos o caso de uma influenciadora digital [Shantal Verdelho], que sofreu violência obstétrica e denunciou na mídia. É uma mulher que tinha toda uma rede de apoio, estava em um hospital particular de elite e ainda assim sofreu violência. Se ela sofreu, a gente pode imaginar o que acontece com as mulheres em vulnerabilidade, em hospitais com estrutura mais precária, com equipes que muitas vezes não têm capacitação para atuar em uma perspectiva mais humanizada”, acrescentou.
“As questões sociais e de raça tornam a mulher mais vulnerável à violência obstétrica. As mulheres mais pobres e as negras são as que mais sofrem”, definiu a pesquisadora Tatiana Henriques. “Como outras violações, a violência obstétrica também parte de uma percepção sociocultural. Um exemplo é a episiotomia [corte no períneo]. Muitas mulheres com maior escolaridade, atendidas no sistema privado, entendem como violência obstétrica. Para as mulheres atendidas no SUS, isso tende a não estar tão claro. Pensam que o médico está ajudando”, exemplificou.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) a violência obstétrica se configura se ocorrer pelo menos um dos sete tipos de violações: abuso físico (como empurrões, beliscões e outras agressões), abuso sexual (quando, por exemplo, o toque da equipe médica tem conotação sexual), abuso verbal ou psicológico (xingamentos e/ou culpabilização da mulher), estigma ou descriminação (em razão de doenças, de questões raciais ou da condição socioeconômica da mulher), falhas na oferta do cuidado qualificado (adoção de práticas obsoletas e não recomendadas, como episiotomia e manobra de Kristeller), falha na comunicação (não informar à gestantes os procedimentos a que é submetida ou suprimir informações do prontuário) e inadequações do serviço de saúde (falta de condições estruturais do hospital).
Os casos acompanhados pela DPE-PR têm alguns pontos em comum. Em todos, foram relatados episódios de violência psicológica, com xingamentos ou tratamento culpabilizante da mulher. Em oito dos nove casos, os prontuários não continham o relato integral dos procedimentos feitos antes, durante e depois do parto, omitindo, por exemplo, a episiotomia e a manobra de Kristeller. Já a violência psicológica foi relatada em todos os processos. Em uma das ocorrências, houve morte da gestante e do bebê.
“A gente teve ainda o caso de uma adolescente submetida a uma episiotomia durante o parto, sem o consentimento dela. Ela sofreu laceração do períneo de grau 4 [a mais grave], com necessidade de reconstrução anal. O procedimento não constava do prontuário. Hoje, passado um ano, ela tem incontinência fecal e precisa usar fralda geriátrica”, exemplificou a coordenadora do Nudem, Mariana Nunes.
Práticas contraindicadas pela OMS e que contrariam evidências científicas, a episiotomia e a manobra de Kristeller estão no centro de um embate recente entre o governo de Jair Bolsonaro (PL) e especialistas em saúde feminina. Em maio, o Ministério da Saúde publicou a nova edição da Caderneta da Gestante, documento que traz orientações às grávidas e que pode ser usado como instrumento de acompanhamento durante a gestação, o parto e o pós-parto. O material permite ambos os procedimentos, mencionando que podem ser usados em alguns casos.
Profissionais, especialistas em saúde pública e entidades como o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) criticaram a menção às práticas e pediram ao Ministério que recolhesse e reescrevesse o material. “Tanto a episiotomia quanto a manobra de Kristeller tinham sido suprimidas de edições anteriores da Caderneta, por trazerem riscos à mulher e ao bebê e serem considerados obsoletos pela OMS. Agora, o Ministério [da Saúde] voltou a incluir esses procedimentos, inclusive dando possibilidade de o profissional marcar, ali, que os faz”, disse Tatiana. “Isso acaba endossando o uso desses procedimentos, o que é um retrocesso, que torna as mulheres mais suscetíveis à violência obstétrica na hora do parto”, opinou. Procurado pela piauí, o Ministério da Saúde não respondeu se promoveu as alterações sugeridas pelos especialistas e entidades, nem detalhou o posicionamento da pasta em relação à episiotomia e à manobra de Kristeller.
Não foi a primeira indisposição do Ministério com especialistas. Em 2019, a pasta publicou um ofício (nº 017/19) na tentativa de banir o termo “violência obstétrica” em documentos legais e em políticas públicas. Após recomendação do Ministério Público Federal (MPF), no entanto, o Ministério voltou atrás e publicou nota reconhecendo o direito legítimo das mulheres em utilizar a expressão para relatar casos de desrespeitos, abusos, maus-tratos e violências ocorridas na gestão, no parto ou em atendimentos posteriores.
Outro caso acompanhado pela DPE-PR é o da trabalhadora rural Maristela Ramos da Silva Lapczak, que hoje tem 41 anos. Quando ela deu entrada no Hospital de Caridade São Vicente de Paulo, em Guarapuava, em 4 de abril de 2020, aos 39 anos, sua gestação era considerada de risco. Com sangramento, ela recebeu uma medicação diretamente na veia, o que fez seu coração disparar. Àquela altura, a equipe médica não conseguiu auscultar os batimentos cardíacos da bebê. “Era dor, dor e dor. Eu pedi para fazerem a cesárea. Aí, disseram: ‘Se você pagar 7 mil [reais], a gente faz.’ Só depois que meu marido assinou os papéis (autorizando que o procedimento fosse cobrado pelo particular, embora eles tenham chegado ao hospital pelo SUS), eu fui levada para a sala de parto, roxa de dor”, relatou Maristela.
Apesar disso, a cesárea não foi feita. Segundo Maristela, a equipe forçou o parto natural, com a manobra de Kristeller. Após o procedimento, a bebê nasceu com o ombro direito deslocado e até hoje passa por fisioterapia. “Quando me levaram para a sala de parto, um enfermeiro gordinho entrou correndo, deixou um capacete na entrada e já pulou na minha barriga, enquanto outras enfermeiras me seguravam pelos braços e a cabeça. O médico enfiou a mão em mim e puxou minha filha, machucando o bracinho dela. Aí, ele jogou a bebê em cima de mim, ela com os olhos cheios de sangue. Foi horrível”, disse.
Apesar de a cesárea não ter sido feita, o hospital cobrou pelo procedimento. Maristela e o marido, que também é trabalhador rural, não conseguiram pagar e tiveram os nomes inscritos em um serviço de proteção ao crédito – e retirados do cadastro, posteriormente, por decisão judicial. Maristela, no entanto, só percebeu ter sido vítima de violência obstétrica mais adiante, ao ser atendida num posto de saúde. Ainda assim, ela custou a tomar a decisão de procurar a Defensoria Pública. “Só fui entender o que tinha acontecido depois, conversando com uma médica e enfermeiras do posto de saúde. No começo, eu não queria entrar com a ação. Tinha medo de alguém da minha família ficar doente e eles [do hospital] não quererem tratar de nós ou maltratar a gente. A gente, que é pobre, tem medo. Mas o absurdo era tão grande, que a gente não podia ficar sem fazer nada”, disse. Procurado, o hospital afirmou que não concorda com as alegações da paciente, que sua defesa está acompanhando o processo e que não se pronunciaria sobre o caso.
Assim como Maristela, muitas mulheres não têm a percepção imediata de que foram vítimas de uma violação e acabam sem denunciar o caso. Esse fenômeno foi bem captado pela “Nascer no Brasil”. Segundo Tatiana Henriques, mesmo tendo sofrido violações e/ou abusos, muitas das entrevistadas não entendiam aquilo como violência obstétrica. “Quando a gente perguntava se alguém gritou com ela, se berrou, bufou, revirou os olhos ou ameaçou, por exemplo, elas respondiam que sim. No final do questionário, quando perguntávamos se ela achava que tinha sofrido maus-tratos, elas respondiam que não, mesmo tendo relatado vários abusos”, contou Tatiana. “Muitas ainda tendem a ter uma falsa percepção do que é violência obstétrica ou de normalizá-la”, resumiu.
Outro exemplo se deu em Francisco Beltrão, município de 93 mil habitantes, no Oeste do Paraná. A partir de uma roda de conversas com entidades de defesa da mulher realizada na cidade, a DPE-PR recebeu denúncia por intermédio do deputado estadual Goura (PDT), de que pelo menos quinze mulheres teriam sofrido violência obstétrica em um hospital público. Apesar disso, nenhuma das vítimas quis formalizar denúncias. Por essa razão, a Defensoria Pública está coletando os depoimentos de forma sigilosa, para definir de que forma vai atuar. A ideia é partir de procedimentos administrativos – como recomendações ao hospital ou, recomendações ao Conselho Regional de Medicina (CRM) – e pensar em ações preventivas.
“É uma cidade pequena, em que todos ficam sabendo quem denunciou e onde o médico ainda é uma figura de autoridade. Elas têm medo de represálias, de perder o emprego, de não ter acesso à assistência de saúde… Esses fatores de vulnerabilidade e a questão da falta de percepção são barreiras no enfrentamento da violência obstétrica”, disse Mariana Nunes.
Mesmo ciente de que é o elo mais frágil da corrente, Claudineia Scors de Sene – citada no início da reportagem – está disposta a lutar pelos seus direitos até o fim. Desempregada e com o ensino fundamental incompleto, ela se apega ao seu próprio exemplo para tentar encorajar outras mulheres. “Uma amiga ganhou neném no mesmo hospital que eu e passou pelas mesmas humilhações. Eu disse para ela que a gente não pode deixar assim. Eu quero que se faça justiça, não só por mim, mas por muitas e muitas mulheres que passam por isso, que chegam a morrer ou a perder seus filhos por causa desse tratamento. Eu não desejo isso a ninguém. Não é porque a gente é pobre que tem que ser tratada como bicho. A gente tem direito a dar à luz como gente”, afirmou.
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