Coordenadora da equipe responsável pelo sequenciamento genético do Sars-CoV-2, Ester Sabino questiona a baixa presença feminina em postos-chave da pesquisa científica - Foto: Almir Robson Ferreira
“Precisamos de mais mulheres liderando a ciência”
Pesquisadora coordenou sequenciamento do novo coronavírus no Brasil
O sequenciamento genético do novo coronavírus no Brasil foi anunciado em 28 de fevereiro do ano passado, 48 horas após a confirmação do primeiro caso de infecção pelo Sars-CoV-2 no país. A rapidez e o fato de ter sido realizado por uma equipe comandada por mulheres deram ainda maior repercussão ao feito científico. Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP, que coordenou o estudo, e sua colega, Jaqueline Goes de Jesus, receberam reconhecimentos variados – batizaram até dois personagens de Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica.
Desde então, Sabino e seus colaboradores já publicaram três estudos na revista Science mostrando a trajetória do Sars-CoV-2 no país, o surgimento da variante P.1 em Manaus e sua maior transmissibilidade em relação à forma original do vírus. A seguir, a imunologista paulistana de 61 anos relata o trabalho que desenvolve em parceria com a Universidade de Oxford e defende a maior participação de mulheres em postos de comando científico no Brasil.
(Em depoimento a Lia Hama)
Quando o primeiro caso do novo coronavírus foi anunciado no Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, eu e minha equipe do Instituto de Medicina Tropical da USP já estávamos com tudo pronto para sequenciar o Sars-CoV-2. Sabíamos que era só questão de tempo para o vírus chegar por aqui, então já tínhamos ido atrás dos reagentes necessários para fazer o sequenciamento genético em laboratório. Também estávamos colaborando com o pessoal do Instituto Adolfo Lutz para sequenciar as amostras nasofaríngeas assim que o primeiro caso de contaminação fosse registrado em território nacional. Quando a amostra chegou, fomos lá e fizemos em conjunto o sequenciamento em 48 horas.
A necessidade de produzir conhecimento científico com rapidez, em resposta a uma epidemia em andamento, ficou evidente durante o surto de zika em 2015 e 2016. Na época, eu era diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP. Fizemos um esforço para participar de grandes estudos sobre o vírus por meio de parcerias internacionais. Foi quando conheci os pesquisadores das Universidades de Oxford e de Birmingham, com quem trabalho até hoje. Sequenciamos o vírus da zika e publicamos um artigo mostrando os caminhos que ele trilhou no país. O estudo foi capa da revista Nature, mas só ficou pronto dezoito meses após o fim da epidemia. Estava claro que precisávamos agilizar esse processo para o enfrentamento de futuras epidemias.
Criamos então um projeto chamado Cadde (Centro de Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), coordenado por mim e pelo Nuno Faria, pesquisador do Imperial College de Londres. Nós, brasileiros, somos financiados pela Fapesp, e os britânicos, pelo Medical Research Center. No começo de 2020, estávamos nos preparando para responder a uma possível epidemia de dengue quando fomos atropelados pela chegada do novo coronavírus. Mudamos então o foco do nosso trabalho, dada a urgência de estudar o novo patógeno.
No primeiro estudo que fizemos sobre o Sars-CoV-2, a partir do sequenciamento genético de 490 amostras do vírus de todo o Brasil, descrevemos como a epidemia começou no país e quais foram as linhagens que se estabeleceram por aqui. O trabalho foi publicado na revista Science em julho de 2020, enquanto a epidemia se alastrava em solo brasileiro. O segundo estudo foi feito a partir de bancos de sangue em Manaus e em São Paulo e apontou uma taxa de infecção na capital do Amazonas de mais de três quartos da população em outubro de 2020. O trabalho repercutiu bastante, as pessoas falaram muito sobre ele porque imaginava-se que naquele momento teria sido atingida a chamada imunidade de rebanho.
Não era esperada uma ressurgência tão alta de casos como a que aconteceu em dezembro. Minha hipótese era que, para isso acontecer, era preciso ter surgido uma outra linhagem que fosse resistente aos anticorpos que agem contra a forma original do Sars-CoV-2. Com o apoio de laboratórios privados de Manaus, fizemos as sequências genéticas de uma série temporal de amostras e detectamos que a variante P.1 surgiu em meados de novembro de 2020 e é de 1,7 a 2,4 vezes mais transmissível que a original. Esse foi o trabalho publicado no último dia 14 de abril na revista Science. No momento, estamos trabalhando para medir qual é a taxa de reinfecção pelo vírus. Queremos entender o que faz com que algumas pessoas se reinfectem, mesmo as que foram vacinadas.
A ciência é feita de pequenos pedaços: uma informação se junta com outra e mais outra, para então tomarmos decisões. O sequenciamento genético do novo coronavírus serve para dar ferramentas, por exemplo, para quem vai desenvolver uma vacina. O cientista pega as mais de 1,2 milhão de sequências depositadas no banco de dados internacional Gisaid (https://www.gisaid.org) para identificar quais são as mais comuns. É possível que em breve seja necessário, por exemplo, atualizar as vacinas já existentes caso elas não se mostrem eficazes para as novas variantes.
Torço para que mais mulheres sejam reconhecidas por seu papel na ciência e que ocupem cada vez mais cargos de liderança nessa área. No mês passado, eu e a profa. Eloísa Bonfá, diretora clínica do Hospital das Clínicas de São Paulo, fomos condecoradas com a medalha Armando Salles de Oliveira, da USP, pelas nossas ações contra a Covid-19. Na ocasião, notei que, das doze medalhas anteriores, apenas uma mulher havia sido condecorada. Será que a contribuição das mulheres foi tão menor assim? As mulheres representam 37% dos docentes da USP.
Por que há tão poucas mulheres nos conselhos das agências de amparo à pesquisa? Por que há tão poucas mulheres que assessoram a tomada de decisões de governantes sobre saúde pública? Por que a maioria dos palestrantes nos congressos são homens? Todo mundo se lembra de Oswaldo Cruz e de seu papel no combate a epidemias como a febre amarela. Hospitais e institutos de pesquisa pelo país foram batizados com o nome dele. Mas quem se lembra de Lair Guerra e seu papel no combate à Aids no Brasil? Se hoje temos um programa exemplar nessa área, o Programa Nacional de Combate à Aids, uma referência para o resto do mundo, foi graças ao trabalho dela nos anos 1980. Espero que o mesmo tipo de reconhecimento que estou recebendo agora pelo meu trabalho possa ser dado a tantas outras pesquisadoras pelo país e que o legado de mulheres como Lair jamais caiam em esquecimento. Avançar é preciso.
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