Vidraça estraçalhada após invasão. Foto: Gabriela Biló | FolhaPress
Quem pagará pelo Capitólio à brasileira?
Responsabilização pelo 8 de janeiro de 2023 precisa ir além dos soldados rasos do bolsonarismo
Desde o 6 de janeiro de 2021, nós brasileiros nos perguntávamos quando ocorreria a nossa versão da invasão do Capitólio, pois todos os ingredientes principais que levaram ao vandalismo golpista por lá estavam também presentes aqui: uma turba de fanáticos operando no limiar da dissonância cognitiva, disposta à prática dos mais graves crimes em nome das causas defendidas; um conjunto de lideranças políticas dispostas a instrumentalizar a fúria violenta desses fanáticos em seu próprio benefício; e, por fim, um desprezo compartilhado, pela turba e por quem os lidera, pelos ritos e pelas convenções mais básicas de uma democracia civilizada, como a aceitação de derrotas eleitorais e o não recurso à violência como arma política. Demoramos exatos dois anos e dois dias para chegar lá.
Evidentemente, há particularidades no caso brasileiro. A começar pela magnitude dos danos materiais, muito maiores no Brasil, inclusive porque três prédios foram atacados pelos criminosos. Por outro lado, se nos Estados Unidos houve mortes de policiais e invasores, mas no Brasil não, isso se deve ao fato de que os agentes da lei, por lá, tentaram impedir a ação dos trumpistas. Já os daqui oscilaram entre a escolta, o apoio moral e a confraternização com os criminosos bolsonaristas, o que certamente os assanhou para a destruição desinibida de todo o patrimônio público, material e simbólico, que viram pela frente. Fosse um exército inimigo ocupando a Praça dos Três Poderes, o estrago talvez tivesse sido menor.
A leniência da Polícia Militar do Distrito Federal com os vândalos é obviamente um produto do clima mais amplo de lealdade à extrema direita golpista que permeia as ações de diversas autoridades políticas no Brasil atual. Ela não foi obra de decisão desastrada ou incompetente apenas do comando policial da capital federal. É impossível não interpretar a decisão do governador Ibaneis Rocha (MDB-DF) de entregar a Secretaria de Segurança Pública do DF a Anderson Torres, figura que se notabilizou pela fidelidade canina, inclusive na delinquência política, a Jair Bolsonaro, como uma solene transmissão das forças policiais da capital federal ao bolsonarismo radical. Todo e qualquer extremista entendeu a piscadinha que Ibaneis lhes deu.
Outra piscadela foi dada pela PGR de Augusto Aras, titular de qualquer seleção da impunidade, à delinquência política bolsonarista. A todo seu histórico estático, a PGR recentemente acrescentou a objeção a que os criminosos temporariamente detidos pelos atos violentos de dezembro de 2022 na mesma cidade tivessem suas prisões convertidas para a modalidade cautelar, na qual não há prazo máximo pré-determinado para sua duração. Há poucos dias, mesmo diante das repetidas convocações em grupos bolsonaristas para uma caravana de extremistas a Brasília, a PGR entendeu que as mesmas pessoas que atearam fogo em ônibus com o motorista dentro não ofereciam risco algum e deveriam ser soltas. Alexandre de Moraes entendeu de modo diverso e manteve-os presos, mas a mensagem de uma PGR amiga do terrorismo político já estava dada.
Os criminosos também encontraram incentivos através da tolerância de seus acampamentos golpistas pelas Forças Armadas. Militares brasileiros permitem, há meses, que pessoas montem barracas, acendam churrasqueiras e estendam cangas e cadeiras de sol em áreas de segurança onde normalmente não é permitido estacionar um carro, com o pisca-alerta ligado, por dois minutos. Nem o trumpista mais radical sonharia em tentar fazer um grill nas calçadas do Pentágono. Isso para não mencionar a cantilena do artigo 142 da Constituição, que supostamente ampararia uma intervenção militar que só existe na imaginação dos nossos golpistas, estimulada por gente como General Heleno e um ou outro dito “jurista”. No mundo à parte em que vivem aquelas pessoas, o tumulto generalizado e a paralisia do governo, intentadas ontem, levariam as Forças Armadas à tão sonhada “intervenção militar constitucional” – que, nunca é demais repisar, não existe. Mas o direito e a Constituição, mesmo quando mal interpretados, legitimam ações na esfera política. Quem alimentou, com a ração do artigo 142, a besta que foi à forra no dia de ontem contribuiu para que os criminosos se sentissem autorizados a agir daquela forma. As Forças Armadas, e os “juristas” que comem em suas mãos, também têm sua parcela de responsabilidade pela barbárie do 8 de janeiro.
Finalmente, há responsabilidade também por parte de Jair Bolsonaro, que, ao contrário de Donald Trump, não precisou emitir comandos explícitos convocando à selvageria golpista. A insurreição bolsonarista já está em modo cruzeiro há muito tempo, e não carece mais de comandos particularizados a cada instante. As peças do quebra-cabeças, e a paisagem geral que elas devem formar ao final, foram todas repetida e didaticamente propagandeadas por Bolsonaro e por seu entorno em seus quatro anos de governo: a motivação moral da “liberdade”, que se sobrepõe aos limites dos ritos, das leis e da humanidade alheia; o sebastianismo militarista, que crê na intervenção triunfal das Forças Armadas em meio ao caos social deliberadamente produzido; a vilanização das instituições, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, que precisam ser enquadradas para não serem destruídas, como foram ontem; a validação da violência e da força bruta, tanto retórica quanto física, pela simbologia das armas, das batalhas, das lutas e do sacrifício último para não perder a tal “liberdade”, que só parece existir sob a ditadura militar; a não aceitação do novo governo, simbolizada pela fuga indigna da cerimônia de passagem da faixa.
Bolsonaro atingiu o suprassumo da delinquência política: amealhou um séquito de executores (para ele) anônimos, dispostos a praticar os crimes políticos que lhe interessam, os quais comanda pelo silêncio calculado, pelo repúdio insincero, pelo gestual bem entendido, mas economizando nas palavras que possam caracterizar a inequívoca incitação direta. Como fazem os chefes mafiosos. Ou há alguém que sinceramente duvide que ele sonha com quatro anos de um país inoperante, conflagrado, inadministrável e sob permanente caos, tal qual ensaiado ontem? Por muito, muito menos do que Bolsonaro tem feito, lideranças petistas cumpriram anos de cadeia por terem “domínio do fato” em relação aos crimes operados por Marcos Valério, condenadas pelo mesmo STF que os bolsonaristas agora querem destruir.
Sob o prisma da responsabilização pelos crimes do 8 de janeiro de 2023, a grande dúvida que existe é se pagarão as penas da lei apenas os soldados rasos do extremismo bolsonarista, que em sua mistura de ignorância, delírio e golpismo, praticaram diversos crimes graves à luz do dia, e ainda produziram provas de sua delinquência com fotos, vídeos, mensagens e postagens que certamente serão utilizados para processá-los e condená-los; ou se, finalmente, figuras mais graúdas dessa ordem política paralela que confortavelmente se instalou no Brasil, onde políticos, militares, policiais, e empresários financiadores trabalham para sabotar a democracia do país, serão enfim chamados a responder por sua parcela de culpa nesse triste complô, de desfecho ao mesmo tempo chocante e previsível.
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