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    Arthur Lira: presidente da Câmara usa defesa do semipresidencialismo para assegurar, em caráter permanente, protagonismo político da Casa - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

questões político-jurídicas

Semipresidencialismo, a nova cartada de Lira

Presidente da Câmara move-se para defender seu principado político contra o Senado e contra o próximo presidente da República

Rafael Mafei | 23 mar 2022_13h20
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Em meados do mês passado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou a criação de uma “comissão de juristas” para sugerir a reforma da lei do impeachment. Pacheco e o outro prócer da iniciativa, o ministro Ricardo Lewandowski, líder do colegiado que deve encerrar seus trabalhos em até 180 dias, já vinham anunciando seus incômodos com a lei 1.079 de 1950, que define os crimes e regula o processo para remoção de um presidente da República. Mas a real motivação para a iniciativa bem poderia ser outra: reagir ao recente protagonismo que a Câmara dos Deputados e seu presidente adquiriram não apenas no processo de impeachment, mas nos assuntos de governo como um todo. A iniciativa de Pacheco e Lewandowski miraria na Lei do Impeachment, mas buscaria na verdade acertar outro alvo: Arthur Lira (PP-AL). Na semana passada, publiquei aqui mesmo um texto expondo essa leitura.

Há poucos dias, e para confirmar o que realmente está em jogo, veio a resposta de Lira: o presidente da Câmara anunciou a instalação de um “grupo de trabalho”, de natureza apenas consultiva, mas com nomes de peso, para estudar a implementação do semipresidencialismo no Brasil. O grupo, cheio de professores da USP, é presidido pelo ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e ex-ministro da Justiça Nelson Jobim, e conta também com a ex-ministra do STF Ellen Gracie. O ministro Gilmar Mendes, defensor de longa data do semipresidencialismo, não faz parte do time, mas tem um provável longa manus por lá: seu advogado pessoal, Rodrigo Mudrovitsch. Nove deputadas e deputados, que vão do Novo ao PCdoB, completam a equipe. Um deles é Samuel Moreira (PSDB-SP), autor da PEC que o presidente da Câmara vem recentemente adubando e regando com carinho.

O que é o semipresidencialismo, e por que ele encanta Lira neste momento? O semipresidencialismo é um sistema de governo que fica no meio do caminho entre o presidencialismo, onde a chefia de governo fica com o Executivo, e o parlamentarismo, onde ela fica com um gabinete parlamentar presidido por um primeiro-ministro escolhido pelo parlamento. Não é coisa esdrúxula, pois há outros países que conjugam presidentes com primeiros-ministros. A questão toda está em saber onde se traça a risca que demarca as atribuições de um e de outro, de modo que o presidente da República não se converta em uma versão desprestigiada de uma rainha da Inglaterra, mas sem a aura e o prestígio de uma monarquia milenar.

No desenho que Lira patrocina, a figura do presidente continuaria existindo, mas perderia todas as funções de governo para um primeiro-ministro escolhido pelo Congresso, (normalmente) entre seus próprios membros. Ao presidente da República caberia apenas indicar o nome do primeiro-ministro a ser aprovado pelo parlamento, após consulta aos partidos de quem dependeria a aprovação do nome indicado.

Está em jogo, portanto, quem controlará e comandará toda a administração federal: quem conceberá e executará o programa do governo, quem escolherá e mandará embora os ministros de Estado, quem apontará o comando do Banco Central e o advogado-geral da União, quem expedirá decretos – enfim, quem será, no dia a dia da administração, o político mais poderoso do Brasil. Lira propõe que essa figura seja escolhida não mais pelo povo através do voto direto, mas pelo Congresso, onde gente como ele tem poder como poucos, e o grosso da população mal acompanha o que acontece. 

A ameaça de semipresidencialismo é a arma com a qual Lira pretende assegurar, em caráter permanente, o protagonismo político que a Câmara amealhou em face de Bolsonaro, cuja mediocridade permitiu que o Centrão assumisse o controle da máquina federal como quem toma pirulito de criança. Bolsonaro, que não tem interesse ou paciência para a chatice que é administrar um país, e ameaçado por um estoque de denúncias de impeachment que Lira guarda para emparedá-lo, jamais esboçou reação. Quem tinha medo de que a Presidência da República fosse diminuída por um novo impeachment agora a vê apequenada pela manutenção de um presidente que vive acuado, sem interesse e sem força para reagir à pilhagem contínua da autoridade de seu cargo.

 

No mercado financeiro, chama-se de hedge a proteção que um investidor faz contra a possível desvalorização futura de um ativo que ele detém. O semipresidencialismo é o hedge de Lira e do Centrão da Câmara contra a provável chegada de um próximo presidente que venha fortalecido, e que não estará em posição, nem terá disposição, de ser tão achacado quanto Bolsonaro continuamente o é. O ex-presidente Lula, que lidera as pesquisas, vem dando sinais inequívocos de que pretende recuperar o protagonismo da Presidência da República na condução do governo. Como a possibilidade de vitória de Lula é real, o deputado alagoano corre para passar a escritura do principado político que ele e seu grupo conquistaram até aqui. 

Em caso de aprovação do semipresidencialismo, quem ganharia e quem perderia? Dentro do Congresso Nacional, sem dúvida ganharia a Câmara, de Lira, e perderia o Senado, de Pacheco. Isso porque, na proposta que Lira patrocina, o primeiro-ministro seria escolhido por votação unicameral do Congresso, reunidos Câmara e Senado. Na ponta do lápis, Lira, que comanda uma casa com 513 cabeças, teria influência sobre seis vezes mais votos que Pacheco, que preside apenas 81 senadores. Em suma, o nome do chefe de toda a administração pública federal seria decidido pela Câmara, onde o Centrão está hoje muito bem posicionado.

A presidência da República, obviamente, perderia também. As tarefas mais vistosas, mais volumosas e mais relevantes do Poder Executivo – tocar a máquina federal – seriam extirpadas do ocupante do cargo, a quem sobrariam funções principalmente simbólicas e representativas. Mesmo as atribuições importantes que restassem ao presidente da República, como nomear ministros ao STF, dependeriam do aval de uma das casas do Congresso, que levariam vantagem ao barganhar com uma presidência enfraquecida. Desprovido dos instrumentos políticos para arregimentar apoios e alianças, como a alocação de cargos e recursos, viraria figura muito menor do que é hoje.

Embora os defensores do semipresidencialismo prometam que a mudança, se aprovada, passaria a valer apenas a partir de 2026 ou 2030, a depreciação da autoridade da Presidência da República ocorreria de imediato. O jogo de poder no Congresso passaria, ao menos em parte, por uma estratégia visando ao melhor posicionamento de lideranças e partidos para o novo sistema de governo, em quatro ou oito anos. A Presidência da República seria como um carro vistoso que roda com pompa, mas que todo mundo sabe que já saiu de linha. O mandato que se iniciaria em 2022 se transformaria na missa de corpo presente de uma instituição defunta, em prejuízo óbvio de seu ocupante. Nesse clima, não seria nada difícil que uma PEC subsequente, antecipando os efeitos da mudança prometida para 2030, viesse a ser aprovada.

 

Arthur Lira evidentemente não confessa a mesquinhez de suas motivações. Em sua boca, as virtudes do semipresidencialismo são as mesmas apontadas por seus defensores históricos e genuínos: o presidencialismo, dizem, é instável e propenso a crises; já o semipresidencialismo, como também o parlamentarismo, propiciaria mecanismos mais ágeis e menos traumáticos de superar grandes impasses que, no presidencialismo, acabam ora em impeachments, ora em derrubadas de presidentes à força.

Não há problema em debater mudanças no sistema de governo, e o semipresidencialismo merece ser considerado. Mas, mesmo que bem intencionada e meritória, a proposta esbarra em um obstáculo relevante: historicamente, o brasileiro não quer perder o direito de eleger diretamente quem o governa. Simples assim. Nas duas vezes em que o povo foi consultado a esse respeito, no referendo de 1963, durante a presidência de João Goulart, e no plebiscito de 1993, no governo Itamar Franco, o sistema de governo presidencialista bateu seus concorrentes. Vale destacar que em ambas as situações instabilidades políticas estavam à espreita: no governo Jango, o clima de agitação social e o cheiro do golpe finalmente consumado em 1964 foram onipresentes; e no governo Itamar, o plebiscito se deu ainda na ressaca do impeachment, que ocorrera quatro meses antes. É de se duvidar que desta vez, se ouvido, o povo abriria mão de escolher quem o governa para deixar que a turma de Lira o fizesse. Talvez por isso o presidente da Câmara nem cogite uma consulta direta à população, que para muitos juristas é obrigatória em se tratando de mudança de sistema de governo.

Ainda que sob a melhor das luzes, que é a busca de um sistema de governo mais estável, o movimento transborda cinismo quando encampado por Arthur Lira. No ano passado, o presidente da Câmara trabalhou o quanto pôde para desfazer os ganhos da reforma política de 2017, que visava a reduzir a fragmentação política no Congresso. Não fosse pela resistência do Senado, as coligações para eleições ao Legislativo teriam sido ressuscitadas pela Câmara, sob a batuta decisiva de Lira. Aliada à falta de cláusula de desempenho, as coligações em eleições proporcionais permitem a sobrevida de pequenos partidos, obrigando o Executivo a negociar no varejo, principalmente na Câmara, cada voto necessário à aprovação de suas iniciativas. Contribuem decisivamente para a instabilidade de governo que Lira agora diz querer resolver.

A barganha no varejo de um Legislativo pulverizado é custosa e difícil nos momentos de crise, quando governos têm de se proteger contra investidas que podem derrubá-lo. Isso vale tanto no presidencialismo, quando há ameaça de impeachment, quanto no parlamentarismo, quando há ameaça de moção de desconfiança. Na época do impeachment de Dilma Rousseff, havia dez partidos na Câmara com bancadas de menos de dez deputados, somando 45 cadeiras; os menores entre esses, com meia dúzia de parlamentares ou menos, somavam trinta votos. Pode parecer pouco, mas a aprovação da denúncia contra Dilma se deu com folga de apenas 25 votos. Não é difícil imaginar em que termos, e a que custos, a barganha por apoio terá ocorrido nas vésperas da votação com os senhores dessas pequenas legendas. Da porta da Câmara para dentro, a dinâmica seria exatamente a mesma se fosse um primeiro-ministro buscando manter-se no cargo. Tornar esse processo mais rotineiro só favoreceria os grandes caciques do Centrão, que fariam bons negócios tanto na ascensão de novos primeiros-ministros quanto em sua troca por quem viesse a substituí-los na primeira crise que eles próprios poderiam ajudar a construir.

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