Mais que um brinco de ouro
A saga do torcedor do Guarani que vestiu a camisa 9, foi para o campo e virou ídolo
Fábio Fujita | Edição 24, Setembro 2008
Pouca gente deu bola quando o locutor do estádio Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas, anunciou que o sócio-torcedor Henrique de Jesus Bernardo acabava de ser sorteado para ganhar uma camisa oficial do Guarani. Era o intervalo do jogo entre o time da casa e o São Paulo, pela 16ª rodada do Campeonato Paulista. Ainda que não soubesse que a sorte lhe sorrira, o contemplado não corria risco que o prêmio fosse confiscado por um eventual problema de inadimplência – suas mensalidades de 30 reais estavam impecavelmente em dia, o que não é pouca coisa num universo de apenas 2,4 mil sócios-torcedores, dos quais 40% não cumprem com os compromissos. Se não ouvira seu nome no sistema de som, é que o torcedor sorteado não estava nas arquibancadas, mas no vestiário, com o resto do elenco, levando bronca do técnico Jair Picerni. Foi um assessor do clube quem avisou Henrique, o atacante titular do Guarani, que ele havia faturado no sorteio uma camisa idêntica a que já estava vestindo.
Henrique era bem pequeno quando foi pela primeira vez ao Brinco de Ouro. Entrou no estádio levado pela mão esquerda do avô, o grande torcedor da família, que contou e repetiu tantas vezes a epopéia da inesquecível decisão de 1978, contra o Palmeiras, que o menino se sentia testemunha ocular da glória de ser campeão brasileiro – embora viesse ao mundo anos depois. A influência do avô não passaria em branco: Henrique se tornou um fanático bugrino numa época em que, ao contrário de colecionar taças, o Guarani sofreu rebaixamentos em cascata.
O avô sorriu de felicidade quando, aos 8 anos, Henrique entrou para as categorias de base do Guarani. Um ano depois, para tristeza de todos, a diretoria resolveu desmontar a equipe Dente-de-leite. Foi um baque. A diáspora produziu o horror: o menino foi obrigado a bater na porta do time rival, a Ponte Preta. O avô suspirou fundo e se conformou. Torcia antes de tudo pelo neto. Mas futebol tem dessas coisas, e a camisa alvinegra da Ponte parecia não combinar mesmo com Henrique. Ou vice-versa. Por mais que fizesse bons treinos, não era aproveitado. Depois de três anos sendo preterido, cansou. Juntou seus meiões encardidos numa trouxa e partiu para o Campinas Futebol Clube, o caçula do futebol campineiro.
Na nova casa, não demorou a se destacar. Com catorze gols, foi artilheiro do Campeonato Paulista de Juniores de 2006. Quando não treinava, tomava o caminho de outro estádio, o do seu coração. Henrique era figurinha fácil nas arquibancadas do Brinco de Ouro. Ele esteve na partida em que o Bugre sapecou 2 a 1 no São José, e voltou à primeira divisão. Não podia supor que se tornaria o próprio Messias da futura campanha.
Na manhã de 7 de março de 2007, o telefone tocou. Era um representante do Guarani, avisando que o clube estava pronto para recebê-lo de volta. Horas depois, Henrique assinou o primeiro contrato como atleta profissional. Pouco importava que seu ordenado fosse de 500 reais. Importava, sim, realizar o sonho do avô. Depois de uma longa jornada, era, afinal, um jogador do Bugre.
Na tarde do mesmo dia, Henrique se trocava no vestiário depois de realizar o primeiro treino como assalariado. Ouviu um toque de telefone. Era o celular. Atendeu. Do outro lado, veio a notícia: o avô acabara de morrer. Não resistira a complicações cardíacas. “Tenho certeza que ele só esperou eu acertar o contrato…”, diz o jogador.
Triste, Henrique começou o Campeonato Paulista desse ano como mero coadjuvante. Vivia no banco. Pior do que ele, só o time, que passou boa parte do início da temporada na zona de rebaixamento. O técnico foi mandado embora, e seu substituto, Jair Picerni, resolveu apostar em Henrique. No dia 9 de março, o Guarani entrou em campo para jogar contra o Mirassol. Ocupava a vergonhosa posição de último da tabela. Perderia por 3 a 1, mas os mais proféticos viram ali um pequeno milagre. Aos dezenove minutos do segundo tempo, Henrique finalmente entrou em campo. Catorze minutos depois, marcou seu primeiro gol, comemorado como uma catarse. O Bugre rompia um jejum de 6 horas e 23 minutos sem marcar tentos. Era o início da reviravolta.
Nas seis partidas seguintes, Henrique marcaria sete gols. “Ele entrou com uma estrela absurda, com todas as bênçãos”, delira o torcedor Nelson Rizzi Júnior, com a propriedade de quem considera “quase obrigação” acompanhar os jogos do Guarani num raio de até mil quilômetros de Campinas. Na última rodada, uma partida de vida e morte que definiria a permanência do time na primeira divisão, foi Henrique que abriu o placar da vitória por 2 a 0 sobre o Rio Preto. “Deveriam erguer um busto para ele na entrada do Brinco”, sugere Rizzi.
Busto não houve, mas aumento de salário, sim. Temerosa do assédio de Palmeiras, Santos e Atlético Paranaense, a diretoria passou o salário do jovem para 15 mil reais, e ainda impôs uma multa rescisória no valor de 18 milhões. Quando perguntam ao garoto de 21 anos, com espinhas no rosto, sobre a possibilidade de um dia ter que trocar de camisa, a reposta de praxe – “sou um profissional”- vem pronta. O que não o impede de deixar escapar: “O problema é que sou atacante, e aí teria que fazer gol contra o Guarani…” Quando isso vier a ocorrer, Henrique estará vivendo seu drama hamletiano.
Se pudesse escolher entre ficar com Henrique ou com o Brinco de Ouro – colocado à venda pela diretoria para saldar dívidas – grande parte dos torcedores não hesitaria em optar pelo filho pródigo. Pródigo e sortudo. Ficou para dona Renata, mãe do ídolo, a camisa do Guarani que o filho faturou no sorteio do jogo contra o São Paulo, e que Henrique foi retirar na segunda-feira seguinte, empunhando o comprovante da última quitação.
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