Diceros bicornis
Minha ressaca por um rinoceronte
Donos de chifres com a reputação de curar todo tipo de mal, paquidermes caminham rumo à extinção
| Edição 66, Março 2012
O rinoceronte negro ocidental foi extinto, manchetaram em novembro passado os jornais (que, dizem alguns, logo mais também serão extintos, mas isso fica para outra despedida). A subespécie não é vista há cinco anos no centro-leste africano, segundo a IUCN – sigla em inglês da União Internacional para Conservação da Natureza, organização que monitora animais e plantas ameaçados e atesta o óbito genético das espécies.
É um massacre em processo. Dos mais de cem mil rinocerontes negros que zanzavam pelo continente africano no século XIX, só restam algumas centenas (para não falar em outras espécies do paquiderme, igualmente em perigo). Na classificação da IUCN, todas as subespécies de estão em “risco crítico”. Uma delas, a javanesa, já havia sido declarada extinta do Vietnã em outubro de 2011.
Seguir o dinheiro é o jeito mais fácil de entender o apocalipse paquidérmico. O tráfico internacional de animais selvagens é o terceiro maior negócio ilegal do mundo, depois do comércio de drogas e armas. “A demanda por rinocerontes cresceu com a prosperidade asiática”, disse o escritor conservacionista Simon Barnes, patrono da organização Save the Rhinos. “Vivemos o boom das caçadas desses animais.”
Os vietnamitas são apontados como os principais responsáveis pelo declínio populacional dos rinocerontes. Para muitos deles, o pó feito com o chifre desse animal triturado é visto como uma fórmula mágica para a cura do câncer e de outros males. “A frívola crença no Vietnã é que o chifre cura ressaca”, exasperou-se Barnes.
Ao contrário dos chifres de outros mamíferos, os de rinoceronte não são feitos de osso, mas de queratina – proteína que é também o principal componente de cabelo e unhas. Uma porção de pó de chifre pesando entre 90 g e 500 g é misturada à água fervente e sorvida como chá. Mesmo em hospitais sérios de Hanói, enfermeiros sussurram a pacientes terminais como obter a substância, vendida nos mercados de rua. Não é difícil comprar pela internet. Um quilo de chifre fresco custa até 65 mil dólares – o que faz dele um produto mais valioso que ouro, platina ou cocaína.
De acordo com o venerável Li Shi Chen, farmacêutico chinês do século XVI, na medicina tradicional chinesa, praticada também no Vietnã e em outros países do sudeste asiático, o pó de chifre era usado para tratar reumatismo, gota, picada de cobra, alucinações, febre tifoide, possessão demoníaca – e dor de cabeça. Mas não era prescrito pelos sábios chineses como afrodisíaco, ao contrário do que se diz no Ocidente.
Houve quem visse num estudo de 1990 da Universidade Chinesa de Hong Kong a chancela científica para o uso da substância para curar a ressaca. Os pesquisadores atestaram que altas doses de extrato de chifre de rinoceronte diminuíam a febre em ratos. Só que a concentração de chifre prescrita pelas tradicionais bulas chinesas era muito menor que a usada no estudo – o beberrão arrependido precisaria roer muita unha para obter uma proporção de queratina equivalente à capaz de aliviar os ratos.
bstêmio, o longipes – nome científico do extinto rinoceronte negro ocidental – teve seu último lar nas vastas savanas do norte de Camarões. Habitante do centro da África, recentemente havia desaparecido também da Tanzânia e da Zâmbia. A subespécie ocidental era a mais comprida dentre todos os rinocerontes negros: atingia quatro metros de extensão e 1,70 metro de altura. Seus afiados chifres, os mais compridos da espécie, chegavam a 70 cm e 1,5 metro. Usava-os para se defender – e só se ameaçado. Acuado, era ferocíssimo.
Apesar de, como o albino Hermeto, não enxergar muito bem, o rinoceronte negro ocidental era dotado de excelentes olfato e audição, dava piques de 50 km/h e tinha grande capacidade de desviar bruscamente sua trajetória – daí ser considerado o mais devastador dos rinocerontes. Não era, contudo, carnívoro como seus parentes mais próximos: suas duas toneladas eram cultivadas apenas com arbustos e grama.
Comunicativo, emitia cerca de dez sons diferentes. Um deles era um canto agudo para chamar a fêmea; outro, um barrido grave, podia ser ouvido a dez quilômetros e servia para espantar outros machos. Folgado, demandava de três a 130 km2 para viver. Os machos marchavam a vida toda solitários – até que rolasse um clima com uma rinoceronta. Elas só tinham uma cria, a gestação levava um ano e quatro meses e o bebê era amamentado até os dois anos. Se não topasse com um vietnamita pela frente, um longipes podia viver até 50 anos.
e as outras subespécies de rinoceronte negro se extinguirem, esse animal sobreviverá somente na arte, como metáfora de algo impossível. Walton Ford, célebre pelos retratos ultrarrealistas de animais, figurou um episódio inusitado em A Perda do Rinoceronte Português, tela de 3,5 metros de largura. Em 1515, um paquiderme foi capturado perto de Goa e embarcado para Lisboa, onde foi retratado por um artista e novamente embarcado para ser presenteado pelo rei Manuel I ao papa Leão X. Porém, o navio naufragou no Mediterrâneo e o malfadado cascudo jamais chegou ao Vaticano. O esboço feito pelo artista português foi usado pelo alemão Albrecht Dürer para criar uma de suas gravuras mais famosas, que circulou por 300 anos como o retrato oficial do bicho.
No entanto, lembrou Ford numa entrevista à Whitehot Magazine, “o animal, apesar de lindamente desenhado, parecia mais um crustáceo”, por conta de bizarras couraças e um falso terceiro chifre. Em sua obra, Ford capturou-o no instante da metamorfose, “quando o paquiderme sai da realidade para virar um ícone: está morrendo, se transformando no rinoceronte de Dürer. É um comentário sobre como impomos a cultura ao mundo natural”, acrescentou.
O rinoceronte sobreviverá também graças ao dramaturgo romeno Eugène Ionesco. Na comédia central do teatro do absurdo, as pessoas viravam paquidermes – metáfora para os totalitarismos europeus. Bérenger, o inconformado protagonista, lutou para não sucumbir ao magnetismo da rinocerontização. Em sua última fala, deixou-se atrair afinal pela beleza dos bichos. Em delírio, exaltou: “Como são belos! Como eu gostaria de ter uma nudez decente, sem pelos, como a deles! Sua pele encouraçada… e aquela soberba cor.” Mas era tarde demais: Bérenger estava irremediavelmente condenado às dores de cabeça de um pobre humano.
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