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    O ex-governador Sergio Cabral foi um dos presos da Lava Jato no Rio - FOTO: GIULIANO GOMES/PR PRESS/FOLHAPRESS

questões jurídico-políticas

Combate à corrupção exige democracia

Após extinção da Lava Jato, procuradores da força-tarefa no Rio fazem balanço, apontam erros e dizem que trabalho não acabou 

Renata Ribeiro Baptista e Stanley Valeriano | 08 abr 2021_17h53
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A força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro foi encerrada no último dia 31 de março, mas não considera exaurida a necessidade de que as instituições se debrucem de modo firme sobre o fortalecimento do combate à corrupção. Uma certa melancolia que bate neste momento abre espaço, contudo, para realçarmos algumas conquistas após quase cinco anos de serviços. A estreia da Lava Jato carioca teve seu início com a prisão do ex-governador Sérgio Cabral, em novembro de 2016, quando foi deflagrada a operação Calicute. A partir daí, seguiram-se outras 55 operações, que resultaram em 806 buscas e apreensões, 70 prisões temporárias, 264 prisões preventivas, 894 denunciados e 183 já condenados em primeira instância.

Essa sequência de operações demonstrou como a corrupção no estado tem laços profundos e ramificados pelas mais diversas áreas de atuação da administração pública, atingindo diferentes graus da burocracia estatal – o que se extrai do fato de que, entre os presos e investigados, figuraram 4 dos 6 últimos governadores do estado, um ex-presidente da República e um ex-presidente paraguaio, além de inúmeros secretários de estado, deputados federais e estaduais, senadores da República, servidores públicos de todos os níveis, empresários dos mais diversos setores e operadores financeiros (estes, muitas vezes, anunciados como consultores, marqueteiros, investidores ou lobistas).

A corrupção no estado do Rio deixou uma mancha indelével na vida do cidadão fluminense, materializada especialmente na falta de serviços públicos básicos e cotidianos, resultando em precariedade da saúde, da educação, de saneamento e de segurança pública. A Lava Jato deixou clara, a partir das operações Fatura Exposta, Ressonância, SOS e Favorito, a atuação de grupos responsáveis por décadas de cartelização de vendas de equipamentos e insumos médicos, além da precarização dos serviços de saúde pelo mau uso de organizações sociais.

Também foi possível mostrar as profundas relações de políticos e servidores públicos com doleiros, operadores financeiros e transportadoras de valores, que faziam o trabalho complexo de geração de dinheiro em espécie para o pagamento de propinas pelos empresários e de remessas para o exterior – e como isso beneficiou agentes públicos corruptos, resultando em grandes operações como a Câmbio, Desligo, que desarticulou uma rede de mais de cinquenta doleiros.

Nem a paixão do brasileiro pelo futebol e pelo esporte foi poupada pelas organizações criminosas: também foram alvo de apuração os desvios ocorridos nas obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas, com o envolvimento de figuras conhecidas no mundo esportivo, tendo sido comprovada, até mesmo, a compra de votos para a eleição do Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas de 2016, o que resultou numa investigação conjunta com a participação do Ministério Público francês, deflagrada na operação Unfair Play.

Mais recentemente, a força-tarefa do Rio de Janeiro realizou duas investigações que desvendaram a atuação de organizações criminosas instaladas no exercício da administração da Justiça. Da operação E$quema S resultou uma ação penal narrando a conduta de pelo menos uma dezena de advogados que vendiam uma pretensa influência junto a tribunais e, por isto, cobravam honorários milionários, pagos com dinheiro público. A operação Mais Valia, a seu turno, desnudou o pagamento de propina no âmbito da Justiça do Trabalho. O enfrentamento da corrupção no Judiciário e nas atividades inerentes à Justiça era, há muito tempo, uma cobrança da sociedade civil.

A atuação da Lava Jato fluminense devolveu aos cofres públicos mais de 100 milhões de dólares das contas de Sérgio Cabral mantidas no exterior, após acordo de colaboração com seus ex-doleiros. Esse fato se tornou emblemático porque o estado passava por uma gravíssima crise financeira e tais valores foram usados para pagar os salários atrasados dos servidores públicos e aposentados. A força-tarefa fluminense foi responsável pela devolução aos cofres públicos de quase 4 bilhões de reais, frutos de acordos com envolvidos nos esquemas criminosos, além do requerimento de reparação nas ações penais que ultrapassa a casa dos 12 bilhões de reais.

 

A força-tarefa do Rio será, agora, sucedida pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), grupo de atuação permanente, integrado por membros do Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro, com mandato de dois anos. O Gaeco deveria atuar em auxílio às grandes e novas investigações promovidas por procuradores de todo o estado, mas, dada a extinção precoce da força-tarefa do Rio de Janeiro, precisará absorver todo o passivo da Lava Jato no estado – e esse acúmulo de funções pode comprometer o funcionamento do grupo.

Embora haja muito a ser comemorado, certamente erros foram cometidos ao longo dessa jornada. Mentem aqueles que dizem que não fariam nada diferente; se tivéssemos a chance, decerto faríamos coisas diferentes. Dessa reflexão crítica extraímos dois pontos que merecem atenção.

Em primeiro lugar, é simbólico que uma experiência tão frutífera seja encerrada em meio a pressões políticas e institucionais. Observa-se, hoje, o desmonte do combate à corrupção, com enfraquecimento de órgãos de controle, como Polícia Federal, Banco Central, Controladoria-Geral da União, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e o próprio MPF, seja por interferência política, seja por cortes de verbas das instituições que têm por missão o combate à corrupção.

Há medidas em curso para minar o esforço de combate à corrupção, dentre as quais se enumeram: 1) a Câmara instalou comissão que pretende rever a Lei de Lavagem, algo visto com desconfiança pelos órgãos de controle, que consideram a iniciativa uma intenção de realizar mudanças que não atendem aos padrões internacionais estabelecidos nas convenções da ONU; 2) a insegurança jurídica gerada por constantes mudanças de entendimento nas mais altas cortes do país, destacando-se as discussões sobre os limites da competência da Justiça Eleitoral e a possibilidade de utilização de relatórios de inteligência financeira elaborados pelos Coaf; 3) a aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade, que vale para todos os agentes públicos, mas que criminaliza condutas exercidas por integrantes das Polícias, dos Ministérios Públicos e do Poder Judiciário; 4) o enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa, também por decisão judicial; e 5) a tentativa de “investigação dos investigadores pelos investigados”, como, por exemplo, a recente abertura de inquérito contra membros do Ministério Público Federal no Superior Tribunal de Justiça. Esse inquérito acabou suspenso pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), com base em alguns fundamentos, entre eles o de que as provas que deram ensejo ao inquérito têm origem ilícita, porque obtidas a partir do cometimento de crimes.

A comunidade internacional tem demonstrado preocupação com os rumos das políticas de combate à corrupção no Brasil. O desenvolvimento de uma sociedade e a estabilidade de suas instituições – e até mesmo um ambiente favorável de negócios – não encontram campo fértil onde práticas corruptoras atingem níveis endêmicos. O Brasil corre o risco de tornar-se um pária na comunidade internacional caso não honre compromissos assumidos internacionalmente, ao evitar que as investigações iniciadas pela Lava Jato resultem em mudanças reais no sistema de justiça criminal.

Em segundo lugar, uma pesquisa conduzida pela Latinobarómetro em 2018, no auge das investigações feitas pela força-tarefa fluminense e também pelas suas congêneres no Distrito Federal, no Paraná e em São Paulo, aponta a percepção da população de que o nível de corrupção no país aumentou. Em 2020, pesquisa realizada pelo Datafolha mostrou que, para 67% dos brasileiros, a corrupção vai aumentar, e para 23%, vai se manter como está. Apenas 8% dos brasileiros participantes concluíram que a corrupção vai diminuir.

Aquele mesmo estudo da Latinobarómetro – que, frise-se, foi executado em 2018, isto é, em pleno ano eleitoral –, detectou outra tendência: a adesão da população brasileira à democracia está em baixa, pois cerca de apenas 34% dos entrevistados brasileiros concluíram que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo – contra cerca de incríveis 54% dispostos a aceitar, em alguma medida, governos autoritários.

A análise conjunta desses dados pode revelar um grave perigo democrático: ao acreditar que as instituições estabelecidas são altamente corruptas, a população acaba por perder a confiança de que parta delas a solução para problemas sociais, políticos e econômicos. Contudo, é necessário que tenhamos, como sociedade, o cuidado de não incorrer naquilo que se pode chamar de “netflixização do combate à corrupção”.

Com o progressivo aumento de serviços de mídia por demanda, os indivíduos têm se acostumado a consumir conteúdos com enredos que precisam atrair sua atenção de forma rápida e arrebatadora. A jornada do herói, enquanto fórmula narrativa, ainda tem seu valor aí, desde que não demorem muito a acontecer as fases finais, notadamente aquelas em que o protagonista ganha a recompensa e volta para a casa com o elixir da salvação geral. Esse anseio por imediatidade contaminou as expectativas da população brasileira no enfrentamento à corrupção: as pessoas esperam soluções simples e céleres para situações complexas, que possuem causas longínquas e profundas.

Quanto a isso, vale rememorar as lições de Sérgio Buarque de Holanda, que em sua obra Raízes do Brasil apontava três problemas fortemente imbricados: a) nossa formação colonial e patrimonialista gerou a normalização da diferença de tratamento entre autoridades e o “resto” dos indivíduos; b) a dificuldade dos brasileiros em assimilar que o liberalismo democrático pressupõe o trato impessoal com os governantes; e c) a construção da democracia no Brasil não atendeu a movimentos de reforma social com ampla participação, tendo sido gerenciada “de cima para baixo” – o que lhe deixaria com uma margem de déficit de legitimidade e sentimento de que os cidadãos não são os responsáveis por tais conquistas, aguardando, assim, que venha um salvador da pátria.

É preciso ter claro, contudo, que não está no Ministério Público, tampouco no Judiciário, a saída para esses distúrbios. Está, isso sim, no próprio processo político (cuja credibilidade restou bastante abalada em função das investigações, mas do qual não se pode, de maneira alguma, abrir mão) e social, que segue uma lógica particular e, com toda certeza, demorada. Requer, para além de transparência no funcionamento das instituições, grande investimento em educação e fortalecimento dos instrumentos de participação social.

Da despedida do trabalho na força-tarefa da Lava Jato Rio sobra a nós uma única certeza: não há espaço para o verdadeiro combate à corrupção fora de um ambiente democrático. Por isso, é preciso acreditar e, mais ainda, defender e fortalecer a democracia. Trata-se de tarefa árdua e constante, principalmente em tempos sombrios, nos quais retornam os fantasmas de obscurantismo, louvores a regimes autoritários e culto ao personalismo… mas temos o dever de continuar caminhando.

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