Ilustração: Carvall
Sem casa, sem comida, sem emprego e sem creche
A história de Bárbara, uma mulher que vive no cotidiano os muitos problemas do eleitorado feminino
“Temos só um geito de nascer e muitos de morrer”, escreveu Carolina Maria de Jesus em seu diário, em seguida livro, intitulado Quarto de Despejo, publicado em 1960. Moradora da Favela do Canindé, em São Paulo, a escritora e poetisa era mãe de três filhos e cuidava de tudo sozinha. Catava recicláveis e encontrava nas sobras parte indispensável do seu sustento. Sessenta e dois anos e quase 2.700 km distanciam Carolina de Bárbara Ferreira de Oliveira, uma mulher de 32 anos, parda, moradora do Vasco da Gama, periferia recifense. Separada, Bárbara é mãe solo e se desdobra catando papelão, garrafa pet e latinhas para conseguir alimentar e criar seus quatro filhos. Não ter o que oferecer quando os filhos sentem fome é também uma forma de morrer.
Bárbara acorda todos os dias às 5 horas. Arruma a casa, lava os pratos, as roupas, dá banho nas crianças. Quando tem comida, prepara café da manhã e almoço. Quando a geladeira está vazia, o primeiro alimento dos filhos mais velhos, de 13, 10 e 6 anos, é a merenda da escola municipal em que estudam. Enquanto os mais velhos estão na aula, a mãe sai com a caçula, de 3 anos, para catar recicláveis. Com o trabalho consegue, no máximo, 20 reais por dia, valor insuficiente para comprar comida e pagar as quatro passagens de que precisaria para deixar a filha mais nova na creche a uma hora de sua casa. Ao todo, gastaria quase 17 reais e 4 horas no percurso. Por mês, esse gasto comprometeria quase metade da sua renda e ocuparia um tempo que ela não pode se dar ao luxo de perder. Os 600 reais do Auxílio Brasil são a renda mais certa da família. A moradia de Bárbara foi condenada pelas chuvas em Recife, e atualmente ela e os quatro filhos moram em uma casa cedida pelo tio, mas que também já recebeu alerta de risco da Defesa Civil. Falta dinheiro, comida, creche, saúde, oportunidade de emprego e visibilidade. “Hoje a gente não consegue comprar leite, carne ou galinha. O que a gente come é salsicha e no máximo ovo, mas até o ovo aumentou de preço”, diz.
Essa falta de quase tudo é a realidade de muitas mulheres pobres brasileiras. A pandemia aprofundou desigualdades já existentes – e as mulheres foram as mais afetadas com o aumento do desemprego e acúmulo de tarefas domésticas e de cuidados, especialmente as mulheres negras e de baixa renda. Assumiram mais responsabilidades para manter as famílias mesmo sem o suporte eficaz de políticas públicas. Apesar das propostas para as mulheres na agenda dos quatro principais candidatos à Presidência estarem ganhando destaque neste pleito, segundo especialistas ouvidas pela piauí, as pautas não dão conta da totalidade dos problemas, em especial os enfrentados por mulheres negras, indígenas e pobres.
Para a diretora do Instituto Alziras, ONG que busca ampliar e fortalecer a presença de mulheres na política, Michelle Ferreti, as pautas femininas ganharam relevância em função da importância do voto das mulheres, que representam 53% do eleitorado brasileiro. “Mas os planos de governo e o debate público de maneira geral durante a campanha têm sido insuficientes para retratar as necessidades e os interesses das mulheres na sua plenitude”, alerta.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) analisou as políticas governamentais para mulheres durante os últimos governos. Em 2022, a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (Sedim), um marco na agenda governamental para políticas das mulheres, completou 20 anos. Da criação desse órgão até sua transformação na Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), houve muitos avanços – e também muitos retrocessos. Entre 2003 e 2015, durante os governos de Lula e Dilma (PT), a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) foi responsável pela implementação da Lei Maria da Penha e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, além da criação de mais de 220 organismos estaduais e municipais de políticas para as mulheres. Mas, a partir de 2019, com a eleição de Jair Bolsonaro (PL) e a nomeação da ministra Damares Alves, as pautas das mulheres mudaram de perspectiva. “Não apenas institui-se um movimento de desmonte das políticas ainda existentes como se inicia a construção de uma ‘nova política para as mulheres’, baseada em uma moralidade religiosa, na centralidade da família tradicional nuclear e heteronormativa, no resgate de valores tradicionais de gênero e no embate direto com as pautas e movimentos feministas”, afirmam os pesquisadores do Ipea.
Para Ferreti, Bolsonaro relega às mulheres o papel de coadjuvantes, de princesas e de cuidadoras de lar, o que não reflete a diversidade de pessoas que compõem esse grupo. “No plano de governo do atual presidente, as mulheres aparecem numa perspectiva pouco emancipatória, associadas à ideia conservadora de família”, afirma. Entre as propostas voltadas ao público feminino estão a geração de emprego, igualdade de salários, capacitação profissional, ampliação de creches, participação no parlamento, assistência à violência, promoção de saúde, bem-estar das mães e prevenção à gravidez precoce. Apesar de o documento apresentar sugestões de políticas públicas que podem auxiliar as mulheres, na prática o governo Bolsonaro cortou projetos e programas relevantes para elas. Estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revelou que o governo Bolsonaro deixou de gastar quase 94 milhões de reais disponíveis em 2020 para financiar a rede de atendimento às mulheres. No ano passado, dos 22 milhões de recursos autorizados para a Casa da Mulher Brasileira, centro de assistência à mulher em situação de violência doméstica, foi gasto apenas 1 milhão. Em 2022, segundo levantamento do Inesc, as unidades que acolhem vítimas de violência doméstica ainda não receberam verbas do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Bolsonaro tem a maior taxa de rejeição entre o eleitorado feminino, de 55%, segundo o Datafolha. Na última pesquisa, divulgada nesta quinta-feira (29), Lula apresentou 50% das intenções de voto entre as mulheres, ante 49% na pesquisa anterior, enquanto Bolsonaro manteve-se nos 29%. “Em alguma medida, as mulheres entendem o significado prático dessa gestão desastrosa e desse discurso extremamente violento no seu cotidiano”, diz a diretora do Instituto Alziras.
A resistência de uma parte das eleitoras ao candidato à reeleição é também uma vantagem para Lula. O plano de governo do candidato petista tem como propostas para o público feminino o combate às desigualdades estruturais de gênero, proteção integral das mulheres, promoção delas na ciência, nas artes, na representação política, na gestão pública e no empreendedorismo, além da ampliação do atendimento de saúde, reinserção no mercado de trabalho e investimento nas ações de combate à violência. Lula também prometeu recriar o Ministério das Mulheres em visita ao Maranhão no início de setembro. “Seria muito importante se a gente pudesse aprofundar nos projetos, saber o significado deles com uma perspectiva bem objetiva”, questiona Michelle Ferreti.
Em agosto, a Lei Maria da Penha completou 16 anos de existência. Apesar de ser considerada uma das legislações mais avançadas sobre o tema no mundo, a falta ou a diminuição de investimentos faz retroceder a promoção do direito às mulheres vitimizadas. A pandemia de Covid agravou ainda mais esse cenário. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021 4,3 milhões de mulheres foram agredidas fisicamente com tapas, socos e chutes. Ou seja, durante esse período, a cada minuto, oito mulheres apanharam no Brasil.
Foi justamente durante a pandemia que Bárbara Oliveira conseguiu romper o ciclo de violência que vivia há mais de dez anos com o pai de seus filhos. “Na primeira vez que fui agredida, eu estava grávida da minha terceira filha, e ele não quis registrá-la. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Eu tinha acabado de perder um filho de cinco anos por problema renal crônico e meu ex-marido bateu na minha cara na frente de todos os amigos. Foi humilhante. Fora toda a violência psicológica que eu sofria, os xingamentos, as punições. No dia que ele foi embora, quebrou até o roteador da minha casa para eu não conseguir falar com ninguém”, conta à piauí. Oliveira não lembra ao certo os órgãos que visitou durante o período das denúncias, mas afirma ter sido bem assistida e acompanhada pelo Conselho Tutelar.
De acordo com a cientista política e jornalista Débora Thomé, a violência contra as mulheres é um tema que une as agendas de esquerda e direita. “As eleições para presidente precisam alcançar eleitores com preferências muito distintas, então os candidatos normalmente apostam em conteúdos catch all, como violência e implementação de creches, por mais que ainda sejam pouco debatidos”, explica. A especialista menciona também a diferença nas abordagens e a falta de comprometimento dos presidenciáveis com outras questões pertinentes às mulheres, como violência obstétrica e paridade de gênero nos cargos ministeriais. Simone Tebet (MDB) foi a única candidata a afirmar que, se eleita, 50% de suas ministras seriam mulheres. Em contrapartida, o ex-presidente Lula não quis se comprometer com o tema, “não sou de assumir compromisso, de me comprometer a fazer metade, indicar religioso, indicar mulher, indicar negra, indicar homem […]”, declarou durante o primeiro debate.
Para além da violência física, a violência de gênero, em suas variadas formas, acabou sendo uma característica do discurso bolsonarista – estimulada pelo próprio presidente, que costuma atacar mulheres. No comício de Sete de Setembro, por exemplo, fez uma comparação implicitamente estética entre as primeiras-damas, e no debate presidencial do dia 28 de agosto, atacou a jornalista Vera Magalhães. “Para além de todo o desmonte das políticas de proteção às mulheres, a gente vê também uma importância simbólica da principal autoridade pública do país assumir um discurso extremamente violento, agressivo e misógino contra as mulheres, que acaba autorizando publicamente esse tipo de postura vindo de outros lugares também”, afirma Michelle Ferreti.
Outra pauta pouco debatida pelos candidatos durante a campanha é a implementação de creches. Uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro revelou que as mulheres representam 94% das pessoas que buscam vagas em creches. Em Pernambuco, Bárbara Oliveira vive a mesma situação: procurou vaga para a filha mais nova perto de casa, mas todas estavam preenchidas. Só conseguiu lugar para levar a pequena a 1 hora de casa. Em função do preço do deslocamento, a menina não frequenta a creche. Assim como Oliveira, muitas mulheres ficam reféns do cuidado dos filhos, pois faltam vagas no ensino infantil.
Uma pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revelou que apenas 24,4% das crianças de até 3 anos em situação de pobreza frequentavam creches em 2022. Os dados também indicam que, no mesmo ano, 37% da totalidade das crianças brasileiras nessa faixa etária estavam matriculadas. A meta do governo, prevista pelo Plano Nacional de Educação, é que até 2024, o país tenha condições de atender pelo menos 50% das crianças em creches. “Nas campanhas, normalmente os candidatos se escoram na fala de que esse não é um dever do governo federal, mas dos municípios. Na verdade, o âmbito nacional é responsável pela liberação de verbas para que as prefeituras construam as creches”, diz Débora Thomé. O plano de governo de Simone Tebet é o que mais tem propostas voltadas à primeira infância, através da ampliação das creches.
A falta de oportunidades de emprego e programas de qualificação também é uma aflição para Bárbara Oliveira, que só estudou até o ensino fundamental. “Isso mexe muito comigo, me sinto inútil, incapacitada. Eu tenho muitos planos, muita vontade de voltar a estudar. Mas onde vou botar minha filha e ter certeza que ela está segura enquanto faço minhas coisas? Não tem. Pagar eu não posso. Não tenho condições”, expõe a catadora, que sonha em fazer um curso profissionalizante para cuidar de idosos e, finalmente, ter sua carteira de trabalho assinada. Uma ocupação formal, com as devidas garantias, livraria a mãe solo e seus filhos dos encontros diários com a fome. Dados da Pnad divulgados em agosto mostram que, apesar da redução do desemprego no cenário nacional, a taxa de desocupação das mulheres é 54,7% maior que a dos homens. Todos os candidatos têm propostas nesse sentido, porém, se não forem acompanhadas de políticas que garantam o direito à creche e à educação, a tendência é um acúmulo de funções de cuidado que inviabilizam a inserção das mulheres no mercado de trabalho.
Outra pauta esquecida, ou pior, tratada da pior forma possível, é a do direito ao aborto. Candidatos como Bolsonaro e Simone Tebet (MDB) disseram ser contra o aborto em si – mas, na prática, as principais candidaturas à Presidência não trataram da descriminalização. Nenhum plano de governo faz menção ao aborto ou à defesa da vida. Apenas 31% dos brasileiros concordam que o aborto deve ser permitido sempre que uma mulher assim o desejar, segundo o estudo Global Views on Abortion de 2021. Para Hildete Pereira de Mello, economista e feminista, o tema precisa estar no palanque a fim de ganhar mais visibilidade. Ela participou de uma das primeiras manifestações brasileiras a favor da descriminalização do aborto, em janeiro de 1980, e sugere uma mudança na abordagem. “Nós não podemos perguntar a ninguém se ela é favorável ao aborto, pois as pessoas não são favoráveis ao aborto. As perguntas devem ser: você acha que uma mulher que praticou aborto deve ser presa? Você é favorável que uma mulher que não quer uma gravidez tenha um filho?” No debate presidencial de 28 de agosto, o tema sequer foi mencionado, assim como tantos outros prioritários para mulheres.
Como muitas mulheres, a pernambucana Bárbara Oliveira tem problemas cotidianos que não apareceram nos planos de governo dos candidatos à Presidência. Enquanto aguarda o resultado da eleição, vai repetindo sua rotina de privações e tentando driblar os jeitos de morrer do diário de Carolina Maria de Jesus. “Quem não é forte desanima”, dizia a autora de Quarto de Despejo. Bárbara às vezes desanima e fala do desgaste de quem tem que ser heroína a cada dia. “Quem sofre é a gente que é mulher e pobre.”
Repórter da piauí
Estagiária de jornalismo na piauí e produtora do Foro de Teresina.
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