"Isso é errado!"
O Pan 2007 pelos olhos de uma árbitra da ginástica artística
| Edição 10, Julho 2007
O relógio marcava 8 da noite quando o atleta americano Justin Spring se aproximou da barra fixa montada em um dos cantos da Arena Multiuso dos Jogos Pan-americanos de 2007 com um bloco de magnésio branco na mão. Enquanto ele o esfarelava contra o aparelho, repetindo o ritual de outros tantos ginastas naquele dia, a brasileira Yumi Sawasato, de tailleur azul marinho e camisa branca por baixo, buscava seu lugar na arquibancada.
Aos 57 anos de idade, baixinha e decidida, queria estar cômoda para acompanhar a disputa da final masculina por aparelhos. Depois de arbitrar a competição feminina por três dias seguidos, era hora de relaxar.
Para untar a barra fixa inteira, Spring precisou de mais dois blocos de magnésio iguais ao primeiro. Para pegá-los, no entanto, teve que se aproximar da torcida. Quanto mais perto do público, mais parecia esconder a cabeça entre os ombros. As vaias que vinham em sua direção eram deliberadas e copiosas. Lotado, o ginásio reverberava o "uuu" de 15 mil pessoas com o objetivo único de desconcentrá-lo e de limpar o caminho do brasileiro Mosiah Rodrigues rumo ao ouro pan-americano.
Do banquinho vermelho da arquibancada, a nissei Sawasato ouviu tudo de olhos arregalados. Como única representante do Brasil no seleto grupo de árbitros de ginástica artística de categoria 1 (a mais alta), passou vergonha. Nunca tinha visto tamanha falta de consideração com um atleta pronto para se apresentar.
"Não podemos fazer isso! O ginasta tem o direito de se concentrar. E, se for mesmo o melhor, tem o direito de derrotar até o brasileiro", lamentou a árbitra veterana dos Jogos Olímpicos de Sydney e de Atenas, e dos Jogos Pan-americanos de Caracas, Mar Del Plata, Winnipeg e Santo Domingo.
"É uma pena…", acrescentou, após segundos de silêncio. "Isso não existe em lugar nenhum", arrematou, balançando a cabeça, a mulher que, em 2006, recebeu do Comitê Técnico da Federação Internacional de Ginástica (FIG) o título de melhor árbitra do mundo no quadriênio 2001-2004.
Spring, satisfeito com a quantidade de magnésio na barra fixa, iniciou sua série. Os olhos de Sawasato o acompanharam em cada giro. Dois minutos depois, a vaia que tanto incomodava a árbitra virou aplausos entusiasmados e passou a incomodá-la ainda mais. O americano cometera uma falha e caíra quase que de joelhos no chão. No mesmo instante, perto do aparelho, um membro da Confederação Brasileira de Ginástica dava saltitos de alegria. A árbitra criticou: "Isso é errado! Na ginástica artística internacional, se você gosta de um movimento, aplaude. Se não gosta, fica quieto. Isso aqui não é futebol. Tem que ser como o tênis. Aquele respeito. Temo que os atletas levem uma impressão um pouco ruim daqui, sabe…".
À previsão de Sawasato não faltam fundamentos. Ao longo dos três dias de competição pan-americana, não foram poucas as vezes em que respondeu os questionamentos de suas companheiras de trabalho sobre o comportamento da torcida brasileira, todas boquiabertas com as vaias e gritos vindos de cima. Sawasato conta que já enfrentou algumas saias justas importantes. A maior delas relacionada ao ex-jogador de basquete e ídolo nacional Oscar Schmidt. Por não parar de gritar da arquibancada, tanto animando as brasileiras quando desestimulando as ginastas de outras nacionalidades, virou ícone da torcida barulhenta e motivo de piada entre as estrangeiras. Sawasato, cabisbaixa, revela que não teve argumentos para protegê-lo.
Apesar das queixas em relação ao público, a nissei paulista se diz satisfeita com o Pan 2007. Garante que as estruturas da Arena Multiuso tiveram nível olímpico e que a revelação do evento foi, sem dúvida alguma, Jade Barbosa.
Enquanto acompanhava a evolução da adolescente carioca no solo naquela noite, mexia os dedos da mão direita como se escrevesse no ar as notas que daria caso estivesse na mesa de arbitragem. No final, ficou satisfeita com os 15.025 pontos que lhe renderam um bronze. Não deixou de comentar, no entanto, que a árbitra mexicana havia descontado excessivos 1.300 pontos. "Eu teria descontado 1.000 ou 900, como fizeram as demais. A mexicana pegou bem pesado, viu?"
Para explicar a pontuação da ginástica artística, Sawasato tira da bolsa de nylon preta um estojinho transparente com um lápis bem apontado e a pasta cor-de-rosa onde guarda as planilhas técnicas do dia. Quem olha pela primeira vez o papel todo rabiscado se assusta. Não entende como símbolos complicadíssimos podem se transformar em notas e, depois, em medalhas. Mas se transformam.
"A nota final é a soma da nota A com a nota B. A nota A é fruto da pontuação em três quesitos: no dez elementos de dificuldade que a atleta apresenta aos jurados como sendo sua série; nos movimentos de ligação que exibe entre um e outro elemento e nos cinco exercícios considerados mínimos e obrigatórios".
No Pan, a maior nota A apresentada foi 7.100, da prata americana nas barras assimétricas, Anastasia Liukin, que acabou tendo 15.460 como pontuação final. A grande maioria das meninas rondou os 6.200.
"A nota B, que é a de execução, é mais fácil de ser calculada. Todo atleta começa com dez e vai perdendo ponto a cada falha", explica Sawasato.
E perder ponto é moleza. Se o passo dado para trás pela atleta tiver mais de um metro, ela perde 300. Se tiver menos, só 100. Se houver um pequeno desequilíbrio, outros 100 vão embora. Se as pernas ficarem afastadas no meio de um exercício, menos 100 de novo. Se ao saltar o ângulo entre as pernas não for de 180 graus, adeus a outros 100 pontos. Tudo é motivo para perder ponto.
Mas feio mesmo, para Sawasato, é ginasta se apresentar usando maiô que entra na fenda do bumbum. Cem pontos a menos sem pestanejar. "A ginástica é a busca da perfeição. Tem que ser elegante, ter estilo, originalidade. Maiô enfiado é de péssimo gosto".
Para estar nos Jogos Pan-americanos do Rio, a paulista teve a sorte de se encaixar com perfeição nas regras estabelecidas pela convocatória de árbitros, que dizia que cada nação participante deveria apresentar três juizes para a competição, sendo um deles o de maior qualificação do país. Era o mesmo que dizer: Brasil, traga Yumi!
Vida de árbitro não é fácil: os horários são rígidos, o trabalho é grande, e a ajuda de custo, pequena. Para julgar quase 50 ginastas no primeiro dia de competição, 24 no segundo e 8 no terceiro, Sawasato ganhou US$ 180, fora transporte, hospedagem e alimentação. Ela ainda ficou responsável por emitir as notas A1 (são duas) e B1 (são seis no total) das barras assimétricas, as mais difíceis de serem avaliadas.
"Nas assimátricas não podemos tirar os olhos do atleta nem por um centésimo de segundo porque o movimento lá em cima não pára. No solo, por exemplo, enquanto elas andam ou dançam, podemos olhar a planilha de pontos e ver o que estamos anotando. Nas barras, de jeito nenhum. Até por isso, depois da competição, passo tudo a limpo com o maior cuidado".
Mas a brasileira está feliz. Comemorou o fato de, no sorteio das estações de trabalho, não ter sido aquinhoada com a prova de salto. "É uma competição rápida demais para mim. Não dá nem tempo de se emocionar", explica.
Para chegar aonde chegou, Sawasato dedicou a vida à ginástica. Em 1969, ainda atleta, levou bronze na disputa sul-americana do salto e das barras assimétricas, e ouro na competição por equipe. Foi seu ápice, recorda. Depois, concluiu a graduação em educação física pela USP e embarcou rumo ao Japão com uma bolsa de estudos para se especializar em ginástica. Ao voltar, começou a lecionar na faculdade onde havia se formado e a treinar meninas no clube Pinheiros. Em 1980, depois dos Jogos Olímpicos de Moscou, fez seu primeiro curso de arbitragem internacional. Tirou o brevê da categoria e, de lá para cá, de quatro em quatro anos, renova o título com um curso a mais . Hoje, preside também a academia Yashi, a primeira de ginástica olímpica do Brasil.
Apesar de sua experiência, Sawasato tem mania de assistir aos treinos dos ginastas com uma folha de papel e um lápis na mão. Simula o momento da competição com perfeição. Faz o mesmo com os campeonatos transmitidos pela TV. Assiste ao replay como se estivesse na mesa de árbitros e dá sua nota com a mesma rapidez de sempre. Costuma ficar muito próxima do resultado oficial, mas lamenta que tevê brasileira exiba poucos eventos dessa modalidade esportiva. "Os árbitros europeus, por exemplo, assistem a tudo e, claro, têm muito mais material para treinar".
Finalmente o americano Justin Spring chega às barras paralelas. Faz uma exibição de alto nível, leva 15.550 e conquista o ouro do aparelho. Sobe no pódio como quem dá o troco à arquibancada verde-amarela e sorri. O hino americano ecoa pela arena, e a bandeira dos Estados Unidos vai ao topo. Entre os torcedores, Yumi Sawasato é uma das poucas que se levanta em silêncio. Volta o corpo para a flâmula e faz uma deferência de respeito.
"Não importa o hino. O correto é a arquibancada ficar em pé para todos os ouros", resume a arbitra.
Ao fim da cerimônia, Sawasato se dá conta de que aos seus pés, a cerca de cinco metros de distância, na chamada zona dos atletas, o ginasta Diego Hipólito grita seu nome sem parar, tentando chamar sua atenção. Ela ri orgulhosa, se levanta e corre para a escada mais próxima. Passa por todos os seguranças que protegem o medalhista brasileiro , lhe dá um abraço apertado e um beijo estalado na bochecha.
"Yumi, olha aqui as minhas medalhas! Quero tirar uma foto com você e com elas!", exclama Hipólito. Os flashes não param (não deixe de ver a galeria de fotos ao lado). Sawasato fica com os olhos cheios marejados. Já saindo da arena, confessa com um quase imperceptível nó na garganta que adora Diego. "Ele é um profissional maravilhoso e um amor de pessoa. Amo minha profissão".
Na quinta-feira, 19 de julho, Sawasato recebeu a notícia do cancelamento da medalha de bronze da mexicana Marisela Arizmendi Torres na competição por equipes com tristeza. Lamentou. "Foi um erro do comitê mexicano. Eles tinham seis credenciais de atleta e trouxeram sete ginastas. Deram a uma delas a credencial de técnica e colocaram a menina para competir. Não dá. É uma pena que isso aconteça. Ginástica é para ser levado a sério".
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