Memórias de uma seleção
| Edição 10, Julho 2007
Estão completando 25 anos de uma época muito, muito especial para quem é quarentão, gosta de futebol e acha que a vida vale a pena apesar de tudo. Lembro exatamente de onde estava no dia 5 de julho de 1982 e nas três semanas que o antecederam.
Estudava no Universidade Federal do Rio Grande do Sul, militava no movimento estudantil e namorava uma menina da Faculdade de Arquitetura. Nesta época, no sul, ser estudante e não participar da "luta contra a ditadura" era inconcebível. Era como ir à churrascaria e pedir salmão ao molho rosé. Como todos os estudantes "bacanas" de então, eu tinha cabelos compridos, usava macacão jeans (vestuário proletário mais próximo encontrado no armário), tinha um livro com a biografia de Lev Davidovitch Bronstein (vulgo Trotsky) na bolsa e entre as páginas deste livro um folheto azul com o primeiro programa do PT. Ah, a gente assobiava as músicas do Chico e do Caetano, ansiávamos por mais liberdade e namorávamos. Muito. Não se falava de Aids e doença venérea era um assunto distante para quem fazia amor livre no ambiente universitário. Apesar dos militares, a vida era rosa como as praias de Santa Catarina para onde fugíamos e passeávamos nus sem nenhum pudor. A droga destes dias era o chá de cogumelo, as camisetas eram estampadas com o método batique e fazíamos muito barulho em passeatas que cruzavam as ruas do centro de Porto Alegre.
Nestes dias, torcer pela seleção não era um programa totalmente aceitável nos círculos intelectuais do mundo acadêmico, setor pueril (o nosso). Assim, para não perder a pose e o status tão duramente conquistados no meio dos nossos líderes políticos do DCE (Diretório Central dos Estudantes), torcíamos com um um olhar fugidio em lugares públicos que possuíssem um aparelho de televisão ou nos escondíamos em casa, com as persianas arriadas para ver pela telinha o esquadrão mágico de Telê tentar fazer história. Ao jogo do Brasil contra a União Soviética assisti sozinho em casa. Dois golaços. De Sócrates e Edér, ambos de fora da área. E o grito por cada gol ficava preso na garganta. Éramos treinados para isso. Bastava lembrar como namorávamos na casa dos sogros sem soltar um único gemido. Os outros jogos da primeira fase, contra Escócia e Nova Zelândia, também foram assistidos na penumbra do lar.
Contra a Argentina, assisti no bar da Arquitetura, lotado, com uma TV 20 polegadas espremida sobre um armário. Poucos eram os corajosos que ficavam com o rosto compenetrado no aparelho de televisão. Eu não era um deles. Os líderes estavam presentes, de costas para o evento televisivo. A minha namorada estava ao meu lado, havia dois ou três amigos, e lembro que durante todo o jogo a conversa girou sobre o número de mortos na Guerra das Malvinas, que havia acabado exatamente no dia em que o Brasil estreou na Copa. "Foram mais de mil argentinos mortos!" "Não, não, um pouco mais de seiscentos!" 11 minutos. Brasil 1 a 0. Gol de Zico. "Morreram muitos ingleses também!" "Mais de quatrocentos!" "Não exagere. Foram duzentos e poucos!" 66 minutos. Serginho. Brasil 2 a 0. "E os civis? Ninguém nunca fala dos civis que morrem numa guerra!" 69 minutos. Ramon Diaz desconta. Argentina 1. Brasil 2. "Mulher sempre tem que falar de civil!" "Faz parte da natureza feminina!" 73 minutos. Brasil amplia com Junior. 3 a 1. "Natureza feminina é o cacete! Vocês, homens fazem guerras e nós mulheres temos que aguentar o rojão com as crianças e os velhos." "Não exagera, mulher! Morreram apenas 3 civis nas Malvinas." "Isso é o que dizem, isso é o que dizem!" "Ih, aconteceu alguma coisa ali. O que foi?" "Nada demais. Expulsaram aquele garoto que eles dizem que é gênio: o tal de Maradona!" "Sei!". O jogo acabou e fomos vitoriosos para casa. Os argentinos devem guardar este dia com muita tristeza. Perder a guerra para os ingleses e, como campeões do mundo, ser eliminado de uma Copa pelo rival Brasil, num prazo de um mês não é para qualquer um. A mesma tristeza que iriamos viver três dias depois diante de Paulo Rossi e a mediana seleção italiana. Apesar de ser um dia especial nestes mais de quinze mil dias que vivi, às vezes não gosto de falar sobre o assunto. Assim como o Sarriá, o meu passado já foi demolido. Lembro vagamente dos rostos tristes do dia do jogo em meio à neblina típica do inverno porto-alegrense assim como lembro vagamente do dia em que acabei o meu namoro, em que abandonei a faculdade e em que troquei os discos de Chico e Caetano por The Clash, Sex Pistols e New Order.
E agora já se passaram vinte e cinco anos. O promissor programa azul do PT virou o livro verde-amarelo distorcido do Planalto, a imagem da minha ex-namorada habita o hard-disk defeituoso da minha memória e só escuto música clássica. Quando escuto. Envelheci. Não muito mas o suficiente para entender o sentido das palavras tempo, saudade e futebol-arte. Principalmente quando vejo a seleção do Dunga enganando a bola e a si-própria.
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