Mentalizar pinos
Repetir uma série de movimentos antes de cada arremesso pode ser fundamental ao boliche
| Edição 10, Julho 2007
De calça social preta, cinto de couro lustrado e camisa pólo verde-bandeira enfiada para dentro, Rodrigo Hermes aguardava ansioso a hora de realizar o primeiro dos cerca de 120 arremessos do dia. Não via a hora de colocar em prática aquilo que já havia experimentado em sua imaginação inúmeras vezes enquanto se preparava para os Jogos Pan-americanos de 2007. Agora, ali, diante das pistas de boliche do maior shopping da América Latina, admirava o fato de estar cercado por 150 torcedores agitados e dezenas de jornalistas ansiosos, além de um sem-fim de curiosos que, entre uma compra e outra no centro comercial, paravam para espiar através de uma janela de vidro espesso o desenrolar da prova.
Passava das 10 da manhã quando o paranaense de 24 anos finalmente viu seu nome surgir no monitor acima de sua cabeça com a convocação definitiva para entrar na pista e derrubar os primeiros pinos da disputa pelo ouro no boliche masculino em duplas. Nesse esporte, essencialmente técnico, ganha quem eliminar mais pinos com o menor número de arremessos, e a briga com Estados Unidos, México e Canadá, os papas do assunto no mundo, não se mostrava nada fácil.
Hermes se levantou, pegou uma flanela azul-marinho dobrada em quatro partes e fez com que ela desse seis voltas ao redor da bola. Nenhuma a mais, nenhuma a menos. A torcida, composta essencialmente por familiares e companheiros da confederação de boliche, gritou alto seu nome. Ele, então, devolveu a bola à canaleta repositora e foi em busca do pó de magnésio, antídoto contra gotículas de suor que costumam se acumular nos dedos. Untou apenas a mão direita e, com a mesma, devolveu o saquinho transparente ao seu local de origem. Com precisão. Voltou a atenção para a bola, encaixando o polegar, o anelar e o dedo médio direitos em seus três buracos. Nesta ordem. Em um jogo rápido de cintura, levantou o pé esquerdo para trás e passou duas vezes a palma da mão esquerda na sola do sapato. Deu três passos em direção a pista de boliche e, enfim, soltou a esfera de 7,2 quilos rodando em alta velocidade. Bum! Dez pinos no chão. Strike. A mãe dele, Carmem Hermes, saltou e gritou de alegria.
Em seu segundo arremesso, o bolicheiro fez exatamente o mesmo. No terceiro, no quarto, no quinto e em todos os demais do dia também. Ele, no entanto, jura de pés juntos que não se trata de um conjunto de superstições. Trata-se de algo maior, mais relevante.
"É a rotina mental que criei para me levar à concentração plena. Se eu saltar qualquer dessas etapas ou realizá-las fora de ordem, é porque não estou 100% concentrado. Então recomeço o processo do zero e só lanço a bola depois", explica.
O nome de Fábio Rezende, a dupla de Hermes na disputa, finalmente brilha no monitor. É hora do paulista de 29 anos estrear no Pan.
Também atento a cada um de seus movimentos, Rezende pega a bola azul e preta com as duas mãos e a apóia na esquerda. Com a direita, alcança o grip (um saquinho de pedras de pó de magnésio) e unta os dedos. Bate nos buracos abertos na esfera com o dorso da mão e solta o grip. Ainda com a direita, alcança uma toalha comum e retira o excesso de pó e oleosidade da bola. Joga a toalha num canto. Neste momento, seus olhos verdes se voltam para a pista. Parece hipnotizado. Revê em segundos quatro pontos-chave: o ângulo de seu corpo, a forma como realizará sua largada; a posição de seu braço esquerdo e a imobilidade de seu ombro direito. Tudo checado, sobe na pista e lança. Bum! Apenas nove pinos vão para o chão. e o lamento fica visível no rosto do atleta. A dupla americana Cassidy Schaub e Rhino Page tomava a dianteira.
Chateado por não ter obtido um strike, ou seja, por não ter derrubado o triângulo eqüilátero formado por dez pinos brancos em um único lance, Rezende vai para o segundo arremesso da jogada. Busca o spare, a eliminação de todos os pinos restantes. Pega a bola azul e preta com as duas mãos novamente e recomeça seu ritual. Como o parceiro, sempre repete certos movimentos na mesma ordem antes de soltar a bola. Três passos e bum! O último pino vai para as cucuias, mas a medalha de ouro já parecia distante.
"Todo mundo que joga boliche em alto nível monta para si mesmo uma rotina de concentração que costuma ter cinco fases claras", ensina. "A primeira, realizada de forma consciente, consiste nas decisões fundamentais do jogo como o tipo de bola que será usado, o ângulo do arremesso, a velocidade e a força. A segunda, que eu já considero uma transição entre o consciente e o subconsciente, é esse passo a passo que parece bobo e antecede o lançamento. A terceira, já totalmente subconsciente, é o arremesso em si. A quarta é o retorno ao consciente, a descarga emocional. Quando você comemora ou lamenta o que fez. A última, por fim, é a reconcentração. Só fazendo esse ciclo todo a cada jogada é que o atleta consegue estar bem por quatro ou cinco horas seguidas".
Quem olha de longe, do meio de uma torcida que fica de pé atrás dos bolicheiros por falta de arquibancada e que gosta de dizer "yessss" depois de cada strike, tende a associar essas rotinas de Hermes e Rezende a sintomas de um possível transtorno obsessivo compulsivo, mas se engana.
O ex-bolicheiro e técnico americano Fred Borden tem tido grande sucesso nos Estados Unidos com o livro "Advanced Adjustments", uma publicação que faz parte de um kit de treinamento para jogadores e que trata da importância do condicionamento mental na derrubada de pinos. Fábio Rezende, claro, já leu tudo de cabo a rabo. Se requisitado, é capaz de citar trechos dessa sua bíblia.
Hermes e Fábio começaram o treinamento psicológico mais intensivo há cerca de três meses, levando os rituais de concentração para a cama. Entre abril e junho, antes de dormir, a dupla brasileira gastava 20 minutos mentalizando o momento da vitória. "Para a mentalização surtir efeito foi preciso fazer com que ela gerasse sensações. Por isso, construímos imagens mentais que estimulariam nossos cinco sentidos", conta Hermes.
Para a visão, escolheram as pistas de boliche, os pinos e as bolas. Foi fácil. Para a audição, os possíveis gritos da torcida e o hino nacional do pódio. Que sonho! Para o olfato, o cheiro do magnésio e das bolas. Detalhes que só eles percebem. Para o tato, o peso que teriam que suportar nos dedos em cada um dos arremessos. Quando chegaram ao paladar, porém, tiveram dificuldade. Nada no boliche parecia ter sabor.
"Aí decidimos encaixar um guaraná no final da visualização só para podermos sentir o gostinho da vitória", conta Rezende, rindo.
Na manhã do dia 24 de julho, quando levaram a prata com 5.102 pinos derrubados, ficando 158 pinos atrás dos americanos, viram todos os processos mentais se materializarem diante de seus olhos. Depois da cerimônia de premiação, que aconteceu sobre as pistas do boliche exatamente como nas outras modalidades esportivas, tomaram, felizes da vida, dois copos de guaraná bem gelado.
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