Morrer em São Paulo
Tomás Chiaverini | Edição 44, Maio 2010
Praguejando e bufando, com gestos apressados de jovem, meu avô vestia o último terno de sua vida. Cabelos brancos, baixo e encurvado, já quase não tinha carne nos músculos. Era osso e pele apenas. Uma pele branca, seca e enrugada. Uma pele de papel. Mas naquela tarde ensolarada de inverno, tomado pela irritação, não parecia ter 92 anos e se movia como um garoto marrento.
Começara pela manhã o impasse. Ele se queixara à minha mãe, dizendo sentir dor nos ombros e estranhar que suas fezes estivessem escuras, pretas como piche. Ao telefone, o sobrinho médico foi categórico. A aparência de piche sinalizava um sangramento grave. Uma hemorragia no estômago provavelmente. Se não fosse internado imediatamente, meu avô morreria em algumas horas.
Mas apesar da gravidade, o prognóstico não pareceu assustá-lo. E a possibilidade de ir ao hospital nem sequer foi cogitada. Ficaria em casa até o corpo se curar sozinho. Para provar a boa saúde, almoçou bem e depois, como de costume, ligou o rádio num volume baixo e se deitou sob seu cobertor puído.
Havia tido uma longa vida, e talvez fosse mesmo melhor que morresse em casa, dormindo, lenta e serenamente se diluindo em si mesmo. Minha mãe e eu cogitamos a hipótese. Mas a família nunca apoiaria a decisão de deixar um dos nossos partir sem ser incomodado com as urgências do socorro. Tínhamos de levá-lo ao hospital, e fui eu o encarregado de convencê-lo.
Tarefa difícil. Primeiro argumentei que quanto mais cedo se internasse, maiores seriam as chances de cura. Ele não se abalou. Então eu disse que, se ficasse, dificilmente sobreviveria. Nada. Se fosse para morrer, meu avô preferia sua própria casa. Sem alternativa, fui além. Narrei, passo a passo, o que lhe aconteceria. Ficaria cada vez mais fraco, desmaiaria, chamaríamos uma ambulância e ele seria levado às pressas a um pronto-socorro. Iria daquele jeito, de pijamas e descabelado. Por outro lado, se fosse logo, poderia vestir seu melhor terno, pentear-se, entrar andando no hospital, conversar com o médico e quem sabe sair de lá com a mesma elegância.
Pela primeira vez ele não se opôs. Ficou em silêncio por alguns instantes, depois levantou com a agilidade de um gato, abriu o armário e começou a se vestir daquele jeito apressado, deixando claro seu descontentamento.
Horas mais tarde, após um longo tempo de espera nas cadeiras modernas da recepção do Hospital 9 de Julho, meu avô finalmente foi chamado. Não pôde conversar com o médico. Mandaram que tirasse o terno e vestisse uma camisola ridícula, de um tecido fino como papel, que ainda por cima lhe deixava as costas e as nádegas à mostra. Mal se deitou na maca da enfermaria e já lhe espetaram diversas vezes a pele enrugada do braço em busca de uma veia que, na falta de remédio melhor, recebesse soro.
Por minha mãe, ele soube que seria sedado para que uma micro-câmera fosse introduzida em sua boca, chegasse ao estômago e indicasse a causa do sangramento. Para isso, contudo, precisava estar em jejum por oito horas, e como almoçara o exame só seria feito à noite. Até lá, fariam outros. Minha mãe tentava animá-lo, conversava, contava piadas, e ele parecia compreensivo. Apesar de assustado, surpreendentemente não reclamava.
Tiraram sangue, ligaram fios para examinar o coração, mediram a pressão, apalparam o corpo todo, um médico inseriu um dedo enluvado em seu ânus para comprovar o sangramento. Seguia sem queixas, meu avô. Foi assim até pouco antes das 20h.
Mais uma vez, a enfermeira tomava-lhe a pressão. Então ele começou a reclamar. Empurrou a mulher, quis tirar a agulha plástica que repousava dentro de sua veia, disse sentir dor. A enfermeira tentou acalmá-lo, continuou a medir a pressão, mas era impossível. Não porque meu avô se debatesse, mas porque não havia mais pressão a ser medida.
Ela gritou por um médico. Vieram várias pessoas. Uma delas ordenou que trouxessem sangue. Cercaram a maca impedindo que minha mãe visse o que acontecia. Ela ainda segurou a mão dele que lhe apertava com força, mas logo teve de sair. Fecharam a cortina.
Mais tarde, o sobrinho médico voltou à sala de espera com notícias. Meu avô, sofrera uma parada cardíaca. Perdera tanto sangue, que o coração parara. Os médicos repuseram o sangue. Enquanto um deles massageava-lhe o tórax partindo algumas costelas, outro lhe enfiava um tubo pela boca, que logo levaria ar aos pulmões, também inativos. O responsável era amigo do sobrinho médico, por isso a equipe se desdobrou na reanimação. Massagearam o tórax magro de meu avô por cerca de 30 minutos, até que ele voltasse à vida. Num milagre sádico-medicinal, ele acordou naquele inferno de máquinas e homens pragmáticos. O tempo que permanecera morto surpreendentemente parecia não ter causado danos ao cérebro.
Após explicar isso tudo, o sobrinho médico perguntou se minha mãe queria ver o pai. Ela titubeou, aflita. Ele insistiu, disse que seria bom para a recuperação. Ela foi. Meu avô agarrou-lhe a mão desesperadamente, grunhindo, impedido de falar devido ao tubo que lhe invadia a garganta. Estava sem a camisola, de fraldas, o peito revestido de hematomas.
Minha mãe teve de voltar logo à sala de espera. Mas a imagem do pai magro e debilitado, amarrado à maca, de fraldas, tendo apenas os olhos para mostrar seu desespero, nunca sairá de sua mente.
Aquele momento de agonia e impotência foi o último contato que meu avô teve com o mundo. Dali foi para a UTI, onde, sedado, passou as 24 horas seguintes. Na noite posterior, pouco depois das 23h, teve outra parada cardíaca e faleceu.
Após a notícia, dormimos poucas horas. Acordamos de madrugada e nos dividimos para cumprir os herméticos trâmites do velório e enterro. Fui encarregado da missão aparentemente mais simples, mas que se mostraria a mais terrível: a liberação do corpo, no hospital.
Antes das 7h, atravessei a cidade, junto de minha namorada, Adriana, que não tinha realmente que passar por isso, mas acompanhou-me bravamente. No hospital, depois de muito perguntarmos, foi ela quem descobriu onde deveríamos esperar pela funerária.
Era uma sala subterrânea. Não havia entrada de pedestres, apenas uma rampa para veículos, que dava na calçada. No final da ladeira, havia um espaço indefinido, que em nada lembrava a vistosa sala de espera. As paredes e o chão eram revestidos de azulejos beges, e havia uma única fileira de cadeiras, forradas de vinil preto esburacado. A iluminação vinha de dois bastões de lâmpada fria, um deles já piscando, prestes a queimar. Não havia ninguém para dar informações. Em um dos cantos o piso estava forrado por folhas secas, que se soltavam de uma planta judiada, carente de sol.
Adriana foi adiante, abriu uma das abas da porta que ocupava o fundo da sala. Colocou a cabeça pela fresta entreaberta e recuou logo. Não disse nada a princípio, mas seu rosto era só desconforto. Encarou-me por um tempo, depois deu por terminadas as buscas: "seu avô está aí dentro", exclamou. Eu não quis vê-lo.
Sem nada a fazer, sentamos nas cadeiras estropiadas e tentamos ler jornal. Um ditador louco berrava do outro lado do planeta ameaçando pôr um ponto final na história da humanidade.
Esperamos cerca de uma hora até que lá em cima o portão se abriu e, de ré, veio descendo um veículo prateado, com o símbolo da prefeitura de São Paulo. O rabecão parou a poucos centímetros das cadeiras onde permanecíamos sentados. De dentro dele, saiu um homem barrigudo, pernas curtas, metido num uniforme azul. Cumprimentou-nos rapidamente, sem olhar nos olhos. Pediu que lhe mostrasse o papel da funerária, comprovando o pagamento. Depois abriu a traseira da caminhonete e as duas folhas da porta que dava para onde estava meu avô.
Andando rápido com suas pernas curtas, fez algumas viagens para descarregar grandes sacos plásticos pretos. Depois parou e pela primeira vez olhou nos meus olhos. Tinha o buço e a testa porejados de suor. "Você vai ter que me ajudar aqui", exclamou. Voltou para a caminhonete, entrou pela frente e, por entre os dois bancos dianteiros, foi empurrando o caixão simples, de madeira, que minha mãe escolhera naquela madrugada. Quando estava com a metade para fora, veio para o meu lado, e juntos erguemos a caixa. Era pesada. Segurando uma das extremidades do caixão, seguindo o funcionário da funerária, entrei pela primeira vez na sala onde o hospital acondicionava os cadáveres.
Era um espaço amplo, forrado por aqueles mesmos azulejos beges. Do teto, à direita, pendiam cortinas plásticas encardidas. No chão, repousavam restos de folhas secas e palha. Não havia refrigeração, nem outros móveis além de mesas destinadas a receber os corpos: pés pintados de bege descascado, tampo de granito sem brilho. Meu avô estava deitado numa delas, bem na entrada, à esquerda, com os pés voltados para a porta. Depositamos o caixão ao lado do corpo, em dois suportes baixos. Preferi não olhar o cadáver e saí logo, prendendo a respiração. Adriana me abraçou, sussurrando indignada.
Após alguns instantes, o homem de azul também saiu da sala. Estava ainda mais suado. Parou diante de mim e me encarou pela segunda vez: "acho que vou preparar ele aqui mesmo", disse sem explicar, e continuou a descarregar sacolas da caminhonete. Algum tempo depois voltou a dirigir-se a mim, dessa vez sem me olhar nos olhos. "Você vai ter que me ajudar mais um pouco".
Conduziu-me até a mesa onde jazia o cadáver. Olhei de longe primeiro, sem coragem de me aproximar. O rosto de meu avô estava completamente roxo e tive a impressão de que exibia um amplo sorriso, qual um palhaço macabro. Quando cheguei mais perto, percebi que tinha sido só impressão. Não havia sorriso. Apenas um rosto duro e inchado, um boneco vazio e inexplicavelmente diferente do que havia sido meu avô. O terno era o mesmo que dois dias antes eu o convencera a vestir.
O funcionário da prefeitura levantou um dos lados do caixão, mantendo-o inclinado na direção da mesa. "Agarra os pés dele e puxa", ordenou. Segurei a barra das calças de meu avô e puxei na direção do caixão. Esqueci como ele era leve e usei muita força. O corpo completamente rígido girou sobre si mesmo, mas o homenzinho de azul era experiente. Não deixou que o giro se completasse. Agarrou o cadáver pelo colarinho e deu um puxão forte. Num baque seco, o corpo endurecido de meu avô caiu dentro do caixão.
Sem dizer nada, saí logo da sala. Adriana me olhou num misto de revolta e curiosidade mas também permaneceu em silêncio. Apenas me abraçou. Evitei encostar as mãos nela. Depois subi até a calçada e acendi um cigarro. Por conta das férias escolares, o trânsito da manhã estava calmo. Coisa rara em São Paulo. Tive receio de que o sujeito da prefeitura precisasse novamente de ajuda e, na minha ausência, apelasse para Adriana. Joguei o resto do cigarro no meio fio sem me preocupar em ser politicamente correto e voltei para o subterrâneo.
Adriana continuava lendo. Também sentei e tentei ler, mas a imagem do corpo rígido de meu avô se impunha sobre qualquer pensamento. Lembrei do filme "A partida", que vira recentemente. Pena aquele japonês violoncelista não trabalhar na prefeitura paulistana. Esperamos. Mas não por muito tempo porque logo o homem postou-se novamente diante de nós. Pediu que eu voltasse lá pra dentro com ele. De tão incômoda e surreal a situação tornava-se ligeiramente cômica. Entrei.
O rosto de meu avô não estava mais roxo. Agora vinha coberto por uma espessa camada de maquiagem, de um tom muito mais escuro do que havia sido sua pele. Era como se tivesse passado muito tempo numa câmara de bronzeamento artificial. O fato de uma vez ter existido vida naquele corpo parecia cada vez mais estranho. O sujeito de azul agarrou o colarinho de meu avô e o puxou com força, colocando-o sentado. A cabeça endurecida veio junto, ereta, indiferente. O homenzinho mandou que, de dentro de um saco plástico, eu pegasse um bom tanto de palha e espalhasse no caixão, sob as costas do cadáver. Eu obedeci, o mais rápido que pude. A palha exalava essência de cânfora.
Quando terminei, o homem deitou novamente o corpo. "Pronto. Assim ele fica mais alto", exclamou. Eu quis sair logo, mas ele me impediu. Mandou que eu me aproximasse. Levantou a ponta do grande nariz espanhol de meu avô e fez com que eu olhasse o interior das narinas. "Eles já colocaram um pouco de algodão lá, tá vendo?", disse apontando. Assenti sem dizer nada. "Então… Porque tá um pouco perigoso, isso. Pode ser que ele comece a vazar", prosseguiu. "Posso dar um reforço, se você quiser". Novamente concordei, estupefato.
O sujeito continuou. Levantou uma das mangas do paletó de meu avô, e mostrou o antebraço. Estava envolto em filme plástico. "Aqui a pele já tinha rasgado. Ia começar a cheirar. Então coloquei um pouco de plástico." Os dedos, cruzados sobre o abdômen, haviam assumido uma tonalidade verde amarelada, com manchas roxas. Perguntei se não era possível maquiar um pouco as mãos, para esconder aquelas cores macabras. Ele concordou.
Saí novamente, mas dessa vez demorou bem pouco para que ele me chamasse de volta. Fez com que eu o ajudasse a colocar a tampa no caixão. Era pesada também. Porém quando a depositamos, não encaixou no local correto. Ele não percebeu, ou fingiu não perceber, mas eu logo notei o problema. O corpo havia ficado alto demais e o nariz de meu avô impedia que a tampa se acomodasse corretamente. O sujeito fez força e, sem se preocupar em amassar o rosto do cadáver, aparafusou os quatro prendedores de metal. Mais tarde junto com o segurança do hospital, ainda tive de carregar o caixão até a caminhonete.
Depois de tudo, o sujeito de azul, com o rosto todo suado, finalmente me perguntou o que eu era do falecido. "Sou neto", respondi antes de ir embora.
Em casa tomei um longo banho, mais quente do que o necessário. Ensaboei as mãos várias vezes, e esfreguei o corpo como se tentasse me livrar do vírus da peste. A espuma do sabonete tinha um cheiro igual ao da palha que forrava o caixão.
Quando cheguei ao velório já havia alguns parentes ao redor do caixão aberto. Meu avô estava irreconhecível. No alto do seu nariz havia um corte provocado pela pressão da tampa. A base que recobria as mãos não dava conta de esconder as manchas roxas, e de dentro do punho do paletó era possível vislumbrar uma parte do filme plástico que envolvia o antebraço. O restante de seu corpo estava todo recoberto por flores vagabundas amarelas e brancas. Quase não se notava o terno que ele vestia.
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