O punk paraense
Conheça de perto uma das atrações musicais do III Festival Se Rasgum, de Belém do Pará
| Edição 27, Dezembro 2008
São uma e meia da manhã de um sábado, em Belém do Pará. Cerca de 800 pessoas ululam enlouquecidas diante das atrações musicais do III Festival Se Rasgum, festa de música independente organizada anualmente na cidade. Em um canto, avesso à balbúrdia, um senhor de óculos escuros, chapéu de pescador e camisa florida sopra sozinho uma gaita, à espera do momento em que entrará no palco, para o penúltimo show da noite. Aos 82 anos, João Laurentino da Silva, ou simplesmente Mestre Laurentino, é um dos mais célebres – e recentes – ícones da cena punk paraense.
À diferença de Van Gogh, que só teve o talento reconhecido postumamente, Mestre Laurentino foi descoberto em vida, ainda que num momento tardio. Seu début musical aconteceu aos 14 anos, quando empunhou sua primeira gaitano show de calouros da antiga PRC-5, atual Pará Rádio Clube do Pará. Inexperiente, acabou vaiado ao tocar um pandeiro quadrado de fabricação própria, feito com couro de mucura, espécie de gambá da Amazônia. A carreira que, para ele, parecia promissora, foi subitamente abortada. Dali em diante, Laurentino diz ter composto valsas, choros e marchinhas para consumo próprio, que, na falta de gravações, caíram no esquecimento. Aos 17 anos, calejado pela dura realidade, desistiu de ser artista para trabalhar como mecânico de aviões no Aeroporto Internacional de Val-de-Cans, usado como base dos Aliados durante a II Guerra Mundial.
Foi do contato com os soldados e oficiais norte-americanos, cujos aviões reabasteciam em Belém antes de seguir para a África, que o então jovem Laurentino se inspirou para compor seu principal hit, Lourinha americana, sobre um rapaz que não tem a paixão correspondida por ser negro e brasileiro. “Essa lourinha americana/ Está querendo me esculachar/ Foi dizendo que eu sou neguinho, e bem neguinho/ E que na América eu não posso entrar”, dizem os primeiros versos. “Mas o que eu mais me admiro/ É de ver que o americano/ Quando chega no Brasil / Com negro vem se misturar”, continuava Laurentino em uma referência velada aos soldados que freqüentavam os bordéis da zona portuária de Belém. Como já era de praxe, o sucesso foi nulo.
A canção e o cantor levariam cinco décadas para serem descobertos. E teria levado ainda mais tempo se não fosse por um acaso, quando, aos 72 anos, o então mecânico aposentado, pai de onze filhos e netos a perder de conta, se convidou para abrir um show da banda de rock Mangabezo, em Belém. Na platéia estava o antropólogo Hermano Vianna, que, rodando o país em busca de personagens para a série de documentários do projeto Música do Brasil, imediatamente convidou-o a participar com o hit punk-rock. “Até hoje ganho um dinheiro por causa dessa música”, revela Laurentino, que, assim, saiu do ostracismo para entrar de cabeça no mundo dos pop stars. Hoje, ele se apresenta em média uma vez a cada dois, cobrando cachê de 3 mil reais. De segunda a sexta, dedica-se à gravação de seu primeiro CD solo, um disco duplo com todas as músicas que compôs em 68 anos de carreira.
É hora do show. Os músicos estão no palco e o local começa a encher. Laurentino troca a camisa por uma túnica e o chapéu por um gorro de candomblé – é seu uniforme. Tal qual um rapper americano, adorna o pescoço com um colar dourado, de corrente grossa, com um imenso cifrão pendurado na ponta. Entorna um copo de vinho barato, que apelida de “pimenta” – “Sem ela não tem show” – e, por fim, guarda a dentadura: “Prejudica a sonoridade da gaita.”
Assim que a massa de fãs, adolescentes na maioria, avista a figura magra e arqueada, tem início uma enxurrada de aplausos e berros. Acompanhado dos sete músicos da banda Laurentino Style, o octogenário dá pulinhos, dança e incita a platéia. Logo de início, canta Terra dos bandeirantes, composta após sua primeira viagem a São Paulo, em 2003, quando tocou na Casa das Rosas. A música fala do metrô, dos prédios da avenida Paulista, mas conclui que bom mesmo na cidade são as “mulheres boas”. Laurentino guarda ótimas recordações da viagem: foi lá, durante a apresentação, que ganhou a alcunha de “vovô punk” ao enfrentar um grupo de policiais que queria interromper o evento. Conhecedor do Código Penal, Laurentino aproveitou-se do artigo 65, inciso I, que atenua a pena de pessoas acima dos 70 anos, e, tal qual Zé Celso Martinez (que também deve beber no mesmo argumento), mostrou suas partes íntimas para um dos policiais. “Olha aqui pra você! Vai me prender? Quero ver se fico um dia na cadeia”, bradou. O show continuou.
São 2h15 da manhã. Com oito músicas contadas, é hora de encerrar a apresentação. Encharcado de suor e com um fiapo de voz, Laurentino improvisa um solo de gaita. Na platéia, o aglomerado de jovens balança a cabeça e se estapeia como nos shows de heavy metal. O diretor de palco avisa que a banda só terá mais cinco minutos. Soam então os primeiros acordes de Lourinha americana. Emocionado, o povaréu acompanha a letra e grita o nome do autor em uníssono. Ao sair do palco, fãs, jornalistas e músicos o cercam para tirar fotos e pedir autógrafos. Aos 82 anos, Mestre Laurentino, que se auto-intitula “o roqueiro mais antigo do Brasil”, finalmente vive os seus dias de glória.
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