Sai Fábio Jr., entra Mozart
O que se ouve nos trens e metrôs do Rio e de São Paulo
Paula Scarpin | Edição 11, Agosto 2007
Três vezes por semana, Lininha Maria da Silva pega o trem na estação Presidente Altino, perto do trabalho. Uma só estação, e ela desembarca no final da linha, em Osasco. Lá, todo mundo desce. Lininha busca um cantinho quieto para sentar. 24,3 km a separam de casa. Significa ir até a outra ponta da linha, na estação de Jurubatuba. A uma velocidade média de 50 km/h, a viagem rende quase meia hora de cochilo. Há pouco mais de dois meses, a qualidade do sono dela melhorou bastante. O fato se deve à chegada da música clássica nos alto-falantes da linha C. "Antes, quando tocava outras coisas, o pessoal vinha cantando, e eu não gostava. Aí tiraram, foi melhor. Mas agora ficou bom mesmo é pra dormir", explica feliz.
Há os que não estão interessados em dormir, e se incomodam com a música. Para evitá-la, Emerson Dioniso traz a própria trilha sonora a bordo do seu celular munido de mp3. Com os fios do aparelho correndo por dentro da roupa, os fones que saem pela gola da camiseta despejam nos seus ouvidos uma seleção de Creed e Charlie Brown Jr. "Pra mim, era melhor antes, tudo misturado. Essa música clássica não dá". O antes a que Lininha e Emerson se referem era há três anos, quando tocava de tudo no trem da linha C.
Esses trens, frutos da gestão Mário Covas, foram fabricados na Espanha e na Alemanha, e já vieram com o equipamento de som instalado. No começo, era festa: seguindo seus próprios critérios musicais, os funcionários da manutenção que tinham acesso à disqueteira decidiam o que o pobre trem iria ouvir. Até o maquinista tinha que se submeter ao gosto dos mecânicos. O equipamento seguia com o trem, claro, mas ficava trancado, e quem tinha a chave não estava mais a bordo – sim, eram os homens da manutenção. Aos maquinistas, só restava comandar o controle do volume. Os três técnicos que repartiam os turnos traziam de casa os CDs preferidos. "De manhã era mais popular, forró, axé… tocava sempre aquela do Almir Guineto com os Racionais, a Sem perceber do Ceceu Muniz. A gente vinha batucando. De noite era mais relaxante, um jazz", lembra Eduardo Batista, que há seis anos pega o trem pela manhã na estação Santo Amaro, desce na Hebraica-Rebouças, e faz o caminho de volta no fim do expediente.
"A gente recebia muita reclamação, mas esse povo nunca se contenta", explica Maria de Lurdes Ramos, que trabalha no guichê de atendimento ao usuário na estação Santo Amaro. "Se tocava forró, eles queriam axé; se tocava romântica, queriam rock. Não tem jeito". Ela conta que a CPTM chegou a fazer uma enquête sobre que tipo de música as pessoas gostariam de ouvir. "Deu MPB. Aí colocamos Fábio Jr, umas músicas lindas, mas reclamavam do mesmo jeito." E assim, oscilando entre Ceceu Muniz e Fábio Jr., a barca foi indo. O sistema durou seis anos, de junho de 2000 e junho de 2006. Só foi interrompido porque, afora os usuários, quem também não gostou nada da história foi o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o ECAD, que controla direitos autorais. Como ninguém recolhia os direitos de veiculação das músicas, a CPTM recebeu uma notificação do ECAD.
Foi nessa época que Ana Cândida Sammarco entrou em cena. Advogada e assessora do presidente da CPTM, ela foi chamada para regularizar a situação. Não pegava bem uma empresa pública continuar tungando os nossos artistas. "Tivemos que chorar bastante para conseguir baixar o valor da multa para um valor que pudéssemos pagar, R$122 mil, e ainda conseguimos parcelar o pagamento em 12 vezes". Concomitantemente, toda música – seja ela qual fosse – foi imediatamente suspensa. Só agora, depois de superado o trauma, a CPTM decidiu devolver música aos trens. Dessa vez, fazendo tudo certinho. Foi decidido que o cardápio se restringiria à música clássica "porque a música é voltada para a população de nível mais baixo, que não tem muito acesso à cultura", explica Sammarco. Mas só os ingênuos podem acreditar que o fato de a maior parte do repertório clássico pertencer ao domínio público tenha sido uma consideração secundária na hora de levar cultura às massas.
Boa parte do repertório da música clássica foi composta até o século XIX. Não há Fabio Jr. para cobrar direitos autorais. Sobram apenas os direitos conexos, relativos aos intérpretes e produtores fonográficos. "Conseguimos negociar com o ECAD uma taxa de R$ 589,85 por mês, para circular nos 19 trens", explica Ana Cândida. "Compramos alguns CDs de coletânea avulsos, bem baratos, para não precisar fazer licitação".
O Metrô Rio, que também tem um sistema de som em cada estação, encontrou uma solução diferente: fez um acordo com a Orquestra Sinfônica Brasileira. A orquestra envia uma seleção de músicas em domínio público, e o departamento de comunicação estabelece o repertório. É um bom negócio, pois elimina a etapa dos direitos conexos. A seleção que os usuários do Rio ouvem, variada e tecnicamente impecável, faz bem mais sucesso do que a despejada nos trens da CPTM. O Metrô Rio chegou a pôr duas seqüências de 30 minutos no seu site, e desde então a média de downloads tem sido de 1200 por mês.
Quanto à disqueteria cofre-forte, nada mudou. Pelo contrário. Além da chave, a engenhoca agora ainda é protegida por uma placa de metal afixada com quatro parafusos apertados. Os funcionários da manutenção ainda têm acesso a ela, mas agora não podem mais trocar os CDs. "Os CDs ainda estão coma gente. Se algum dia resolverem voltar atrás, é só mandar", torce Edson Lemos, o técnico da tarde, cuja predileção musical pende francamente para os lados da MPB. Enquanto pôde, nunca deixou de enfiar um Milton Nascimento na programação.
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