Uma esquina-protesto
Quem disse?
| Edição 11, Agosto 2007
Na segunda-feira, 16 de julho, Robinho desembarcou em São Paulo com a seleção brasileira de futebol. Na bagagem, trazia a Copa América, ganha em terras bolivarianas, e mais três troféus individuais: o primeiro, pela artilharia da competição; o segundo, por ter sido eleito o melhor jogador da competição. O terceiro? Ele não lembrava (era o de "atleta revelação"). Como quase não se lembrou de comemorar seu segundo gol na vitória de 6×1 contra o Chile, pelas quartas-de-final. Como gol sem comemoração não vale, passado o branco inicial, fez o que se esperava dele: comemorou. Enfiou o polegar na boca e se fez passar por um bebê de chupeta. Não era a primeira vez que fazia isso. A essa altura, o Brasil inteiro já sabia que a noiva de Robinho estava grávida.
No jogo final contra a Argentina, o esforçado lateral Daniel Alves recebeu, aos abraços, os companheiros que vieram comemorar com ele um gol-contra do zagueiro argentino Ayala. Era um gesto simpático, já que o cruzamento que suscitara a trapalhada de Ayala tinha saído dos seus pés. É bem verdade que teria sido mais divertido comemorar abraçando Ayala, mas aí sairia briga. Naquela altura da partida, a taça já era praticamente nossa. Seria bobagem cutucar a fera argentina.
Além do quê, bonito mesmo é comemorar gol que você mesmo marcou. E Daniel Alves teve a sorte de marcar um só dele. "Ufa", deve ter pensado. Afinal, ele precisava dedicar pelo menos um gol a uma tatuagem que tem no braço em homenagem a mulher, namorada, noiva ou filha.
Não foi a primeira vez que o Brasil viu um lateral esforçado desviar uma comemoração coletiva para o aconchego do seu mundinho particular. A cena foi imortalizada pelo capitão Cafu, na hora de levantar a taça da Copa de 2002. Sobre um pedestal improvisado, o planeta inteiro viu seus lábios amantíssimos dizerem "Regina, eu te amo". Houve comoção geral. Uma ou duas lágrimas furtivas correram pelo rosto dos repórteres de campo. A voz do locutor oficial do Brasil tremeu.
O gesto de Cafu deu cria. Minutos antes da conquista da Copa América, a seleção masculina de vôlei confirmou o que já se sabia: trata-se de uma das maiores dinastias esportivas da história do país. Era o sétimo título da Liga Mundial, o quinto seguido. No lugar do "100% Jardim Irene" – frase escrita na camisa do mesmo Cafu de Regina, que naquele dia de conquista decidira confessar publicamente seu amor não só à esposa, mas também ao bairro onde crescera -, cada jogador de vôlei subiu ao pódio com o nome da mulher amada estampado na camisa. Dois futuros pais enfiaram uma bola por debaixo da camisa. "Lindo", emocionou-se o locutor. Com um pouco menos de candura, o jogador Giba ocupou o lugar do árbitro e articulou em alta e boa leitura labial: "Nós somo fo-da! Foda!" Era para que não ficasse dúvida – caso houvesse.
Quem primeiro marcou a história esportiva com essa declaração foi Neto, craque do Guarani na final do Paulistão de 1988, em jogo contra o Corinthians. Depois do seu gol de bicicleta na primeira partida da final, lançou o agora banal "Eu sou foda!". Só para dar a Jair Pereira, técnico do Corinthians – o campeão -, o direito à frase do ano: "Foda sou eu". Era o primeiro esboço da tendência, hoje universal, de privatizar as conquistas esportivas.
Infelizmente, final de Paulistão não faz história. Para que a mania se tornasse hegemônica, era preciso que desse sua cara num palco maior. Foi o que aconteceu no dia 4 de julho de 1994, quando, em plena Copa do Mundo, Bebeto comemorou seu gol contra os Estados Unidos embalando uma criança imaginária. Para qualquer bom entendedor, a partir daquele momento a mensagem era clara e dizia: "O que vocês acabaram de assistir é meu". De lá para cá, virou quase obrigação. Um gol ou uma vitória não estão completos se o atleta não tiver algo a declarar sobre sua vida pessoal.
Às vezes, tais declarações se tornam exuberantes demais. Há pouco tempo, Vasco e Fluminense empataram em 1×1 no Maracanã. Em termos de futebol, foi uma miséria de jogo. Ainda assim, as manchetes do dia seguinte foram espalhafatosas. Tratavam da expulsão do vascaíno Abedi. Ele havia comemorado um gol se arrastando pelo gramado e dando soquinhos na bola. Segundo o árbitro, foi expulso por "comemoração demais". Para tudo deve haver uma medida de discrição, e naquele momento Abedi ultrapassara uma certa barreira Narcisa Tamborindeguy de exibicionismo.
No mesmo domingo da Copa América e da Liga Mundial de Vôlei, a menina Bárbara Leôncio cruzou em primeiro lugar a linha de chegada dos 200 metros rasos no Mundial de Atletismo para menores. Ao invés de se dizer invencível, ou de dedicar sua vitória à mãe, preferiu desabar em prantos. E ficou ali, diante de todos, exprimindo a exata medida de uma vitória conquistada em pouco mais de vinte segundos.
Bárbara Leôncio não deve saber, mas ao não transformar sua vitória em objeto de uso pessoal, retomava uma boa tradição do esporte brasileiro. O jogador Gerson ficou estigmatizado por uma campanha publicitária de cigarros, mas parecia saber qual o verdadeiro sentido dos grandes momentos esportivos. Ao desempatar a partida final da extraordinária Copa de 1970, correu em direção ao banco brasileiro balbuciando "Ai, minha Nossa Senhora!". Era mais espanto do que fervor religioso.
Vitoriosa depois dos inapeláveis 4×1 aplicados na Itália, a maior seleção de todos os tempos subiu às tribunas. O capitão Carlos Alberto avançou e recebeu a taça. Virou-se para Pelé, que apontava o local exato de onde deveria erguer o troféu. Dali, daquele ponto, o estádio inteiro veria a cena solene. Carlos Alberto deu um passo adiante, ocupou o lugar, e antes de erguer a taça, aplicou-lhe um beijo doce, desses que as noivas recebem no altar. Não houve brasileiro que não se sentisse abençoado.
Naqueles tempos, seria impensável imaginar Gerson tirando a camisa da Seleção para revelar, por baixo, uma camiseta anunciando que sua alma pertence a Jesus. Hoje, espantoso é jogo em que a cena não acontece. Imediatamente depois da fúria de um gol marcado, os atletas de Cristo reservam um momento íntimo para dialogar com Deus: dedos apontando para o céu, olhar de bom menino, lábios que repetem versos de algum salmo. Kaká talvez aproveite para incluir algumas palavras em intenção da Bispa Sônia, que anda precisando tanto.
Diogo Silva, primeiro brasileiro a ganhar uma medalha de ouro no Pan do Rio, não incluiu muita gente nas suas comemorações. Preferiu dizer que o esporte o tirou das ruas e dedicou o título a seu grupo e a seu mestre. Tudo bem que ele correu para a beira da arquibancada e ficou alguns longos minutos abraçado à mãe, mas, na entrevista, nada disse sobre ela. Mãe é assunto particular. Não deve se misturar com medalha de ouro.
O tricampeão mundial Nelson Piquet também não dedicou seus títulos a ninguém. Avesso ao politicamente correto, seria uma surpresa se alguma pieguice brotasse da sua boca. Seu sucessor Ayrton Senna preferia comemorar suas vitórias agarrando a primeira bandeira brasileira que visse pela frente. Diante da TV, todo mundo se sentia parte da coisa.
E o Abedi? Este precisou ser expulso para entender que ainda não era uma celebridade. Cumpriu suspensão e viu a imprensa contar sua história. No jogo seguinte, entrou em campo e correu para avisar ao árbitro: se ele viesse a fazer um gol e comemorar sentado socando a bola, seria uma homenagem ao filho deficiente com quem ele joga bola daquele jeito. Ah, bom.
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