Uma fábula
O vencedor e os finalistas do mês
| Edição 167, Agosto 2020
UMA FÁBULA
João Paulo Campos Peixoto
–Senhor presidente, o senhor viu… roinc, o senhor viu que estão noticiando no Jornal Florestal o seu envolvimento no caso do esconderijo do Maurício Albatroz, aquela cuíca que sumiu? – o advogado, porco que era, quando nervoso, roncava.
– Mas o fato é que jamais escondi Maurício Albatroz, você sabe disso, Frederico. Tudo que eu fiz foi pra proteger a minha espécie. Isso não é ilegal, é cooperação, pô. Além do mais, ele foi encontrado no seu sítio.
– Mas, senhor, todo mundo sabe que o Maurício Albatroz é uma cuíca-d’água, enquanto o senhor é um burro. Roinc. Roinc. Não dá pra ter cooperação entre espécies tão distintas. Roinc. Precisamos pensar em alguma coisa. Roinc.
– Frederico, você não é porco e tá aqui me ajudando? Isso é culpa sua, Frederico, quem escondeu Maurício Albatroz foi você. Agora lide com essa questão, invente alguma coisa para o Jornal Florestal imediatamente.
– Senhor, roinc… roinc. Senhor, eu escondi para proteger, roinc…
Enquanto o excelentíssimo senhor presidente burro e o advogado porco discutiam, sem sucesso, Maurício Albatroz já havia sido apreendido. Naquele mesmo instante, a cuíca negociava com os pardais do Poder Florestário uma delação envolvendo o presidente. As cuícas-d’água são animais raros no Brasil, talvez por isso tenha sido tão difícil apanhar a fujona. O Jornal anunciava:
– A cuíca-d’água Maurício Albatroz foi encontrada hoje pela manhã no sítio pertencente à família do porco Frederico, advogado da família do excelentíssimo senhor burro presidente. Nesse mesmo dia, Frederico foi visto nas imediações do palácio tronco-alto na companhia do burro. Albatroz tinha hábitos noturnos e vivia bem em terra e água, qualidade de uma cuíca que se adapta às circunstâncias. Alegava que mesmo sendo um animal pequeno, abre aspas, mandava e desmandava em animais maiores como burros e porcos, fecha aspas. Hoje, no Jornal Florestal.
– Segundo a investigação – continuou a outra âncora – foi preciso invadir o sítio onde Albatroz foi localizado dormindo. As cuícas são animais que dormem durante o dia. Na parede do quarto, havia um cartaz a favor do desmatamento e da extinção de espécies exóticas. Sua parceira ainda não foi localizada, está desaparecida junto com o filhote do casal, escondido em seu marsúpio.
O presidente e o advogado escutavam o noticiário enquanto tentavam bolar um plano para se safarem.
– Senhor presidente, roinc… Acho que o senhor poderia convocar os ruminantes. Roinc, roinc. Eles são sua base eleitoral, foi através da rede de apoio deles que o senhor conseguiu se eleger. Com o rebanho de ruminantes e a ajuda daquele esquema de papagaios, conseguimos convencer todo mundo de que o senhor não tem nada a ver com isso. Os animais em geral têm memória fraca.
Assim fizeram. O burro e o porco, unidos, acabaram se esquivando das acusações. Era assim que acontecia nessa floresta, tudo acabava esquecido. Com ajuda dos ruminantes e dos papagaios, os outros animais acabavam se esquecendo de tudo que era feito contra eles. Essa era uma floresta absurda. Os animais lutavam por sua própria extinção, protestavam a favor do corte das árvores e da escassez de recursos para aqueles que eram mais fracos e não conseguiam caçar. Desde que o burro se mantivesse no poder, tudo bem. Até que acabaram as árvores, não havia mais grama para que os ruminantes se alimentassem. Quanto aos que caçavam, uns começaram a matar os outros. E o burro lá, tranquilo, junto com o resto de sua espécie. Quando questionado, só sabia repetir:
– Fazer o quê? Eu sou um burro, não posso fazer nada! Vocês que me colocaram aqui! A culpa é de vocês!
E era mesmo. Da floresta inteira.
*
CONCURSO LITERÁRIO
Cubra-se de coragem, respire fundo e venha se arriscar no desafio Encaixe a frase.
Todo mês propomos uma frase aleatória e um ingrediente improvável, que deverão ser incorporados a uma história com começo, meio e fim. Os participantes devem enviar um texto de até 5 mil toques ou uma HQ de 1 página até o dia 20 de agosto para: concurso@revistapiaui.com.br.
Se for o escolhido, você será publicado na próxima edição da piauí.
Participe e submeta-se ao nosso impiedoso escrutínio.
FRASE A SER ENCAIXADA:
A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?
Elemento estranho: Periquita
QUEM GANHOU: A frase do mês passado era “O fato é que jamais escondi Maurício Albatroz”, e o elemento estranho era “cuíca-d’água”. O vencedor é João Paulo Campos Peixoto, de Uberlândia, que criou uma fábula tão improvável que Deus nos livre de um dia passarmos por isso.
Os demais finalistas estão abaixo.
Confira aqui as regras do nosso paleolítico certame literário.
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Textos finalistas
DE AMORES E TATOOS
Paulinho Assumpção
Maurício sabia que, naquele sábado ensolarado, a mulher que estava na sua frente, queria muito mais do que uma água de coco. Seus olhos pediam bem mais do que isso. Aceitou o convite para o passeio de carro no fim de tarde. A grande diferença de idades, ele relevou; o que são trinta anos em um mundo em que tudo acontece tão rápido? Em um tempo que passa tão depressa?
Em poucas semanas mudou-se para o apartamento de Inês. Apesar de depender dela até para o cigarro, se entendiam bem. Passavam finais de semana no litoral paulista ou em Teresópolis, onde ela tinha um pequeno sítio. Levavam os dias como se houvessem feito um contrato, uma troca de favores. Pouco, ou quase nada, sabiam da vida um do outro. Inês achava estranho o fato de ele não ter amigos, não usar celular, não ter email, essas coisas que hoje todo mundo, ou quase todo mundo tem. Ele respondia que era sozinho no mundo. Perdeu o gosto pela vida desde que lera um livro de um poeta português, do qual não se lembrava o nome.
A inquietação de Inês só começou no dia em que assistiu pela TV a reportagem a respeito de um homem jovem que se aproximava de mulheres não tão jovens como ele, com a intenção de aplicar-lhes golpes financeiros. Três mulheres haviam sido vítimas, mas acreditava-se que o número poderia ser maior, já que muitas ficavam constrangidas em procurar a polícia.
O jovem acusado tinha uma característica singular; possuía, no lado direito da bunda, a tatuagem de uma cuíca-d‘água.
Nem por um momento, Inês supôs que Maurício pudesse ser esse homem. Ela já lhe oferecera um carro e ele recusou. Lembrou-se, porém, que partes do corpo dela, que não os seus olhos, é que já haviam visitado aquele terreno escondido no corpo de seu amante. Maurício também não gostava de que tomassem banhos juntos, e tinha o costume de vestir-se logo que saíam da cama.
Esperou, então, até o dia em que ele bebeu um pouco acima do costume, abaixou-lhe as calças e, de lupa na mão, explorou a bunda de seu parceiro. Chegou a dar um pulo para trás quando viu, apesar de bem pequena, a bela tatuagem de um animalzinho em preto e branco. Logo reconheceu a cuíca-d’água.
Sentiu-se confusa. Maurício nunca lhe pediu nada. Recusou o carro que ela lhe oferecera.
Não procurou a polícia. Tinha dúvidas quanto a ele vir a ser mesmo o tal golpista. Também nada falou para Maurício sobre as suas desconfianças. Decidiu investigar por conta própria. Qualquer movimento em falso e poderia perdê-lo.
Será que ele me ama de verdade? Indagava a si mesma. Apaixonou-se por mim? Não era verossímil. Sabia que não era mais atraente. Há muito perdera os seus encantos da juventude. Talvez estivesse sendo cauteloso porque quer mais, refletia ela. Quer tirar mais de mim. Já não lhe interessa pequenas quantias, pequenos bens. Será que deseja o sítio ou a casa de Santos?
No limite da angústia, querendo ter a certeza se era amada ou não, foi ao cartório e mandou fazer uma procuração em nome dele. Foi o seu presente de aniversário.
Decorridos três meses das comemorações dos 25 anos de Maurício, nenhuma movimentação suspeita havia sido feita nas contas bancárias de Inês. Sentiu- se traída. O que ele desejava realmente? Amor? Isso não estava no combinado. Ele não iria modificar aquela história. Que assumisse, então, o seu papel.
Exigiu que Maurício transferisse o sítio para o seu nome. Que fizesse isso ou que fosse embora.
Com alívio, dias depois, Inês recebeu uma comunicação do cartório informando da transferência do sítio para o nome de Maurício. Ah! E o conjugado de Ipanema também. Ela sorriu satisfeita; o conjugado não estava no trato.
O gerente farejador de seu banco, estranhando a transação realizada, entrou em contato com o detetive que investigava o esperto sedutor. Logo, polícia e repórteres bateram a sua porta.
A senhora sabia que o seu namorado era o homem procurado?
Qual a sua relação com esse estelionatário?
Por que não denunciou Maurício Albatroz à polícia? Por que o manteve escondido durante todo esse tempo?
Inês, conseguindo desvencilhar-se da enxurrada de perguntas, só conseguiu responder: O fato é que jamais escondi Maurício Albatroz. O homem que está comigo chama-se Maurício Albuquerque e, além do mais, sua tatoo é do lado esquerdo da bunda…
Afastou-se do pequeno grupo que a cercava e, indo em direção a Maurício, beijou-lhe apaixonadamente.
*
PINTURA RENASCENTISTA
João Bonorino
É interessante como cheiros marcam nossa vida. Depois de tanto tempo continuo ainda lembro do cheiro forte de alcatrão e bolo quente da casa da vó Alba. A casa era inesquecível por si só: Paredes vermelhas com detalhes dourados (estilo realeza brega) contrastavam com móveis comuns e as mais aleatórias peças de decoração, indo de estátuas de capivaras, passando por quadros de gatos e até mesmo uma cuíca-d’água empalhada. Tudo na casa da vó Alba era inconstante e mutável, menos o sorriso gigante (e brilhante) e o abraço mais apertado que você já conheceu. Era um fenômeno criativo da natureza, uma verdadeira rainha do subúrbio.
A história de origem de dona Alba como a conhecíamos era tão misteriosa e excêntrica como a própria figura de minha avó. Maria Cecília Albatroz vivia em uma pequena casa com seus quatro filhos ainda pequenos e seu marido Maurício. Era uma moça quieta, melancólica, de pouca vida e cor. Tudo começou a mudar quando seu marido desapareceu, sem deixar carta, aviso ou vestígio de onde fora.
O que se passou foi um longo mês onde Maria Cecília viveu reclusa um luto intenso e transformador. Deixou os filhos com sua mãe para não serem testemunhas da tristeza daquela nova realidade. Enfim, Maria Cecília Albatroz renasceu como Dona Alba, a artesã que sempre quis ser. Trocou os grandes e sóbrios saiotes por vestidos coloridos como carnaval. Pintou as unhas e cabelos nas cores mais belas, combinando com as estações. Sua voz voltou marcante como seu sorriso, que perdera totalmente a timidez e havia ganhado um brilho extra com o dourado dente novo. Os filhos desconheciam aquela potência, mas rapidamente apaixonaram-se pela renovação. Dona Alba era uma figura impossível de não amar. Até mesmo as figurinhas mais carolas do bairro amavam odiá-la.
A chegada dos filhos à velha-nova casa acompanhou a descoberta dos talentos de Dona Alba, que presenteou cada um com um quadro de couro, contendo pinturas de um céu claro de nuvens macias. Até hoje não vi outra obra de arte executada com tamanha paixão. Com esses mesmos dotes, minha avó criou sozinha os quatro filhos, pintando, bordando e cozinhando quaisquer coisas que as pessoas precisavam. Claro, com preferência pelas que tinham mais demanda, pois ser mãe na solitude exige pensamento rápido e estratégico.
Com as novas cores, a casa ganhou sua pièce de résistance: Um grande quadro de couro no centro da sala, onde todas as pessoas da família estavam pintadas. Menos “seu” Maurício. Quando os filhos perguntaram para a mãe, ela sempre respondia: Ele está junto de todo mundo, seus bobos, ele ‘tá junto.
Quando cresceram e saíram de casa para construir seus próprios ninhos, minha avó viveu como uma rainha no seu castelo: Ia à feira, jogava no bicho, visitava suas comadres, tomava suas doses, fumava seus cigarros, tinha seus e suas amantes, ensinava suas artes no atelier criado no puxadinho da velha casa e seguiu pintando cada um dos novos membros da família no grande quadro da sala.
Lembro de sua felicidade quando chegava seu aniversário, um dos rituais mais esdrúxulos de dona Alba. Sempre gostava de ser presenteada com um novo jogo de louças. Assim que acordava no seu dia, separava o aparelho de jantar antigo dos armários. Levava para o jardim cada copo, prato, pires, xícara e louça que tinha. Retirava o semi-permanente disco do Wando da vitrola e o substituía por Black Sabbath (preferia Dio que Ozzy). Passava o dia cantando e quebrando cada uma das peças no muro de casa. Dizia que aquilo garantia um ano inteiro de calma e paciência. Curiosamente, conforme a idade chegou, comecei a entender o que a motivava, e hoje em dia me arrependo de não ter aderido ao ritual mais cedo.
Uma das últimas vezes que vi vovó Alba foi no seu aniversário de 90 anos.
Vovó sentava em uma das poucas poltronas de sua sempre estranha casa, respirando com dificuldade. Meu pai, tios e tias debatiam sobre sua infância com ela, sempre tentando saber mais de seu pai, e o que a mãe tinha a dizer sobre o fatídico desaparecimento. Sempre sentiram que ela escondia algo. Detetives particulares, polícia e até um gringo metido a sherlock tentaram descobrir para onde meu avô foi, sem sucesso.
Depois de tanta insistência e discussão, Dona Alba tirou o oxigênio de seu rosto, acendeu um cigarro e pôs-se a rir. A raiva e a confusão no semblante dos filhos aumentou a temperatura do ambiente. Após alguns minutos, Dona Alba enxugou as lágrimas de riso, despiu-se de seu robe e revelou marcas e feridas antigas e profundas como rios, calando a todos na sala. Antes que alguém pudesse respirar e interromper o silêncio palpável como o patê de atum dos canapés, disse: O fato é que jamais escondi Maurício Albatroz. Caminhou até o quadro de couro da família, tocou-o com carinho e completou: Ele sempre esteve junto de todo mundo. Canapés sendo regurgitados em direção ao chão, filhos à beira da insanidade e as crianças chorando não interrompiam um dos últimos cigarros e sorrisos de dona Alba.
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NOVELA MEXICANA
Maria Estela Andrade
Quarentena, dia…dia… mas que dia é mesmo? O auxílio emergencial não caiu ainda, então não é final de mês. Acho que estamos em julho, ou seria junho? Não, acho que é julho mesmo, faz muito tempo que não chove. A folha do calendário na cozinha ainda está em abril, não troquei porque gosto da imagem do bolo desse mês, me acalma. Só sei que não é final de semana porque o alarme do celular tocou há cinco minutos, isso quer dizer que daqui mais cinco começa a novela.
Eu tentei, juro que tentei ser produtiva no começo. Me matriculei em cursos online, tirei as apostilas de francês do armário e até peguei umas receitas de pão com a minha avó, mas os planos foram por água a baixo antes mesmo do ministro da saúde. É difícil ter de recomeçar a vida num momento de tantas incertezas. Na casa nova, a única conexão que sobrou com o passado é um troféu em forma de cuíca-d’água na estante, recebido em uma feira de ciências na segunda série na qual construí um foguete com garrafas PET (numa época em que não havia YouTube, esse era um experimento genial para uma criança de 8 anos). Costumava me trazer boas lembranças, mas hoje a única coisa que penso quando olho para ele é: “De onde saiu a ideia de fazer um troféu em forma de cuíca-d’água?”
Dezesseis horas. Sento religiosamente no mesmo lugar do sofá da sala e ligo a TV num canal mexicano. Durante uma hora não há contagem de mortos, vírus e nem louças na pia, só há a história de amor de Maurício Albatroz e Sandra Soarez, que irá vencer toda a maldade do vilão Diego Santana.
De praxe, antes do capítulo inédito, é exibida uma recapitulação do acontecido no anterior. Para evitar o casamento, os capangas de Diego sequestraram Maurício, Sandra mandou a polícia à casa do vilão e esse, quando perguntado pelo rival nada respondeu, a vinheta subiu. Passada a abertura, uma música de suspense começa; o policial repete a pergunta a Diego a pergunta que já havia feito. Pausa dramática e troca de olhares. Diego, com uma serenidade vilanesca no olhar, responde: “O fato é que jamais escondi Maurício Albatroz”. E assim, por uma hora, sofro junto com Sandra, choro e grito em frente à TV, tento avisá-la que Diego mente, mas é em vão, Maurício não é encontrado e o casamento precisa ser adiado.
Dezessete horas no relógio, a vinheta sobe. Não foi hoje que Sandra descobriu o paradeiro de Maurício, mas há esperanças para que no capítulo de amanhã a verdade seja revelada. Até lá, só me restam as contagens de mortos, a pandemia e a louça na pia.