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    Ilustração: Paula Cardoso

questões das redes

O PL das Fake News e a internet que queremos

Projeto, da forma que está, contribui para a desinformação

Fernando Gallo | 16 out 2020_18h19
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Qual a internet que queremos hoje e daqui a dez ou vinte anos? Certamente, a maioria de  nós deseja uma internet que mantenha não só o espírito que levou à sua criação como os impactos positivos que ela teve na vida de quem pode acessá-la. Uma internet livre e aberta, que permita a troca de ideias, produtos e serviços, que facilite o acesso à informação, que possibilite às pessoas serem ouvidas na esfera pública e que nos ajude a resolver problemas mais fácil e rapidamente. 

Todo avanço tecnológico nos coloca diante de oportunidades e desafios. Em 2006, quando o Twitter foi criado, tudo o que se podia fazer na plataforma era digitar 140 caracteres. Alguns anos depois, tornou-se possível tuitar vídeos e fotos ou realizar transmissões ao vivo. Quão relevante é conseguir ver, em tempo real, imagens do que está acontecendo em qualquer lugar do mundo? Grandes manifestações em defesa de comunidades historicamente reprimidas, notícias urgentes e certos entretenimentos teriam o alcance e a repercussão que têm hoje não fossem tais avanços?

Essa tecnologia também traz desafios. O que fazer, por exemplo, com os deepfakes, vídeos que recorrem à inteligência artificial para reproduzir a aparência, as expressões e até a voz de alguém do mundo real? Eis a razão pela qual desenvolvemos, no Twitter, uma política que nos permite agir contra esse tipo de conteúdo. Toda decisão que tomamos, seja sobre o desenvolvimento de ferramentas ou a arquitetura de nossa plataforma, tem impacto no discurso público e, em última análise, na própria maneira de a internet funcionar. Por isso, é necessário que tais decisões sejam cuidadosas e muito bem pensadas. O mesmo vale para as políticas públicas relativas à internet, sobretudo as regulações. 

No fim de junho, o Senado aprovou o projeto de lei 2 630, ou “PL das Fake News”, que agora tramita pela Câmara e que pretende combater as informações fraudulentas nas redes sociais e nos serviços de mensagens. É um exemplo cristalino de como a regulação pode afetar negativamente a internet e trazer graves consequências para a economia do país e os direitos dos cidadãos, em especial a liberdade de expressão e a garantia da privacidade.

Ninguém nega o efeito deletério das notícias falsas sobre a democracia. É dever de todos, inclusive do Twitter, trabalhar por um ecossistema digital que dissemine informação de qualidade. Comprometidos em fazer a nossa parte, temos atuado em diversas frentes: proibimos globalmente os anúncios políticos e eleitorais, criamos estratégias para garantir a troca de dados precisos sobre a Covid-19, combatemos firmemente os robôs que tentam interferir nas conversas, tornamos mais complexa a moderação de conteúdo, apoiamos iniciativas de checagem de fatos e fomentamos a educação midiática, inclusive ao lançar guias em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Convém notar, no entanto, que nenhum país democrático e desenvolvido ratificou qualquer regulação específica sobre desinformação, como o Brasil vem tentando fazer por meio do “PL das Fake News”. Nos últimos anos, o Congresso aprovou duas legislações que tratam do mundo digital: o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados. Reconhecidas internacionalmente como modernas, ambas foram objeto de amplo debate entre os parlamentares, o que levou a consensos em torno do assunto. Infelizmente, o mesmo não se deu até agora com o “PL das Fake News”.

 

O PL nasceu com a proposta de responsabilizar as plataformas pelo conteúdo e contratar checadores de fatos para que determinassem a veracidade ou não de conteúdos. A partir daí, a ideia era que, numa engenharia reversa, essa checagem fosse mostrada a quem havia sido exposto às informações.

No entanto, nem as plataformas, nem os checadores, nem a grande maioria da sociedade civil e dos acadêmicos entendiam que era correto e desejável colocar quem quer que fosse no papel de árbitro da verdade. O processo caminhava com muita velocidade e uma consulta pública de seis dias úteis chegou a ser aberta. Nós, do Twitter, nos preparávamos para contribuir com a consulta quando, antes que o prazo fosse encerrado, um projeto com o mesmo texto foi apresentado no Senado. Em poucas semanas ele foi reapresentado mais uma ou duas vezes, com textos diferentes. 

Saiu o foco no conteúdo, entrou uma abordagem de vigilância, incluindo por exemplo a coleta de RGs e a obrigação de acesso remoto aos bancos de dados das empresas que não estejam localizados no Brasil. Em duas ou três semanas, foi pautado para ir a voto no plenário – sem que sequer tivesse passado por uma comissão (fechadas pela pandemia), ou que uma consulta pública tivesse sido apresentada, ou ao menos uma audiência pública tivesse sido realizada. 

Entre a escolha do relator e a apresentação do relatório se passaram dois ou três dias úteis. Nas vezes em que o texto chegou a ser pautado para ir a voto no plenário, amanhecemos sem saber qual seria aquele a ser votado. Mobilização de diversos atores da sociedade conseguiu adiar a votação por duas vezes – manifestaram preocupação com o projeto nessas ocasiões a Human Rights Watch, os relatores de liberdade de expressão e de privacidade da ONU, Anistia Internacional, a Artigo 19, entidades de defesa de direitos na internet, entidades jornalísticas, entre muitos outros. Mas o projeto acabou aprovado pelo Senado, em 30 de junho.

Na Câmara, foi objeto de apreciação de um grupo de trabalho informal, e uma proposta informal de um deputado, e não do grupo, foi apresentada ao presidente da Casa. Nessa proposta, saíram alguns dos itens de caráter de vigilância, mas entraram outros estranhos ao texto, como uma obrigação genérica de pagamento por conteúdo a “empresas jornalísticas e profissionais do jornalismo”, o que não tem relação direta com o tema da desinformação. O coletivo Intervozes chamou a atenção para a captura do texto por interesses corporativos. Nisso estamos.

Digo isso não com o intuito da crítica a quem quer que seja – tenho, aliás, confiança na boa fé e nos bons motivos de todos os envolvidos -, mas como quem legitimamente quer ajudar a que possamos ter processos serenos e consistentes, que possam contribuir para a melhor formulação de políticas públicas, mas também como quem conhece os prejuízos trazidos por essa incerteza para empresas como o Twitter e para a economia brasileira.

Do jeito que está, o PL não apenas não vai contribuir para o problema da desinformação como ainda provocará impactos negativos significativos para as pessoas que usam as plataformas e para a internet como a conhecemos hoje. Se a regulação servir para cimentar a posição das maiores empresas, que  muitas vezes são maiores do que o Twitter, isso vai impactar de maneira irreparável a internet, a inovação e a escolha dos consumidores. Se os custos da regulação forem muito pesados, eles podem eventualmente ser absorvidos por empresas maiores, mas podem também impactar de maneira desproporcional empresas de porte médio, como o Twitter, ou pequenas. Isso deve ser de grande preocupação dos reguladores e da sociedade civil.

Isso está presente em diversos lugares no texto, sobretudo em obrigações desproporcionais que requerem mudanças técnicas na plataforma e em nossos processos internos, sem resolver nenhum problema público. Exemplos? Dou dois, mas há outros tantos. Primeiro: a obrigação de coleta de documentos de anunciantes – é legislar pela exceção de que um anunciante possa vir a cometer um ilícito; ademais hoje já é possível fazer a identificação com os dados que já são coletados.  Segundo: a criação de uma plataforma para que as pessoas possam ver um histórico dos anúncios exibidos a elas nos últimos seis meses  – é onerar de modo desproporcional plataformas como o Twitter, que proíbem anúncios políticos e eleitorais, que são os casos em que há interesse público, e portanto aqueles em que faria sentido exigir uma biblioteca de anúncios.

No limite, preservar a competição é preservar a internet aberta como ela existe hoje, e como ela foi idealizada. Por mais bem intencionadas que sejam, regulações não podem servir para que ela se torne um local de poucos espaços entrincheirados. Nem agora, nem daqui a dez ou vinte anos. As decisões que tomarmos hoje definirão o caminho.

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