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    Entrada do Museu Nacional, que prepara reabertura em 2027 - Fotos: Bernardo Esteves

questões culturais

Um Museu Nacional para o século XXI

Para reabrir daqui a quatro anos, instituição reorganiza coleções e tenta romper lógica colonial característica do acervo destruído em 2018

Bernardo Esteves | 24 mar 2023_13h05
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O esqueleto de uma baleia com quase 16 metros de comprimento será um dos destaques da nova coleção do Museu Nacional, cuja reabertura está prevista para 2027. O cetáceo deve ficar suspenso acima de uma grande escadaria de mármore situada logo após a entrada do Palácio de São Cristóvão, que abrigava a maior parte das coleções da instituição. A peça substituirá outro esqueleto de baleia que estava exposto no museu e foi destruído junto com a maior parte do acervo no incêndio de setembro de 2018. “Era uma peça icônica e estava entre as preferidas do público”, disse a museóloga Thaís Mayumi Pinheiro.

A nova baleia é uma cachalote que encalhou há cerca de dez anos na praia de Bitupitá, no Ceará, junto à divisa com o Piauí. Seu esqueleto está exposto atualmente na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, e deve ser transferido para o Palácio de São Cristóvão após a conclusão das reformas. Só depois de instalada a baleia, a área da escada – que atualmente se encontra descoberta – será tampada por uma cobertura de vidro, conforme disse o diretor do Museu Nacional, o paleontólogo Alexander Kellner.

A piauí voltou a visitar o Palácio de São Cristóvão em fevereiro, quatro anos depois de ser o primeiro veículo brasileiro a ter acesso aos escombros do incêndio. Naquele dia, Kellner e outros funcionários do Museu Nacional receberam Leandro Grass, o novo presidente do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Sua visita foi um marco simbólico da reconciliação entre o Iphan e o Museu Nacional após um estremecimento da relação entre as duas instituições durante o governo Bolsonaro, conforme relatou uma reportagem na piauí_198.

Há muito trabalho pela frente até que o palácio possa voltar a receber coleções científicas: quatro anos e meio após o incêndio, ainda há salas que estão tomadas por escombros, e muitas das lajes que separavam os três andares do prédio não foram reconstruídas. Mas enquanto a reforma avança, um time de curadores e museólogos está trabalhando para pensar em como serão as exposições do novo Museu Nacional.

Estima-se que 85% do acervo do Museu Nacional tenha sido destruído no incêndio. “Foi uma perda monstruosa, mas ao mesmo tempo nem tudo foi perdido”, disse Thaís Mayumi Pinheiro, que coordena o trabalho de estruturação das novas coleções do museu. O ponto de partida desse trabalho é justamente os 15% que se salvaram – seja porque se tratava de coleções que não estavam guardadas no palácio, seja porque foram peças resgatadas em meio aos escombros.

É o caso de Luzia, talvez o esqueleto mais antigo já descoberto no continente americano, com cerca de 13 mil anos de idade. Seus fósseis, escavados nos anos 1970 na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, estavam entre as peças mais conhecidas do acervo do Museu Nacional, e foram parcialmente recuperados após o incêndio. Foram resgatados o crânio – em estado fragmentado –, pedaços da cintura pélvica, ao menos um osso longo e outras peças que estavam guardados numa caixa metálica que derreteu durante o incêndio, conforme contou a arqueóloga Cláudia Rodrigues-Carvalho, que coordenou o trabalho de resgate.

Outro destaque do acervo que foi parcialmente recuperado é o Maxakalisaurus topai, um titanossauro com 13 metros de comprimento que viveu por volta de 80 milhões de anos atrás na região onde hoje fica o Triângulo Mineiro. “Nossa intenção inicial é remontar esse dinossauro, que era um xodó da exposição”, disse Pinheiro.

A exposição a ser inaugurada em 2027 deve incluir também novas aquisições e peças que os cientistas do Museu Nacional continuam a coletar em suas pesquisas de campo desde o incêndio. Além disso, parte do acervo virá de doações que o Museu Nacional vem recebendo tanto de outras instituições quanto de pessoas físicas. A campanha criada pela instituição para atrair doações já havia arrecadado mais de oitocentos itens até o começo de fevereiro, dentre os quais há desde acervos de arte pré-colombiana e africana ofertados por colecionadores particulares até um fóssil de trilobita – um artrópode extinto que viveu há 470 milhões de anos, muito antes do surgimento dos dinossauros – cedido por um museu português.

A nova exposição será dividida em quatro circuitos. O primeiro andar será reservado a uma mostra sobre a história da vida na Terra, com foco na biodiversidade e na evolução das espécies. O segundo andar terá tanto um circuito dedicado aos ambientes do Brasil, estruturado em torno das relações entre as pessoas com os diferentes biomas do país quanto uma mostra a respeito da história do Museu Nacional e do Palácio São Cristóvão – que foi construído por um traficante de pessoas escravizadas e doado a Dom João VI quando ele veio para o Brasil com a família real portuguesa. O terceiro andar, por fim, vai abrigar exposições temporárias e uma mostra para celebrar a diversidade cultural, com destaque para os acervos de arqueologia e etnologia indígena.

 

Os novos circuitos terão caráter multidisciplinar, em contraste com o que se via no Museu Nacional até o incêndio de 2018. “Boa parte da exposição era compartimentada em áreas do conhecimento”, disse Pinheiro. “Havia a sala das aves, a sala do Egito, a sala da etnologia indígena”, exemplificou. Ao redesenhar a exposição do zero, a museóloga e sua equipe têm a possibilidade de modernizar a apresentação do acervo. “É óbvio que preferíamos que isso tivesse acontecido de outra forma, mas o incêndio acabou criando uma oportunidade de fazer uma exposição muito diferente.”

A reconstrução das coleções oferece também a possibilidade de romper com a perspectiva colonialista – inerente à própria natureza dos museus – que norteou a formação do acervo. “Queremos fazer um museu contemporâneo”, disse Pinheiro. Um bom exemplo disso são as coleções etnológicas que, pela primeira vez, têm um curador indígena desde o ano passado – o antropólogo Tonico Benites Guarani-Kaiowá, que fez doutorado no próprio Museu Nacional. “Esse acervo foi formado numa chave colonial, mas esperamos repensá-lo hoje como uma coleção com – e não sobre – as comunidades indígenas do Brasil”, afirmou a museóloga.

“Entendemos que, para a constituição de novas coleções no campo etnográfico, o ponto de partida tem que ser o diálogo com as comunidades de origem, com as pessoas que produzem e usam aquele material”, disse o historiador Crenivaldo Veloso, do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional. Como um exemplo desse diálogo, Veloso citou o manto ritual Tupinambá confeccionado pela professora e cineasta Glicéria Tupinambá especialmente para o Museu Nacional.

 Veloso contou que as novas exposições de etnologia do museu estão sendo pensadas a partir da parceria com comunidades indígenas de todo o Brasil. A ideia é ouvi-las em relação a que itens deveriam fazer parte da mostra, e como eles deveriam ser expostos e conservados. “Uma exposição que valorize a fala e as construções dessas comunidades pode ajudar a criar uma visão menos preconceituosa sobre elas”, disse o historiador. “A ideia é que a exposição colabore no combate ao racismo.”

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